segunda-feira, 15 de agosto de 2016

OTELO: amor, ciúme e tragédia.



Nós seres humanos somos complexos. Mesmo falando de uma mesma coisa a interpretamos e a sentimos de forma diferente (amor, ciúmes, por exemplo). E sentimos o mesmo por coisas, razões, motivos diferentes e diversos, causando tantas dores, aflições, desencontros. 

Sabe a moça auditiva que se relaciona com o cara material? Ou seja, enquanto ele espera que a moça mostre o seu amor lhe dando coisas, o tocando; ela espera que o cara lhe demonstre amor dizendo. E nenhum dois percebe que ela o toca dizendo eu te amo! Como gostaria de ouvir. E ele a ama lhe dando tudo que ela sonha. Como ele gostaria de ser tocado. 

Os dois se amam, mas constroem um vazio entorno de si mesmos cuja separação é um alívio e uma desilusão. E, eu sempre pergunto as Moiras e aos Poetas que assumem esse lugar de construtores de destinos: por que diabos vocês não colocam como casais pessoas que tem a mesma forma de amar?




E elas respondem com um sorriso nos lábios: colocamos, mas dessas vocês preferem ser amigas. 

Já os poetas, para mesma pergunta dizem sempre emburrados: “porque o romance é só um passatempo do destino. O cerne é aquilo que vivem sem ver. É nisso que acontece o sentido.”



Reza a lenda que "Mondi" havia dito que só pintaria os olhos de sua amada depois de ler a sua alma. Pouco depois de conseguir, ele morre e ela suicida. Por que somos trágicos? Não vou falar da sacanagem que Rodin submeteu Claudel também por ranço trágico e vou parar com os exemplos senão irei expor muitos amigos, a mim também. Mas, já não basta? Já não fizemos arte demais, amor demais? O que mais queremos? Por que não conseguimos amar fora do trágico?


Um amigo chegou para mim em tom de lamento e disse: “não sei o que é ciúme. Nem por objeto, nem por pessoa. Nunca senti ciúmes e isso é uma bosta para os relacionamentos.”

Uma outra amiga nos disse numa mesa de bar: “tenho ciúmes até dos meus amigos. Se é meu amigo, minha amiga, não pode ser mais amiga de ninguém, pode conhecer, mas ser amiga de outra pessoa é uma forma de traição.”

Eu vou escutando sempre atentamente e sempre querendo compreender mais e melhor. E, um dia numa conversa com Lua Nova, quando comecei a desenhar esse texto, ela me mostrou o ciúme. Um sentimento que não tinha, que não visitava, mas que abri um pequeno buraco de fechadura para visualizá-lo. Nossa!! Perturbador.

Ela me fez recordar cenas desmedidas, descontroladas de um passado distante. Cenas patológicas de quem num rompante, num repente, têm os sentidos apoderados por um misto de fúria, de excitação, de raiva, numa intensidade tamanha que o universo todo se reduz a um alvo, a um objetivo. E todos os sentimentos precisam ser ato e enquanto não são não há nada a ser feito, porque todo pensar, todo sentir existe para dar terminalidade a esse pensar-sentir que não finda e roda na cabeça—coração insuportavelmente.




O ciúme é mais perigoso que a morte. Recordo de cenas homéricas desta vida de ver carros de colegas depredados, e como segurar a mulher? Quem ousa tocá-la? Ela fica possuída de uma força, de um tormento, de uma dor, de uma raiva e também de uma culpa que devora, ataca, maltrata, mas sofre e dói. E como a pessoa se liberta disso?

Por que o que eu vi é que o ciumento dói. Na verdade, o ciumento é todo dor. Não há nele uma parte da alma suscetível ao toque. Todo ele é um ser dolorido, onde quer que você o toque, até mesmo por um sopro, pode lhe causar dor. O lado interno do ciúme é essa dor incessante, constante, permanente a martelar na mente do ciumento.
Mas, por que estou falando disso?



