quinta-feira, 31 de julho de 2014

4º MOVIMENTO: a entrega.


A maioria de nós não acredita em mitologia. Mas, eu vejo a existência dos mitos na vida dos meus alunos, na vida das minhas partilhantes. Muitos desses mitos estão sendo vivenciados a todo instante. O amor de Hades e Perséfone é um. Quem não conhece a moça linda, bela, encantadora, inteligente, que se apaixonou pelo problemático da turma? Quem não conhece a história da menina da classe média que foge para o morro para ser esposa do dono da boca? Quem não ouviu a história do menino queridinho da mamãe que entrou no mundo das drogas? É difícil resistir à baforada do desejo. E em meio a tanta repressão e combate ter forças para não ser tragado pelas sombras.

A estória do mito é o contar de um rapto. A moça virgem que foi raptada, isto é, teve a sua vontade, o seu querer subtraído.Num sentido interno, o rapto pode simbolizar aquele instante no qual a inconsciência invade e transborda a consciência. Noutro sentido, externo, superestimamos o rapto para pensar que Perséfone é vitima, foi raptada e não escolheu de própria vontade e desejo aquele destino para ela. É sempre mais fácil reconhecer a mulher como um ser sem desejo, sem vontade, sem querer. É sempre mais tolerável falarmos de loucura quando o inconsciente desejante, reprimido toma à consciência de assalto. Entretanto, Perséfone é tão especial por isso, ela deseja, ela quer, ela tem vontade. E isso em todos os tempos e eras foi assustador, continua sendo. O único deus capaz de lidar com essa força foi Hades. Foi ele quem viu naquela donzela, naquela virgem, algo que ele só via em si mesmo.

E nesse movimento estamos entrando na parte mais tortuosa, mais densa dos relacionamentos. Aquela na qual ora um, ora outro, se faz objeto dos desejos e fantasias do outro. Esse movimento no qual saímos do nosso mundo para entrar no do outro. Esse movimento no qual, eu reconheço parte do mundo do outro como sendo uma extensão do meu. Esse mundo no qual por vezes temos que raptar e se deixar raptar para irmos mais fundo. 



Esses raptos nos trazem em direção às alunas e partilhantes. Perséfone me pediu para perguntá-las por que ele? E, invariavelmente, elas falam de uma paixão oculta, de uma beleza e atração incontrolável. Elas falam de um reflexo no qual esse outro tinham algo delas que elas não podiam mais viver sem.

Juro que eu não sei que algo é esse, que ao falar, os olhos delas salivam e a boca traga tudo, como se fosse um olhar. Juro que não sei o nome desse algo, que causa uma sensação de pertencimento tal qual o corpo e o ser do outro fosse parte de um mesmo e único corpo. Na falta de um nome para esse algo, chamei entrega. É o nome mais próximo que chego.

Assim, muitas vezes, quando perguntamos a Perséfone o motivo pelo qual ela se encontra no Hades, ela responde: que ela encontrou a beleza oculta. Ela viu esse elixir da beleza que Afrodite pediu para ser guardado no Hades, longe de todos. Ela viu o local mais apropriado e talvez único no qual fosse possível produzir esse cosmético de fabricação exclusiva de Perséfone que lhe da à jovialidade, a juventude; o amor sem medo. Ela descobriu aquilo que nenhuma deusa, ou deus jamais compreendeu: a entrega.

Há uma força na entrega, uma resistência nesse ato de se entregar, que poucos têm condições de suportar. Seja para recebê-la, seja para doá-la. E isso torna a entrega tão especial, tão diferente, tão complexo.

Nessa complexidade, Perséfone me falava de um tempo no qual se desconhecia homens que não tinham vergonha das suas cicatrizes. E, eu lhe dizia, que cada vez mais, eu desconhecia mulheres, que fogem das cicatrizes e feridas de algum homem que amam. Ousaria dizer que o homem ama as qualidades, a mulher, as imperfeições. Refaço a frase: o masculino ama a perfeição, o padrão, a superfície- pele, cabelo, corpo, aparência. O feminino ama as imperfeições, a profundidade- alma, desejo, vontade, querer- a singularidade que faz daquele ser quem ele é e não outra pessoa. Nisso, eu e Perséfone refletíamos que há muitas mulheres fugindo das cicatrizes, porque estamos masculinizados demais. Com isso, os relacionamentos se engasgam, engastam, porque o feminino quer a nudez da alma e o masculino quer o embelezamento do corpo. Os amantes superficiais querem o corpo e o que ele pode oferecer. Os amantes profundos desejam à alma e tudo aquilo que ela pode dar. A sabedoria constrói a cumplicidade conjunta de permitir ao corpo todos os gozos da alma. O encontro de Perséfone e Hades representa essa profundidade.

