sábado, 19 de julho de 2014

AS QUATRO ESTAÇÕES: 3° MOVIMENTO- o medo.


O medo... esse que nos apavora.

Anos atrás, a partir de uma fala genial, magnífica, magistral de Mia Couto, escrevi as impressões que Kryon dizia acerca do medo.


Ele falava que o oposto do amor não é o ódio como pensávamos e sim o medo. É estranho pensar o medo como o oposto do amor, mas cada vez mais acho pertinente. Cada vez mais me assombro como que nos empenhamos em não manifestar nosso amor seja para outra pessoa, seja para pessoa nenhuma, seja para nós mesmos, seja.... De forma geral e quase sistemática, sabotamos o amor e damos as mãos para o medo, numa auto sabotagem sem precedente.

Toda essa situação me faz lembrar Oscar Wilde, talvez nos seus versos mais famosos:

"A gente sempre destrói aquilo que mais ama.
Em campo aberto ou em uma emboscada.
Alguns com a leveza do carinho,
outros com a dureza da palavra.
Os covardes destroem com um beijo,
os valentes com uma espada."

Esse ímpeto de destruição me remete a coragem. Nunca tinha visto amor como coragem até assistir uma peça que tratava do amor. A coragem é a cor com que colorimos a existência.; inclusive os próprios medos. Num primeiro momento, os dias, meses, ciclos que Demeter ficou sem achar Perséfone, destruída pela sua ausência, ela foi secando, murchando, esfriando, até congelar tudo a sua volta. O outono e o inverno foram muito rigorosos e mais complexo, inesperado. Nunca tinha visto algo assim na superfície. Por outro lado, o mundo subterrâneo na ausência de Perséfone era mesmo o inferno- muito calor, muito rigor, muita severidade, muita brutalidade e agressividade. Tudo eram espadas e flechas. Sangue e dor. Imposição e fúria. A dificuldade de cada um lidar com a falta, a ausência era enorme. 

O sentimento de rejeição perante a falta do outro leva à destruição de tudo envolta. Os muitos medos que temos, que nutrimos, que por vezes nos consomem. Assim, retomando às estações, a Hades e Perséfone fico me indagando sobre o medo da nossa beleza. Não a beleza do espelho, mas a beleza da alma. Indago-me também sobre o medo da nossa ternura, da nossa bondade. E isso é perturbador na clinicia, na vida, como que nos assustamos, não com as nossas feiuras, e sim, com a nossa beleza, com o que temos de melhor em nós. Para a maioria, estar diante da própria ternura, da própria beleza, da própria generosidade machuca. 

Esse medo nos apavora, deseja-se correr, fugir, mas o mais comum é destruirmos, agredirmos, machucarmos. Quando conseguimos fazer isso com o outro é um tanto mais justo, porque o outro pode se defender, mas quando fazemos conosco é ainda mais doloroso. O inverno de Demeter machuca toda Terra, mas, especialmente, a ela mesma, é ela que se gela. O mesmo se dá com Hades. Conseguimos formas de nos machucar, nos agredir e por vezes nos destruir que nosso pior inimigo não conseguiria. Aqui eu deveria falar de obsessão, de perseguição, das co-criações destrutivas que fazemos em nossas vidas, mas isso fica para um outro momento. O assustador é como poucos de nós estão preparados para o amor, à felicidade, à prosperidade, à riqueza e todas as benesses que a vida tem a nos ofertar e oferecer. Somos edcados e depois nos construímos para aceitarmos o pior, para lidarmos com as carências, as ausências, os vazios. Somos educados contra nós mesmos. E é talvez esses aspectos que Hades e Perséfone nos trazem. O amor dos dois nos levam a pensar em como os relacionamentos podem limpar, clarear todo nosso mundo subterrâneo de maneira harmonica e de como podemos fazer isso vivenciando o próprio inferno. 




Num segundo momento do mito, da relação entre Hades e Perséfone, vai delineando que estamos falando do lugar do desejo, do querer, da vontade. Estamos falando daquele fogo que acende, irrompe, inflama, insufla os seres de coragem para desafiar tudo, todos, inclusive descer ao próprio mundo subterrâneo. Todo aquele e aquela que já recebeu a baforada do desejo na nuca, que teve o hálito do querer nos lábios do outro(a) compreende o que estou dizendo. Compreende que para ter esse milésimo, esse segundo de prazer... devora-se, morde, puxa para si, abraça, unha, corre, tenta se controlar, se descontrola mais. Qualquer uma que já foi desejada sabe a doce delícia de resistir e se entregar a esse outro que devora, conquista, toma para si. Perséfone e Hades, um diante do outro, nos lembra desse estado, dessa querência, desses instantes. Eles nos remetem ao encontro com aquilo que queremos, mas algo nos impede, uma tensão simbolizada pelo rapto.