É que o ciúme são muitos. E, pessoas como o meu amigo que não sentem ciúmes desestabilizam os parceiros nas relações. Há algo na parceria que se não pede o ciúmes, exige o cuidado, a atenção. Há algo nas relações que se espera do outro um sentimento mínimo de importância, um aceno de mãos, um sorriso, um agrado, uma proteção. Há algo no ciúmes que roda junto com a nossa concepção trágica de amor. E acho que precisamos começar a escrever e a inventar novos roteiros, nem que para isso seja necessário a criação de novos atores e atrizes.

De modo geral, o não ciumento não compreende essa necessidade trágica das relações, essa forma mais doentia de sentir-se amado(a) e isso acaba provocando medidas cada vez mais ousadas e desesperadas da outra pessoa. As medidas passam por um flerte, por um ato falho, por uma troca de olhar, por uma troca de email, por um nudez pelo Messenger, até o ato em si. Tudo isso, toda essa escalada tem o intuito de despertar no outro atenção, cuidado, ciúmes, um sentimento de pertença. Um misero olhar de ciúmes.







Dá para entender isso?











Sair de si mesmo(a) para tentar chegar ao outro? Machucar a si mesma(o) para conseguir de alguma forma tocar o outro, tirar uma expressão do outro, nem que seja de fúria e de dor? Porque o ciúme depois que se espreme é só fúria e dor.

Esse universo tenso entre frustrações, expectativas internas, dores, relacionamentos e decepções externas me parece o segredo da tragédia, me parece o cerne da dramaturgia do maior de todos os dramaturgos da língua portuguesa, Nélson Rodrigues. Que, nessa obsessão em decifrar esse universo maldito dos sentimentos profanos, disse: 


Trair um amor é uma impossibilidade. Mesmo com outra mulher, é o ser amado que estamos possuindo”.

Muitas mulheres jamais compreendem que uma transa pode não ter significado nada. Que o parceiro transou e continua amando, talvez até mais e em alguns casos, o vazio interno do sujeito o levará a transar com muitas mulheres apenas porque ele não pode ter uma, ou tem e não consegue fazer com essa uma, o que lhe dá prazer fazendo com todas. De como essa obsessão pelo ente amado, por essa falta o coloca tragicamente longe e distante de quem ele ama. E, porque ele não ama de outra forma? Por que ela não consegue amar de outro jeito? Talvez por ser trágico.  




Deveria falar mais desse universo tenso, dessas observações que ele desenhou tão bem, mas prefiro ir com Otelo. Mas, um dia retornarei a essa frase.



II OTELO "Acautelai-vos senhor, do ciúme; é um monstro de olhos verdes, que zomba do alimento de que vive”



 Não se conheceu na dramaturgia ser mais ciumento do que Otelo. Mas, a grande questão é que Otelo é mais do que um personagem de ficção. Otelo é um lado nosso, guardado em alguns, a mostra em outros, mas um tipo que se encontra em cada paixão. Onde tem uma paixão há um Otelo em potencial. Foi mais ou menos isso que vi pelo buraco da fechadura.

Quando lemos, vemos a peça de Shakespeare somos conduzidos a ver Iago como um crápula, um ambicioso desvairado, um invejoso e rancoroso. Mas buscando uma interpretação mais psíquica, o que percebo agora é que Iago pode ser compreendido como uma voz interna do próprio Otelo. Iago não teria tanto poder não houvesse tamanho vazio, medo em Otelo.

E aqui é o curioso. Otelo é um vencedor. Otelo é um conquistador. Otelo é temido pela sua bravura, pela sua fúria, mas Otelo tem uma vulnerabilidade que foi explorada por um falso amigo. Uma fragilidade que o levou a ruína.


Como alguém iria supor que por trás de tanta bravura há uma profunda insegurança? Como acreditar que no mais fundo de si mesmo, Otelo desconfiava de tudo o que era, de tudo o que conquistou, especialmente da mulher que lhe ama. Como alguém saberia que quando Otelo se olhava no espelho ele não via o homem temido e respeitado que os outros viam e sim um saltimbanco qualquer, quase um vira-lata do reino? Quem iria supor que por trás de toda auto afirmação de Otelo havia uma inferioridade?

