segunda-feira, 26 de março de 2012

Chico Anisio


CHICO ANISIO


Quando o humorista desencarna, o céu sorri. Eu ouvia as gargalhadas no astral, era um dos seus melhores retornando. Um retorno difícil pela sensação estranha de incompletude que acompanhava o comediante. Pelo temor esquisito de ter desapontado, a quem? A ele mesmo? Ao pai? A mãe? Ao avó? Realmente não sei. Mas, havia uma vergonha esquisita, um sentimento de não ter dado conta, de não ter conseguido superar as expectativas. E o que dizer quando o maior artista da sua geração retorna a pátria espiritual com essa percepção? Como demovê-lo e levá-lo a perceber tudo o que fez?
Fico me perguntando se não foi esse temor, esse receio que o prendeu tanto tempo ao corpo. Que mesmo sendo chamado a seguir, a vir embora, ainda mantinha-se preso, agarrado, esperando alguma outra coisa que em carne não receberia mais. É difícil partir, largar, deixar para trás. Esse altruísmo e despojamento é da esfera dos espiritualistas, os artistas se prendem aos seus feitos, as suas obras. Debruçam-se sobre suas realizações e é difícil deixá-las para trás, seguir adiante, quando o que nos apresentam da morte é a sensação de perda de identidade, um vazio, um nada. E como deixar para trás não o que se fez, mas quem se foi? O desencarne dos artistas mesmo fatigados não é fácil. Primeiro, porque amam o viver, gostam da vida, dos prazeres que ela proporciona. Segundo, porque a esse temor da morte, da perda definitiva de quem se é, de quem se foi. Finalmente, aquele peso terrível da aposta de Pascal: e se não tiver nada do outro lado? Mas e se tiver? Abandonar o corpo, sair de cena para nunca mais voltar não é fácil, os pensamentos arqueiam mais que a mão de uma criança.
Mas, Chico, como todo mortal tem que partir. Como todo artista, chega uma hora que as luzes do palco se apagam, que as cortinas não abrem, que os acontecimentos passam a se dar na coxia. E aí se esta no momento mais solitário da existência. E foi nesse lugar que encontrei com Chico. É nesse lugar que eu me encontro com meus convidados, meus entrevistados. É na coxia, nesse instante em que as mascaras caíram, o novo figurino não esta pronto, que eles sentam e me contam suas impressões acerca da vida. Foi aí que Chico me falou do amor pelos seus filhos, do amor pelos seus personagens, do amor pelos seus netos. Foi lá que ele pediu perdão a duas de suas ex-esposas por motivos que não interessam. Foi onde também reviveu seus personagens, seus múltiplos eus, desdobrados em outros, que eram e não era ele.
Perguntei a pergunta que meus dois mestres sempre me orientam a fazer: viveria tudo de novo, igualmente? Valeu a pena? E ele com um sorriso lacrimejante no rosto disse SIM. E nesse sim as portas de outro palco lhe abriram. Aplausos estrondosos sacudiram os céus. A vida aplaudia Chico, seus colegas o aplaudia, e um ser risonho, me parecia menino Jesus, o colocou no colo e lhe pediu para contar aquela anedota de que ele gostava tanto.
E Chico sem entender o que ele dizia, sem saber do que ele falava, tentava dizer, que nunca teve a honra de contar anedota para o menino Jesus. Este com a sabedoria da pomba que o consagra, lhe mostrou:
“Todas as vezes que fizestes um dos seus irmãos sorri e os transformava novamente em meninos, era a mim que fazias sorrir. Todas as vezes que ensinava um menino a arte da graça, era a mim que alegrava. E as vezes sem conta que acudiu e acolheu um dos artistas esquecidos no anonimato, era a mim que acolhia. Recordas de mim agora?”
Chico ficou meio sem jeito de dizer que nunca acreditou nessas coisas, desse jeito, que nunca fez isso por este motivo, mas não importava. Aquele menino tirava dele todo peso e lhe devolvia, lhe insuflava todo amor que doou, deu, ofertou, ofereceu ao mundo. Chico o olhava e ia remoçando. O cansaço da respiração ofegante ia diminuindo. O pulmão voltava a ser de criança que nunca vira cigarro, a fala retornava a mesma articulação e os pensamentos voltavam a ficar rápidos, céleres mais até do que fora outro instante.   
E nesse momento a gente já não aplaudia e só chorava, porque a beleza do riso é uma hóstia consagrada, é uma comunhão com o universo e do universo. Aqui entre nós o orgasmo é misto de dor e alivio, em outros planos o orgasmo é uma risada, estrondosa, que cria mundos, geram e preparam seres. Chico preparou toda uma geração. Cada um dos seus personagens personificaram aspectos nossos. E como é divino aprender a rir de si mesmo. Reconhecer-se no outro e rir de si mesmo. Chico ensinou minha geração a rir. Seus personagens eram radiografias, criticas sócias, falarei um pouco daqueles que mais gostava, ainda gosto.

Um comentário:

  1. Um texto mto sensivel, que resultou em uma bela homenagem, das mais belas que li.

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