Representa um lugar no qual não há julgamento, não se vê os desejos, a vontade como feios, ou perversos, ou malignos. Hades respeita o querer, o desejo, a vontade, seja ele qual for. Mas, como lidar com esse espaço em nós? Como contar os desejos mais secretos para sua esposa? Como compartilhar essa vontade com ela? E vice-versa? E é engraçado como esse espaço vai sendo esvaziado, vai sendo descuidado, desertificado, até ser um lócus dos mais apropriados para explosões nucleares. Sabe aquele homem que matou a mulher a tiros depois de 30 anos de casamento? Sabe aquela mulher que cortou o pênis do noivo depois da ruptura do noivado? Sabe aquele grupo de homens que praticaram estupro coletivo? Sabe aquela mãe que matou o filho recém nascido? São todos os que não olharam para seus mundos infernais e foram devorados por eles. Mas, não quero falar disso, quero falar da pergunta que fiz para Hades no inicio de tudo isso. “entre todas as donzelas do mundo, porque Perséfone?”

E ele me diz algo mais ou menos assim:

“Não escolho donzelas, ou rapto virgens. Pouco me importa a virgindade do corpo. Preciso de Perséfone, porque ela quis me ver sem o elmo da invisibilidade. E ao me ver não enojou, nem vomitou. Tirou minha armadura, cuidou das minhas feridas, dos meus machucados, das minhas cicatrizes. Eu a protegerei contra todos, contra tudo, especialmente, de mim.”


É aqui que o ciclo fecha. É aqui que, novamente, o mito grita no nosso dia-a-dia. É na fuga da profundidade que desenvolvemos relações superficiais, tão superficiais que ficam dolorosas. E o que tenho observado é que nenhuma dor é maior que a perda da ilusão. E como disse certa feita o poeta: “nada resiste ao contato furioso da existência.”

A paixão, enquanto sinônimo de vontade e desejo é esse contato que quando não se dá por escolha, se faz por rapto. Subtamente somos levados a entregar, seja parte, seja, integralmente. 

II

Foi nessa entrega, que Perséfone deixa de ser a lindinha da mamãe e se faz mulher. Mulher no sentido mais pleno e completo da palavra. Mulher capaz de suportar e suturar uma cicatriz na alma do amado.

Agora, caminhando para o final, re-lendo o mito: é como se ele estivesse nos dizendo: “ O BELO É PROFUNDO! A beleza é mais profunda que o corte de gilete!” E aqueles que param na epiderme não compreendem nem o que é ser homem e menos ainda o que é ser mulher. Na fabricação do elixir da beleza, a deusa do submundo encontrou, desvelou, uma beleza mais bela que a luminescência de Afrodite. É a beleza da entrega.

Beleza que sinaliza não para um rapto, mas para um arrebatamento, um pedido, uma dança entre ambos. Perséfone, me confidenciava: “entre todos, me deixei raptar por Hades, porque somente nele poderia ser inteira, intensa, toda, mesmo ele sabendo que em alguns momentos precisaria de voltar à superfície, para nos renovar. Escolhi Hades, porque o desejo dele por mim não me permitia nada além de me entregar de corpo e alma, vontade e desejo, em todo o meu querer. E ter a certeza de que ele me comportaria.”

O contraponto a esse tipo de relação vivenciada na sua dimensão mais positiva, isto é, na nudez do casal um perante o outro é que somos uma sociedade cada vez mais superficial. Uma sociedade que como regra não deseja ultrapassar nada mais profundo que a epiderme. Paramos na pele, na superficialidade do querer sem desejo, do desejo sem vontade, da vontade sem amor, do amor vazio, do vazio existencial, da existência que se alimenta de superficialidades e repete o mesmo ciclo. 

Um ciclo de fuga, de medo, de receios. Um ciclo de vida que teme a morte ao mesmo tempo em que banaliza a morte a cada viver. Nunca a nudez mostrou tanto o vazio. E nunca tantos e tantas foram tão superficiais como um corte de gilete.” A beleza esta mais superficial do que uma verniz, menos densa do que uma folha de jornal. A beleza esta virando só aparência.


