sábado, 24 de outubro de 2015

REFORMA: quando a mudança muda a gente.

Interpretadores de sonhos gostam de esclarecer que nada no mundo onírico é por acaso, nada está lá sem querer. Por essa concepção o mundo onírico é uma extensão simbólica de uma representação indelével, inconsciente do nosso ser consciente. Aprofundando ainda mais essas instâncias, alguns veem, leem, interpretam desejos inconfessos, vontades reprimidas, acessos a camadas psíquicas profundas mediante o mundo onírico.

Por minha vez, meu desejo é transpor esse simbolismo para o mundo da vigília. Seria possível observar os fatos existenciais como um sonho acordado? Seria possível conceber a existência como uma realidade repleta de símbolos a espera de ser devorados, decifrados, antes de nos devorar?

É engraçado, mas sim. Pessoas mais atentas às experiências existenciais conseguem descortinar sentidos ocultos por trás de ações torpes, vis, ou banais e cotidianas; transformando o simples em sublime, o inesperado em destino, a vida em uma rede de significados a espera de ser desvelado.



Por esse olhar deflagra-se dois tipos de indivíduos, os esquisotéricos e os maravilhados. Os primeiros seriam um grupo que decalcam a vida para se prenderem e se perderem nos símbolos. Tecem uma rede de significados, de entendimentos, de narrativas nas quais a história, a vida não é mais vida mesmo e sim, símbolo estuprado pela consciência. Eles largam o viver para buscarem sentidos que por vezes querem ficar ocultos, entranhados na coisa mesma. Esquecem que uma pedra é as vezes apenas uma pedra, ou uma pintura não é um cachimbo.



 Já os segundos dialogam com os símbolos, se atentam a sua linguagem, mas não se perdem neles, e menos ainda confundem a vida com o simbólico. Os maravilhados compreendem a mensagem cifrada da vida e continuam a vivê-la, comemorando e agradecendo essas transliterações e decifrações indistintas e imodestas. Sabe poeta que se maravilha com a flor no asfalto? Sabe músico que escuta sinfonia no caos urbano? Sabe pintor que se maravilha com as luzes do dia? Sabe artista que cria um tipo a partir da fala e observação de um transeunte? Pois bem, é desse tipo de maravilhamento que gostaria que nos atentássemos, colocássemos atenção. Aquele no qual uma pedra é um caminho e um cachimbo é uma pintura, mesmo que essa a negue.


É essa dinâmica que quero observar. A dinâmica na qual a vida é dança entre o sonho e a realidade. Essa dinâmica na qual o símbolo é a coisa e a representação ausente dessa mesma coisa. Ver a vida com esses olhos a enche de poesia, de cuidado, de zelo, de esperança, mas não retira dela a sua dureza, sua concretude, sua amargura, sua poesia escura difícil de ler, como nos disse Ferreira Gullar.

É essa observação atenta que os maravilhados fazem. Eles na doença do corpo físico conseguem dialogar com a inabilidade da alma em lidar com determinada questão. Eles no esbarrar em outro corpo estranho, conseguem visualizar o encontro de novas possibilidades, eles na reforma da casa, na tatuagem no corpo, no corte do cabelo, conseguem perceber uma mudança se manifestando. Uma mudança que saiu de um silêncio vazio e informe e vai buscando forma, tom, cor, igual as muitas tentativas do recalque se fazer forma. “Sob qual mascara retornará o recalcado!?” Canta Adriana Calcanhoto que sonha um sonho de arquitetura ideal. E parece saber criar uma vida com arquiteturas possíveis, mas sempre em busca do SUBLIME.

E, esse sublime me trás a memória, minha mãe.

Minha mãe chegando o fim do ano, muda a casa. Às vezes, um sofá de lugar, outros o sofá de uma casa, outras, a parede de cor e outras a própria parede. Nas reformas promovidas por minha mãe desde a nossa infância não era apenas a casa que mudava, nós mudávamos com a casa. É como que ela na sua sensibilidade aflorada preparasse a casa para os novos seres que nasciam, floresciam, despertaram ao longo daquele ano.