Esse é o trágico, ele também não sabia. Esse é o divertimento dos poetas: nos ensinar a ver de forma enviesada, invertida, aquilo que não veríamos. Rindo da estultice de Otelo ou se enervando com sua sandice, podemos olhar para nós e reconhecer num primeiro momento nosso ciúme.

No entanto, os poetas querem que descubramos, em nós, aquilo que existe em nossa alma, que se alimentada, é capaz de colocar tudo a perder; absolutamente tudo. E, não descobrimos isso vendo Otelo, apenas vivenciando essa personagem, essa tragédia. Mas, para que viver esse enredo até o fim? Por que não alteramos o final?  




Iago sem querer, meio que por acaso, acha uma vulnerabilidade entre aquele ser invencível e imbatível. A voz de Iago consegue alcançar espaços que nenhuma flecha, lança e espada conseguiria.

O assustador é que todos temos essa voz e basta um sopro, um cochicho para que elas comecem a gritar dentro da nossa cabeça de forma incessante- “ela te trai!!! Ele mente!! Está com outra!!!” Alguns vão controlar essa voz. Não darão crédito a elas. Já em outros(as) essas vozes vão se apoderar da mente, do corpo, dos atos, da vontade, dos desejos. Essas vozes irão enlouquecer a pessoa e quem está perto. Para os poetas e as Moiras, Iago é um fantasma que ronda nossos destinos. Uma voz que grita as razões e os motivos de não confiarmos no fato que o outro nos ama. 

Yago foi esse sopro, essa voz externa que alimentou o fogo corrosivo e putrefato que Otelo já tinha. Mas, de onde vem essa energia? Pelo menos no caso da relação entre Otelo e Desdemona? De onde vem a energia do ciúme? 


Se de alguma forma falamos da energia do ciúme, como é a energia do ciumento?

O ciúme é uma energia que ronda as relações, paira no ar. Já o ciumento é aquele que incorpora a energia do ciúme. Ele(a), os dois, dão a ela contornos, formas, relações que temperam, apimentam, azedam, borram de sangue várias vidas. É essa relação do ciumento e da vítima do ciúme que tocaremos abaixo, porque esse é o trágico. Um circulo vicioso, viciante, que ao ficar doentio coloca tudo a perder, inclusive a Si mesmo. 



III- DENTRO DO TRÁGICO

Da mesma forma que não se viu ser mais ciumento que Otelo, também não se viu alguém tão fácil de ser manipulado. Talvez pelo ciúme ser o mais veemente dos instintos, ele favoreça tanto a manipulação por um terceiro que capta esse medo, essa angústia, essa paranoia de ser preterido, de ser trocado, de ser esquecido; ser traído.


Em verdade, ciúme, medo de abandono, o pavor de ser traído, trocado, zombado, passado para trás, não se desassociam. O ciúme é tão doentio e tão feio, porque ele na verdade são muitos instintos e sensações juntas. A maioria delas tão primárias, tão irascíveis que dominam os seres, apoderam deles, os torna um bicho, uma fera. O ciumento está aquém da razão. Está um passo fora da humanidade na medida em que caminha para violência e não consegue desenhar nenhuma possibilidade fora dela. O ciumento é toda barbárie em si mesmo. Ele trás toda a horda em si. Toda vontade de acabar com o que sente, extinguindo o outro. Todo desejo de controle, de posse, de domínio.

O ciumento deseja um desejo que o transcende e a falta do mesmo o alija, o deixa tão vazio, que o outro não é alteridade, é parte dele amputada, mutilada. O ciúme envenena a alma.




No seu nível primário o ciúme atrela-se a posse, a propriedade, consequentemente ao apego. O outro é tido como uma extensão dele, e a aproximação, a tentativa de recusa desse outro lhe dói na alma. Quando o ser amado diz não, para o ciumento é similar a parte do corpo dele que não mais lhe obedece. 




