sábado, 2 de novembro de 2013

QUAL O NOME DO VAZIO?


Como já declarei centenas de vezes- sou apaixonado pelo universo feminino. Há algo nele que me encanta, me seduz, me fascina, me alucina. Algo que eu quero adentrar, ver, captar, sentir, o mais próximo possível, mas sem ser. Não gostaria de ser mulher. Recordo de umas duas, três vidas nas quais fui mulher, eu não tenho palavras para descrever a tortura que isso foi para mim. De todas as prisões que habitei nenhuma foi mais angustiante do que ser mulher.

E não falo de ser do sexo feminino. Não é disso. Falo das mesmas dificuldades de ser negro, homossexual, diferente- falo da discriminação. Falo do exercício de provar que a inteligência, o gosto, as aptidões não são questões de gênero ou de raça. Falo da luta inglória contra uma cultura, contra hábitos, contra a gente mesmo, que em momentos passa a acreditar que de fato algumas escolhas e formas de existir são apenas para homens e outras apenas para mulheres. Mas, não é disso que quero falar.

Quero falar do site que uma amiga me enviou: perdimeubebê.blogspot.com.br  O blog é lindo. Delicado. Suave aos olhos. Cheio de dor, de sofrimento. Lá esse vazio que não sei dar o nome tem forma, tem cheiro, tem cor e é transformado em palavra por cada relato. A cada relato sobre a perda de um bebê, elas afloram tonelada de culpa, de medo, de agonia, de sofrimento que parece ser da humanidade inteira. Cada criança não nascida alivia e amaldiçoa cada uma delas. Em cada relato fica estampado diante da gente a nossa insensibilidade diante do tema, o nosso despreparo para acolher essas mães. Enquanto lia, muitas coisas me encabulavam, no entanto, uma mais do que as outras: essa culpa não pode ser de apenas uma mãe, uma mulher. Assim, da onde vem esse vazio?

Ele esta no ser. Não sei precisar quando ele se instala, ou se ele já vem instalado. Mas, ele parece estar lá esperando a primeira paixão, a primeira desilusão amorosa, a primeira transa para absorver praticamente uma existência inteira. Acredito que haja uma porta, uma fenda pela qual o vazio entra e por vezes nunca mais sai. 

Uma das falas freqüentes das mães era a de que os maridos, os companheiros pediam a elas que saíssem desse estado de sofrimento, de apatia, que elas tentassem esquecer, mas elas não conseguiam. Era como se estivessem mergulhadas dentro de um abismo. Nietzsche conta que as vezes de tanto olhar para um abismo, o abismo passa a olhar para você. Mais do que olhar, o abismo adentra o seu ser. Nietzsche de fato tinha essa profundidade abissal. Esse grande filósofo alemão dizia que tudo que é reto mente, assim, ele acredito que o abismo dele tinha até algumas curvas, mas de forma geral, os abismos masculinos são retos e jamais chegamos até o fundo. Os abismos femininos são fendas naturais, mas é cavernoso, escorregadio, insinuante, repleto de curvas. E o estranho em tudo, seja nos relatos, ou nas outras observações que fui recordando é que há uma dor e ao mesmo tempo uma adaptação natural a este lugar. O abismo é um habitat no qual elas se adaptam. Nós homens não damos conta dessas profundezas, menos ainda dos labirintos que esses abismos têm. Mas, elas vivem nesse lugar com mais naturalidade e isso é a ruína, ora porque elas se perdem nelas mesmas, ora porque parte delas vão sumindo ou se escondendo delas mesmas, mas, principalmente, porque há cavernas nesses abismos nos quais elas se identificam e sentem-se mais confortáveis do que em qualquer outro lugar do mundo. Numa visão ainda superficial e prematura, diria que nós homens corremos do vazio, enquanto a maioria das mulheres correm para ele. Grande parte do temor masculino é encontrar com a dor, com o sofrimento, com a finitude. Passamos a vida inteira construindo cultura, ciência, transcendência para não lidarmos com esse vazio. Grande parte da atração feminina é pela dor, pelo sofrimento, pela finitude. Elas querem fugir dos nossos conceitos complicados, das nossas explicações intermináveis e simplesmente se fundirem, ou sentirem o vazio. É paradoxal. Nós queremos dar sentido fugindo dele, elas dão sentido mergulhando nele.

Retornando ao site, a maior beleza dele é que lá elas se escutam, se entendem, se consolam, se apoiam. Elas fazem aquilo que não conseguimos fazer, talvez porque de fato não há algo a ser feito. Elas acolhem uma as outras.

Assim, eu quero falar do vazio. Chamo de vazio, mas o nome não é esse. É alguma outra coisa, cuja definição escapa, se é que tem. O que sabemos é que ele tem presença. Ele existe. Ele ocupa o ser das mulheres. Algumas o transbordam no olhar. Outras fazem dele uma redoma no qual elas estão no meio, absortas por ele. Em muitas, senão todas, o olhar delas, mesmo quando feliz, trás essa dor, esse eu não sei identificar. Esse sem nome. Esse sem lugar. Essa coisa que em muitas fica resguardado, acomodado, mas.... ainda assim é presença. 