Nesse ponto a Primavera não pode temer o inverno, porque é nele que ela se faz mais esplendorosa. Casais não deveriam temer a entrega e nós como seres singulares, não deveriamos fugir desse encontro, desse contato. 

Como disse a poeta: 

"Aprendi com a Primavera a deixar-me cortar
e voltar sempre inteira."


Celebremos a entrega. 



Poema: Primavera de Cecília Meireles. 

sábado, 19 de julho de 2014

AS QUATRO ESTAÇÕES: 3° MOVIMENTO- o medo.


O medo... esse que nos apavora.

Anos atrás, a partir de uma fala genial, magnífica, magistral de Mia Couto, escrevi as impressões que Kryon dizia acerca do medo.


Ele falava que o oposto do amor não é o ódio como pensávamos e sim o medo. É estranho pensar o medo como o oposto do amor, mas cada vez mais acho pertinente. Cada vez mais me assombro como que nos empenhamos em não manifestar nosso amor seja para outra pessoa, seja para pessoa nenhuma, seja para nós mesmos, seja.... De forma geral e quase sistemática, sabotamos o amor e damos as mãos para o medo, numa auto sabotagem sem precedente.

Toda essa situação me faz lembrar Oscar Wilde, talvez nos seus versos mais famosos:

"A gente sempre destrói aquilo que mais ama.
Em campo aberto ou em uma emboscada.
Alguns com a leveza do carinho,
outros com a dureza da palavra.
Os covardes destroem com um beijo,
os valentes com uma espada."

Esse ímpeto de destruição me remete a coragem. Nunca tinha visto amor como coragem até assistir uma peça que tratava do amor. A coragem é a cor com que colorimos a existência.; inclusive os próprios medos. Num primeiro momento, os dias, meses, ciclos que Demeter ficou sem achar Perséfone, destruída pela sua ausência, ela foi secando, murchando, esfriando, até congelar tudo a sua volta. O outono e o inverno foram muito rigorosos e mais complexo, inesperado. Nunca tinha visto algo assim na superfície. Por outro lado, o mundo subterrâneo na ausência de Perséfone era mesmo o inferno- muito calor, muito rigor, muita severidade, muita brutalidade e agressividade. Tudo eram espadas e flechas. Sangue e dor. Imposição e fúria. A dificuldade de cada um lidar com a falta, a ausência era enorme. 

O sentimento de rejeição perante a falta do outro leva à destruição de tudo envolta. Os muitos medos que temos, que nutrimos, que por vezes nos consomem. Assim, retomando às estações, a Hades e Perséfone fico me indagando sobre o medo da nossa beleza. Não a beleza do espelho, mas a beleza da alma. Indago-me também sobre o medo da nossa ternura, da nossa bondade. E isso é perturbador na clinicia, na vida, como que nos assustamos, não com as nossas feiuras, e sim, com a nossa beleza, com o que temos de melhor em nós. Para a maioria, estar diante da própria ternura, da própria beleza, da própria generosidade machuca. 

Esse medo nos apavora, deseja-se correr, fugir, mas o mais comum é destruirmos, agredirmos, machucarmos. Quando conseguimos fazer isso com o outro é um tanto mais justo, porque o outro pode se defender, mas quando fazemos conosco é ainda mais doloroso. O inverno de Demeter machuca toda Terra, mas, especialmente, a ela mesma, é ela que se gela. O mesmo se dá com Hades. Conseguimos formas de nos machucar, nos agredir e por vezes nos destruir que nosso pior inimigo não conseguiria. Aqui eu deveria falar de obsessão, de perseguição, das co-criações destrutivas que fazemos em nossas vidas, mas isso fica para um outro momento. O assustador é como poucos de nós estão preparados para o amor, à felicidade, à prosperidade, à riqueza e todas as benesses que a vida tem a nos ofertar e oferecer. Somos edcados e depois nos construímos para aceitarmos o pior, para lidarmos com as carências, as ausências, os vazios. Somos educados contra nós mesmos. E é talvez esses aspectos que Hades e Perséfone nos trazem. O amor dos dois nos levam a pensar em como os relacionamentos podem limpar, clarear todo nosso mundo subterrâneo de maneira harmonica e de como podemos fazer isso vivenciando o próprio inferno. 