Imagina sua mão com vida própria? Como conviver com isso? Como tolerar isso?

Assim, entramos num segundo nível dessa energia, a perda, o abandono. O ciumento, a ciumenta tem medo da perda, desse vazio insuportável do abandono. Afinal, como que o outro, ainda que por amor, aceita renunciar-se? Uma coisa é a sua mão direita que faz parte do seu corpo, outra é a mão direita de outra pessoa que pertence a outro corpo. O ciumento num processo de identificação passa a acreditar que não apenas a mão do outro(a) é dele, como também os desejos, as vontades, os sonhos dessa mão e sobre essa mão. E, sim, o ciumento tenta se apoderar de tudo, porque ele deseja um controle. 

O terceiro nível, como não poderia deixar de ser diferente é a conjunção de ambos: a necessidade de controle, que configura a neura que sai do espaço mental, das vozes internas que assombram os medos internos para ganhar ações desmedidas, descabidas, incontroláveis no mundo externo.

Falo da transformação do outro em mero objeto. O outro, a outra é transformada em uma parte decorativa dessas vozes, desses fantasmas que não sabem lidar com a rejeição, com o abandono, com o vazio. O outro some, desaparece já que está incorporado a ele. Não há outro e sim parte dele que teima em ter vida própria, existência própria, até que não tenha. Até que não vendo possibilidade nenhuma de incorporar esse ser dentro de si mesmo, a não ser provocando a submissão absoluta, a negação absoluta do si mesmo (a), que existe no outro; mata-se.

Em resumo, o ciumento sofre e faz sofrer, porque transforma o outro em sua propriedade, em uma projeção dos seus espaços mentais nos quais nenhum outro(a) deveria entrar e ocupar. 

Nenhum ser foi criado para ter sua existência tragada, absorvida e devorada pelo ser de outra pessoa.

Sei que isso é o que buscam os poetas: criação de seres que existem apenas em suas cabeças, com o intuito de fazer o que desejam e esperam. Mas, a vida não é uma ficção. Ou é?




Otelo envenenado pela própria mente era levado por Yago a cometer os atos mais impensados, a ter as piores inclinações. Ele não enxergava mais Desdemona, ele não conseguia vê-la. Diante dele estava a imagem da dor, do seu tormento. Mas, a questão que me ocorre é: por que continuamos a escrever, atuar, criar esse roteiro? Por que acreditamos que o amor é drama e tragédia?

ATO FINAL

Todos nós temos casos, ouvimos casos que sabemos como acaba. Não há uma virgula nova, não há um sorriso novo, mas afinal, por que continuamos acreditando que o amor é a maior tragédia que possa nos acometer? Pode-se escolher amar? Teríamos em nós essa capacidade de amar somente a quem nos ama? Algo como um botão de liga e desliga? É o amor de fato um destino? Podemos não amar? Rir do Cupido e das suas flechadas? 

Talvez não. Nem deveríamos cogitar fugir dessas perguntas, numa tentativa inaudita de se fugir da nossa predestinação: nascemos para amar. Cônscios desse nascimento, deveríamos receber o amor e acolhe-lo como o grande presente e o grande sentido. Acolher o amor como um ser que nos leva a transcender a nós mesmos e por vezes o além de nós. 




O que precisamos é iniciar um movimento interno no qual o amor guarde o lugar de algo que nos remeta à Felicidade, nos remeta mais ao autoconhecimento do que a posse do outro, mais a satisfação intersubjetiva do que ao vazio da perda. 

Penso que está na hora de criarmos outros roteiros nos quais os amores são possíveis sem drama, sem tragédia. Roteiros nos quais cada dois compreenda sua forma de dizer eu te amo e esteja disposto(a) a falar outras tantas. E no roçar de línguas, criem novas linguagens, que falam de novos amores, de novos heróis, de novas musas e heroínas. Amores possíveis como um beijo na boca.