Eu resolvi escrever sobre um tema que eu não sei o nome e nessa altura, a maioria dos homens já não sabem mais sobre o que estou falando, se é que chegaram até aqui. As mulheres já estão me chamando de burro, rindo e sensibilizadas com minha tentativa de compreensão, no entanto... Elas sabem que eu não sei. Elas também não têm nome para esse vazio, mas recusam serem chamadas de histéricas, histriônicas, ou de nomes dado por nós homens diante dessa falta imensa que transborda em algumas. 

UM NOME MASCULINO. 

Freud viu nesse vazio uma incompletude anatômica, a falta do pênis faz da mulher um ser castrado, mutilado. É ou deveria ser óbvio que esse olhar é metafórico, diz respeito a um arquétipo. Essa mulher de Freud, como não poderia deixar de ser, representa o arquétipo de Eva, a parceira de Adão. Eva é a mulher que nasce da costela, nasce como parte, se realiza enquanto “amiga” do seu parceiro único. Quando busca o conhecimento recebe toda culpa de ter desviado o ingênuo do Adão do caminho do bem. Assim, ambos são expulsos do paraíso cada um com sua sina, ele é amaldiçoado a trabalhar, ela a parir na dor. Esse vazio em nós é preenchido pelo trabalho. Enquanto laboramos, nos realizamos, acreditamos estarmos plenos. As mulheres encontram um preenchimento desse vazio na gestação, no ato de ser mãe. Mais uma vez recorro a Nietzsche, ele diz que a mulher para o homem é um fim. Mas, a mulher para o homem é apenas um meio. A finalidade dela é o filho. Será mesmo? 

Hoje na contemporaneidade, mais do que nunca, mulheres acreditam na realização pessoal em moldes masculinos- carreira, profissão, sucesso. E a maioria lida bem com isso até o relógio biologico determinar as últimas voltas do ponteiro para que a gravidez ocorra. Nesse momento a piração começa acontecer. Esse vazio transborda. Poucas sentem-se tranquilas ao olhar para trás e verem que construiram uma belísima carreira. Nessas falas que escuto fico sempre me perguntando: pode uma mulher não ser mãe? 



Nosso desejo masculino é o de estancar o vazio, curar a dor. Mas, não é disso que se trata, pelo contrário, trata meramente de ouvir o grito que não sai da garganta, mas a seca. Trata de  emprestar lenço para a lágrima que teima em brotar dos olhos, como nascente, como cascata. E nunca sabemos por qual motivo elas choram, talvez seja pelo mesmo motivo que a nascente escorre água, vai saber. Trata de apenas estar ao lado, silenciosamente, como se esse vazio fosse uma oração.

Isso nós homens nunca entendemos e jamais entenderemos. Nunca entenderemos essa racionalidade emocional. Nunca entenderemos como que a perda de uma gravidez de poucas semanas, quiçá meses, pode abalar o resto de uma vida. Nunca entenderemos, como que a perda de um filho viciado, drogado, as vezes até maldito, pode causar uma dor infinita, que nunca vai acabar, parar, cessar. Nunca entenderemos como que a morte da mãe, aquela que nos gestou possa causar essa mesma ausência, essa mesma falta e por vezes ampliar ainda mais esse vazio.

Assim, teve momentos que eu quis tirar esse vazio delas, mas fazer isso era como colocar um pênis entre as pernas delas. Era como colocar um estilingue de menino nas asas de um colibri. Era desnaturalizar o natural. Amigos muito sensíveis me ensinaram a ver, a observar, perceber que seja lá o que for essa falta, esse vazio, é por intermédio dele que elas conseguem se superar, se inventarem, serem. Loucura?

Recordo-me de alguns trabalhos mediúnicos, em que me encontrava desdobrado e ELAS chegavam, encarnadas e desencarnadas. Elas estavam lá pelos filhos, pelos maridos. Lá onde? As vezes nas filas intermináveis das visitas de hospitais, presídios, manicômios. Outras vezes nas casas espirituais pedindo ajuda. Outras tantas ao lado dos filhos como anjos protetores. E os filhos estavam em lugares que até os anjos não desciam. Mas, elas estavam lá. Lado a lado, rogando proteção, pedindo perdão. Em vão tentar mostrar que elas não tinham nada a ver com aquilo. Elas se responsabilizavam, elas se culpavam, elas se martirizavam. Elas tinham uma culpa que absolvia e absolve toneladas de equívocos, erros dos entes queridos. Ali fui aprendendo a ver a força da oração de uma mãe. Como que as rogativas delas chegam aos céus sem fazer curva, deslocando Serafins e Querubins para atenderem ao pedido. 


Finalizando, há a falta do filho. Não apenas a dos filhos mortos, mas a dos filhos que em determinado momento escolheu-se não ter e que hoje, elas desejariam, mas o relógio biológico não permite. Em toda mulher parece existir essa dor, essa força, esse vazio, essa busca. Elas querem algo que escapa. Buscam algo que encontram, as prendem, as ajudam, as aliviam, mas ainda não é o preenchimento. Em todas há uma busca, o desejo de que uma metade de mim seja preenchida, encontrada. É bom que ainda temos abraços como formas de fusão. 




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