Quando olhamos para a jovem Perséfone sendo raptada, podemos insinuar, que Hades viu nela a mulher que ela não reconhecia, e ela viu nele a beleza, a leveza que ele não sentia e nisso podemos ver o rapto com outros olhos. Ser raptada no mito é a um só tempo recusa e entrega, amor e medo, escolha e destino; medo e coragem. É o ímpeto entre a ação deliberada e o desejo não manifesto. É a tensão não abordada entre o medo e o amor.

A singeleza incontida desse frenesi está naquilo que Hades representa e oculta por completo, por inteiro- a morte. Em toda mitologia grega descer ao Hades representa a travessia da alma. Num sentido mais simbólico, esse mundo subterrâneo se fez inferno, se fez chacras inferiores, se fez desejo, vontade, querer, procriação. Fez-se medo, receio, preservação e porque não, repressão.

Temendo esse fogo, as religiões em sua grande maioria ensinaram a sublimação, o sexo sem ardência. Catequizados que fomos, a maioria dos seres matam o desejo, a vontade, o querer. De modo que, antes de chegarem ao Hades, já chegam mortos, arrefecidos. Esses não suportam o olhar imperativo do deus dos mundos infernais que nos pede conta sobre como lidamos com nosso fogo que queima, devora, isto é, como lidamos com o desejo, a vontade e o querer? Por mais que não lidar seja um lidar, ninguém mente para Plutão. Como se o mito quisesse nos dizer e dissesse: “na morte todos estão nus. E não há nenhuma veste para nossas vergonhas.”

Hades é o sem pudor. É aquele que sensualiza a santa, que não se choca em ver a mãe como mulher. Hades é aquele que sacraliza a puta. A frase de Hades à humanidade poderia ser: “nada do que é humano me choca!” E Hades sabe que o humano é esse hiato entre o animal e o angelical, entre Demeter e Zeus, entre a Terra e o Céu. Mas, não importa, não se chega nem a si mesmo, nem a nenhum desses outros lugares sem se passar por lá. Sem se reconhecer no espelho de Perséfone, cuja única beleza que reflete é a da própria nudez sem vergonha. Isso é infantil e ao mesmo tempo o ápice da maturidade do ser. Estar em paz com os próprios desejos, com a própria vontade, com o próprio querer. 


Estar em paz com os desejos e poder compartilhá-lo com o outro, partilha que sabe e compreende que nesse espaço cabe a ausência, a distância. Creio que seja essa uma das chaves de entendimento... Quando a tensão entre Hades e Perséfone amplia, ela vem a superficie, ele se faz invísivel. Nesse respeito, o amor prevalece e o desejo não arrefece. 




Vamos à entrega. 

9 comentários:

  1. Vc é um sedutor!! Acho que o rapto é a sedução e nessas estações, voce tem nos seduzido. Pelo menos meu coração começa a ser raptado. Pamela.

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  2. Ola Pamela!! rsrsrs. Creio que em certa medida todos nós somos. E em parte é essa força da sedução, da atração entre Hades-Perséfone e igualmente entre Perséfone-Hades que estamos falando. Mas, na mesma intensidade, podemos falar também de uma repulsão; isto é, uma força igual, no entanto, contrária, que a traz à superficie e dota ele de invisibilidade. Parece que as grandes paixões, os grandes amores precisam desse espaço para continuarem com folego. É mais ou menos nessa linha que trato na quarta estação. Vamos ver como será. Abraços para vc.

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  3. Assim, Hades seduz pra ser seduzido.
    Lá de cima, Deus deve ficar maravilhado com a beleza do movimento dessa roda.

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  4. Se fosse colocar legenda, qual seria a da ultima imagem?

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  5. Boa pergunta caro(a) anonymous. Eu pensei nesse encontro da alma com o corpo, nesse aspecto seria: SEM VERGONHA!!! ou NUDEZ PROFUNDA. Algo nessa direção. abraços e grato pela interação.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. E você, qual legenda colocaria? abraços!

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    2. Vejo a espera genuína e dela a proporção simétrica que leva ao ponto de equilíbrio.

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    3. Sim!!!! Há de fato uma elegância na imagem. Um movimento de paciência e sabedoria. Gostei da interpretação. abraços

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