domingo, 7 de outubro de 2012

Jugular da Existência


Muitas coisas aprendi no ano que passou (2005). A primordial foi sobre a linguagem. Nós de forma normal a tememos. Nós temos o dom de falarmos somente as coisas desnecessárias. Tememos as verdades, não que ela exista, mas tememos dizer as únicas coisas que precisam ser ditas, que devem ser ditas.

Este ano (2006), eu assassinei a poesia. Pelo menos a poesia que tropeça nas nuvens, que busca coisas além do ato e do fato que esta posto e dado. Chamei esta fase de jugular da existência.

A vi no Discovery: um leopardo, lindo, maravilhoso correndo em direção a sua presa. Na primeira tentativa ele derrapou, pois a presa mudou de direção no momento do bote; na segunda não teve como, ele a atingiu diretamente no pescoço. A cena era eletrizante. Era a busca pela vida, pela sobrevivência. Logo eu que sempre achei Darwin equivocado, sempre preferi Bakunin na sua exposição acerca da evolução humana, fiquei maravilhado com a cena. Ela lembra Quincas Borba que inicia toda uma filosofia ao ver dois cães brigando por um osso. Fiquei assim diante da cena. O leopardo carregando a presa entre os lábios não como troféu e sim como a vida. Ele tinha lutando, buscado e devorado a vida e comia cada parte com tamanha voracidade que ele estava orando. Aquilo era a oração do leopardo. A devoção da selva. Tinha uma beleza que transcendia toda a selva e toda a civilização. Foi lindo como um milagre do pastor da Igreja Universal. Ou qualquer milagre que vejam.

Estava ali. Um acontecimento sem metafísica nenhuma. Sem razão nenhuma, mas com todos os motivos e propósitos. Estava a vida e a necessidade de segurar a vida com a boca, entre os lábios para que ela não escorra, não falte, não perca o sentido. Eu quis a partir daquele momento a jugular da existência. A sua carótida. O local no qual ela passa e jorra sangue como mel e o seu sangue imola o justo, vaticina o prodigo e acaricia o devotado. Tudo em um mesmo altar e em um mesmo ritual: a vida sem mistificação. Ela mesma, sem símbolos, mascaras, devaneios ou explicações transcendentais.

Assim, essa imagem não me sai da cabeça. Um leopardo correndo pela savana em busca de sua presa, ao encontrá-la dispara. A presa corre também, ela quer viver, quer continuar viva. Sua vida é uma porcaria, mas ela não quer morrer. O leopardo a ameaça e ela têm como única defesa a possibilidade de correr e se esconder. É lindo! É o pega - esconde da selva, mas o leopardo abocanha sua presa e da sua boca escorre o sangue da vitória.

Penso na vida e no viver. Cada ser vivo deveria ter uma presa para sentir o sangue dela escorrendo por entre a sua boca. Ficamos civilizados e as paixões nos suscitam medo. Queremos a  vida, mas só em parte e não inteiramente. Separamos a vida como quem em restaurante francês come mais por pose do que por fome. Falta-nos fome para devorarmos a existência. Buscar nela a sua jugular e provar do seu sabor.

A vida é curta, fisicamente analisando. De forma geral passamos por ela sem dizermos as coisas mais essenciais, necessárias, precisas. Deixamos escorrer da vida o mel que poderia nos transformar e modificar os outros.
Penso em casais, penso em amigos, penso em família, penso em todos: a linguagem entre nós é a arte do disfarce. Falamos para não ser. Nossa comunicação é o veículo da frivolidade. Não falamos as coisas essenciais, não educamos ninguém em nenhum lugar para as questões chaves da existência: amas? Sabes que irá morrer? Viver para nós é alisar estas questões sem deixá-las irem para o centro. Todos que vão ao centro e ao cerne vão sendo convidados a fazerem silêncio ou a serem internados.

E este é o barato. A linguagem universal é o silêncio. O som primordial é o silêncio. A fórmula mais elegante é o silêncio. Mas a possibilidade de comunicação é a linguagem. Dai todos, a principio, deveriam ter o mesmo valor. A poesia é tão matemática quanto à física. E esta é tão musical quanto à dança. E todas são metáforas da existência que poucos lêem.

Eu mesmo não leio. Às vezes a partitura da vida me cansa, mas eu estou ficando ao avesso. Não há um segundo da vida, um momento da vida que não seja belo, não seja poético, não seja metafórico. Mas ler isto te retira da condição humana. Para mim qualquer um que sabe um pouco mais da poesia da existência esta perdendo sua condição humana. Melhor é saber sem falar. Melhor é aprender esta linguagem e conversar com os seres e viver em estado de graça. A palavra é a desgraça. Assim o avo da Elo conhece a linguagem da lua. Outros a do mato, do cerrado e estas coisas falam mais diretamente que todo vernáculo criado e construído. A linguagem entre os homens é o mais artificial da nossa civilização. Mas é o que nos possibilita desentender completamente o outro e nos apaixonarmos por ele.

Quero transformar o vazio em algo. Quero apontar o dedo para o silêncio e levar as pessoas ouvirem a musica que Kepler escutava. As pessoas querem a poesia da vida, mas vivem com pinça na mão. Selecionando e dissecando o que querem viver, escolhendo com nojo e comendo com a delicadeza de quem se alimenta mais por esnobismo do que por fome.

E esta é a jugular da existência. Quero despertar a fome. A compreensão de que não é a sua boca que come, é o seu ser que devora o alimento e é triturado por ele. Como se a cada dentada que desce estivesse sendo devorado pelo próprio alimento que come. Assim, come-se com gana para não ser devorado primeiro. Quero que as pessoas vejam na rosa uma rosa, nada mais. Apenas uma rosa. E não há mais poesia na rosa do que nas vestes penduradas no varal. (Cecília Meireles escreve uma poesia sobre roupas estendidas no varal) e entre nós mineiros a poesia mais bela deste mesmo cenário foi cunhada pelo Roberto Drummond que disse que "se houver uma camisa preto e branca estendida no varal a torcida do galo torce contra o vento". Acerca dessa antropofagia, só compreendi o cristianismo com um preto-velho. Era no ano de 99. Ele falava que o lobo ao devorar a ovelha ficava menos lobo e mais ovelha. Esta se entranhava nele. Quando comemos estamos sendo comidos. Vale a alegação de que este é um paradigma antigo e superado, não irei discordar pelo contrario. Podem dizer mais que as leis da selva não se aplicam entre nós seres civilizados, vou compreender. Mas, dê uma dentada na jugular da existência para o sangue escorrer por entre os seus dentes e os bons sentirem temor de você porque você agora quer comer sem usar faca e garfo. É delicioso. Começar a perceber que a poesia esta na vida inteira, inteirinha, inteiramente, completa, independente de... A poesia nasce quando deixamos de separar o que esta no prato e saboreamos a tudo com a mesma intensidade. È certo dizer que há poesia também na seleção e na dissecação do que será vivido, melhor - comido; mas ai você não compreendeu a poesia da existência. Você vai ficar cheirando rosas e comprando chocolate para ser romântico. A vida tem uma indelicadeza, uma asperidade que será encontrada em capricórnio.

Um comentário:

  1. Lindo!!!
    Espero que o sangue da vida seja saboreado por todo o seu ser.
    Beijos

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