Num segundo momento do mito, da relação entre Hades e Perséfone, vai delineando que estamos falando do lugar do desejo, do querer, da vontade. Estamos falando daquele fogo que acende, irrompe, inflama, insufla os seres de coragem para desafiar tudo, todos, inclusive descer ao próprio mundo subterrâneo. Todo aquele e aquela que já recebeu a baforada do desejo na nuca, que teve o hálito do querer nos lábios do outro(a) compreende o que estou dizendo. Compreende que para ter esse milésimo, esse segundo de prazer... devora-se, morde, puxa para si, abraça, unha, corre, tenta se controlar, se descontrola mais. Qualquer uma que já foi desejada sabe a doce delícia de resistir e se entregar a esse outro que devora, conquista, toma para si. Perséfone e Hades, um diante do outro, nos lembra desse estado, dessa querência, desses instantes. Eles nos remetem ao encontro com aquilo que queremos, mas algo nos impede, uma tensão simbolizada pelo rapto.

Quando olhamos para a jovem Perséfone sendo raptada, podemos insinuar, que Hades viu nela a mulher que ela não reconhecia, e ela viu nele a beleza, a leveza que ele não sentia e nisso podemos ver o rapto com outros olhos. Ser raptada no mito é a um só tempo recusa e entrega, amor e medo, escolha e destino; medo e coragem. É o ímpeto entre a ação deliberada e o desejo não manifesto. É a tensão não abordada entre o medo e o amor.

A singeleza incontida desse frenesi está naquilo que Hades representa e oculta por completo, por inteiro- a morte. Em toda mitologia grega descer ao Hades representa a travessia da alma. Num sentido mais simbólico, esse mundo subterrâneo se fez inferno, se fez chacras inferiores, se fez desejo, vontade, querer, procriação. Fez-se medo, receio, preservação e porque não, repressão.

Temendo esse fogo, as religiões em sua grande maioria ensinaram a sublimação, o sexo sem ardência. Catequizados que fomos, a maioria dos seres matam o desejo, a vontade, o querer. De modo que, antes de chegarem ao Hades, já chegam mortos, arrefecidos. Esses não suportam o olhar imperativo do deus dos mundos infernais que nos pede conta sobre como lidamos com nosso fogo que queima, devora, isto é, como lidamos com o desejo, a vontade e o querer? Por mais que não lidar seja um lidar, ninguém mente para Plutão. Como se o mito quisesse nos dizer e dissesse: “na morte todos estão nus. E não há nenhuma veste para nossas vergonhas.”

Hades é o sem pudor. É aquele que sensualiza a santa, que não se choca em ver a mãe como mulher. Hades é aquele que sacraliza a puta. A frase de Hades à humanidade poderia ser: “nada do que é humano me choca!” E Hades sabe que o humano é esse hiato entre o animal e o angelical, entre Demeter e Zeus, entre a Terra e o Céu. Mas, não importa, não se chega nem a si mesmo, nem a nenhum desses outros lugares sem se passar por lá. Sem se reconhecer no espelho de Perséfone, cuja única beleza que reflete é a da própria nudez sem vergonha. Isso é infantil e ao mesmo tempo o ápice da maturidade do ser. Estar em paz com os próprios desejos, com a própria vontade, com o próprio querer. 


Estar em paz com os desejos e poder compartilhá-lo com o outro, partilha que sabe e compreende que nesse espaço cabe a ausência, a distância. Creio que seja essa uma das chaves de entendimento... Quando a tensão entre Hades e Perséfone amplia, ela vem a superficie, ele se faz invísivel. Nesse respeito, o amor prevalece e o desejo não arrefece. 




Vamos à entrega. 

segunda-feira, 7 de julho de 2014

QUATRO ESTAÇÕES- 2° MOVIMENTO: a auto sabotagem


2º MOVIMENTO:

Como estamos falando de Primavera, sou remetido a falar de Demeter, deusa da agricultura e especialmente da sua filha com Zeus, Perséfone, a esposa de Hades, deus do mundo subterrâneo. A partir deles pretendo falar do restante das estações e dos processos que se desenrolam no subterrâneo da nossa psique: medo, auto sabotagem, entrega.

Demeter é linda como um dia ensolarado. Perséfone é fruto do amor e da conexão de Demeter com o universo. Homens compreendem pouco dessa profundeza, dessa interação tão intima, rítmica entre mãe e filha. E devido a essa incompreensão, Hades “rapta” Perséfone para viver com ele nos mundos subterrâneos. O que eu escrevo agora são as biografias não autorizadas de cada um desses personagens. E conto, porque eu vivenciei todas essas histórias, acompanhei e negociei cada capítulo e momento de tensão.