Eu sou resistente às reformas, embora adore as mudanças. Gosto das mudanças prontas, acabadas, não gosto do processo que a ocasiona. E, observando esse processo de mudanças, especialmente no que tange ao conceito kardecista de reforma intima. Ocorreu-me essa sobreposição na qual a mudança física está atrelada a uma mudança interna. Quando efetiva-se a mudança externa, visível a todos é porque o estalo da mudança interna já se deu.

Mas, quantos de nós observamos esse estalo? Quantos de nós o escuta com atenção e sobriedade? Quantos de nós reconhecemos esse estalo nos outros antes dele se manifestar?

Poucos, muito poucos. Da mesma forma que somos desatentos ao mundo onírico, somos desatentos aos símbolos da vigília. E, como  não a percebemos em nós,  temos pouca habilidade e sensibilidade para reconhecermos nos outros, ainda que próximos; a não ser quando nos dão as pistas visíveis. Pistas que muitas vezes já são tarde demais.

Mulheres são mais atentas as variações internas, psíquicas que se apresentam a nossa volta. Homens por vezes não conseguem perceber  nem mudanças externas. Ligam pouco para isso.
Não percebemos a unha pintada de cor diferente. Não observamos a ousadia de repicar o cabelo, ou de cortá-lo mais que dois dedos. Não observamos a tatuagem. Não entendemos a razão da cirurgia plástica.
Mas, ela está dando pista de que está ficando mais ousada. E, as vezes essa ousadia é acesa por uma paixão, por um desejo, por uma dentada onírica na maça. As vezes esse desejo cresce silenciosamente e de repente não é mais estalo, nem mudança, nem reforma, é casamento consigo mesma e separação, desligamento seu com os outros. Uma quebra da dependência, um deslocamento interno que se faz acerca do lugar que esse outro ocupava na centralidade da vida dela; mas voltemos a reforma.

Tenho observado na clínica e na conversa com colegas como que a reforma íntima feminina está atrelada a esse processo gradual, lento, mas decidido e não mais passível de retorno ao estado inicial. Depois do estalo interno, o mundo não é mais o mesmo. Depois que se quebra  a redoma, como ave fora do ovo, a busca e descobertas se abrem. A vida ganha desejo de sonho e uma coragem e poder para encara-la de frente. Um viver se faz contagiante e empolgante.

Foi nessa inobservância por parte de umas e observação por parte de outras que cheguei à reforma. Mexer na casa parece ser um convite direto, ou indireto, sutil, ou estrondoso de reformar a relação, de reestruturar as relações de todos da casa, mas, principalmente, do casal.
Uma reforma é o momento no qual, aparentemente, os símbolos se desvelam, se mostram, gerando atritos, dores, dissabores e por vezes se-para-ção.  

A reforma costuma ser um diálogo mudo, as vezes de um só, para colocar uma atenção naquilo que o falar não atinge mais, não presentifica mais. A reforma muitas vezes é o símbolo de mudança que cansou de ser pedido. No quebrar parede, pintar sala, reformar banheiro parece que há um chamado para reformar-se.



E, energeticamente, pode-se imaginar o peteco que isso ocasiona, afinal, na maioria das vezes, a reforma será praticada por um elemento estranho, o pedreiro. Este tende a ser o dificultador. Simbolicamente, o papel dele é esse. Explorar a paciência, a consistência do casal e dos familiares até o limite da transcendência ou da imanência, nunca se sabe até a reforma terminar.

O pedreiro, o marceneiro, o serralheiro, tende a se fazer o mediador e catalisador daquelas energias inconscientizadas, irrefreadas, não ditas, não manifestas. Esses caras parecem aflorar cada uma dessas energias e colocar os moradores em estado de exasperação, ou de maravilhamento. Colocam atenção naquilo que não se queria ver. O simbolo decalca diante de todos. 

De todo modo... dialeticamente, a reforma significa que alguém da casa mudou e precisa mudar a casa para todos caberem. É um esforço ainda para se estar junto. A mesma dinâmica implica também, que a casa mudou e alterou seus moradores. Os moradores mudaram e buscaram adequar a casa a essa nova mudança e reforma. 
O interessante é perceber que muitas vezes o parceiro não mais caberá dentro dessa morada, porque na reforma intima que você realizou, ele não cabe mais na cama de casal.