Quando Hades “rapta” Perséfone, uma tristeza de morte invade Demeter. Uma tristeza, uma culpa que é anterior a Eva, é quase maldição de Pandora. É uma dor que antecede e gruda em todas as que nascem com a abertura do triunfo. E esse sentimento devastador, desolador, Demeter e nenhuma outra deusa conheciam. E aqui é a densidade da história.


Hades conhecia, mas ninguém acreditava nele. Os irmãos olímpicos nunca compreenderam muito aquela sua invisibilidade diante da vida, acompanhada de uma fúria irascível perante os acontecimentos. Mas, uma garotinha, por mais feiúra e monstruosidade esse tio pintasse, ou fosse pintado pelos outros, via uma beleza, que nem o próprio Hades enxergava. Esses olhares femininos!!!

Foi assim, que ao fazer 15 anos, Perséfone foi conduzida ao Hades. E aquele mundo no qual todos se assombravam, que quem entrava não saía, que era repleto de dores e ranger de dentes, ela colocou leveza, desculpe-me Afrodite, ela levou beleza. O Hades nunca foi o mesmo, nem enquanto espaço, nem enquanto tempo, nem enquanto ser. Uma única presença e alterou tudo, como se antes de ela nascer, ela já estivesse fadada a ser esse ponto de equilibro, de tensão entre dois mundos.

Nunca disse, mas amo Perséfone. Não apenas por carregar um Hades inteiro dentro de mim, mas por ela não correr das cicatrizes, machucados, feridas que trazemos de batalha. Por ela conseguir amar e olhar para além da armadura que colocamos e do elmo de invisibilidade que temos. Sim, se Perséfone é a Primavera e com isso traz o feminino. Hades é o inverno e por vezes o masculino. O outono e o verão serão as estações negociadas entre Hades e Demeter. São os pontos em nossa psique que podem ser negociados, compartilhados, quiçá entregues.  

É impossível não ser seduzido pela “inocência e candura” de Perséfone. Falamos das deusas para que cada mulher nas suas múltiplas faces se reconheça Perséfone, Demeter, Afrodite e outras tantas. De igual modo que compreendam seus filhos, maridos, namorados como Hades, Zeus e alguns outros. Percebam como representação. Demeter é o atributo da mãe, da geradora, da cuidadora, da criadora. Perséfone é o atributo da filha, aqui quero vê-la como a desviada, a menina doidinha que ninguém entende o que esta fazendo: se ela tem tudo, por qual motivo ela esta se envolvendo com esse povo barra pesada do Hades?

Porque ela tem o vazio existencial. Porque ela sabe e sente que tem mais coisas entre os campos de centeio e os mundos infernais do que está sendo mostrado, esta sendo dito pelos seus pais. Porque há uma parte de nossa alma que necessita se alimentar e por vezes se nutrir desse universo mais denso, pesado, trágico. Porque ela tem a curiosidade das buscadoras da verdade. A mãe dela quer ir fazer compra no shopping, quer que ela seja bailarina, quer que ela case com um bom partido, mas ela necessita de outra dosagem de adrenalina. Demeter espera que sua filha reine sobre a Terra, Zeus, seu pai espera que ela viva no Olimpo, nos céus; e é curioso como que a partir do céu e da Terra, ela esta destinada a imperar nos mundos subterrâneos, que é quase a justa medida entre o reino dos seus pais.  

Há uma Perséfone em cada mulher. Uma que necessita transgredir, ir além do mundo demarcado pelos pais, pela família, pela própria sexualidade dela. Perséfone é a puta no sentido mais sagrado do termo. É a que vai se fazer mulher desafiando os limites dos pais, rompendo e quebrando fronteiras, até que seja capaz de os reconciliar. O trágico disso é que nem todas conseguem a reconciliação, seja com elas, seja com os mundos que elas passam a dividir, ou se expulsam, exilam; de todo modo... O trágico é a auto sabotagem que nos infligimos. Quantas descem ao Hades e não mais retornam? Se perdem? Quantas esquecem o movimento das estações nelas mesmas e passam a se nutrir apenas se envenenando?  

Perséfone é aquela que se deixa raptar por Hades, porque ela também tem o seu inferno, sua dor, sua falta. Perséfone é a menina que precisa encontrar seu lado mulher e fará isso com um homem que vê nela muito mais do que doçura e travessuras.   


Se reconhece?

Falaremos do medo.