terça-feira, 26 de dezembro de 2017

A DANÇARINA


Meus olhos ficam fixos ao corpo dela. Um corpo que tem inteligência de alma, encanto de terra, tipo castelo de areia feito por crianças imersas no ato de brincar. O corpo dela se movimenta como serpente- pura sedução ondulante. Exala padrões como harpa alada. Fico olhando para ela e tentando traduzir o que os movimentos dela provocam em mim e sem descrever parte por parte, reparo que meus olhos cintilam, pulsam os sentimentos e desejos do meu peito. Mas, por um instante, quando consigo sair desse torpor que a sua dança e seus movimentos me envolvem, observo ao redor que o meu olhar não é único. Todos a olham. Todos a cobiçam. Todos a desejam e as moças a ‘invejam’. Do corpo dela sai padrões de luz que magnetiza o ambiente. Diante dela somos seres hipnotizados. E fico me perguntando: o que será de nós se ela nos escolher? Como um homem pode dar conta de toda essa energia? De toda essa sensualidade? Como compreender que isso é ela, dela e não deveria ser controlado?

O mais comum é que ela escolha um de nós que tem a força suficiente para orná-la, mas por ironia muda da vida, por despreparo, acaba-se por cerceá-la, limitá-la, podá-la e há casos até de espancamentos. Trágico e estúpido final do despreparo. O mais comum é que ela seja aprisionada. Afinal, como resistir a força dessa graça, dessa leveza, dessa beleza? Poucos resistem, poucos a compreendem. 



Estou buscando caminhos, indicações entre as dançarinas. Aqui, conto apenas alguns padrões que vi, observei de como que na privação da dança morre-se a alma. Como que na servidão voluntária a um amor, a um parceiro, a uma família muitas dessas mulheres se mortificam. O contraponto importante é que as mulheres comuns (não que seja possível ser comum e mulher), as mulheres que não dançam, se aprendessem a dançar; praticar a dança pode trazer a elas esse empoderamento, esse engajamento da alma com o corpo. Essa sedução sem culpa que amalgama o gozo com a beleza infinita do instante. Aquele brilho no olhar que acende estrelas e faísca corações. Esse caminho, esse encontro, se faz muito possível pela dança.

Bom, agora que já marquei o ritmo, demos uma cadência, posso fazer volteios, segure minhas mãos e já voltamos para os mesmos passos.  

A mitologia fala das sereias. Naqueles relatos somos levados a acreditar que o poder de sedução das mesmas vem do som, vem do canto, mas conversando com Ulisses ele me contou que não era bem assim.
Reza a saga que Odisseus/Ulisses em seu retorno a Itaca, sabendo que passaria pela ilha das sereias coloca cera nos ouvidos dos seus marinheiros e se amarra ao mastro do navio, dando ordens de que não o desamarrassem por nada. Odisseus o mestre das estratégias estava seguro que era o som, o canto daquelas sedutoras que causava naufrágios e desastres às embarcações. Não era bem isso como ele irá nos contar. 

Vejam, que Ulisses não podia se dar ao luxo de se deixar seduzir, porque Penélope sua amada o esperava. Enquanto todos o davam como morto, enquanto preparavam o casamento dela com outro, ela criou o ardil, a estratégia de se casar somente depois de tecer seu manto. E, assim durante o dia, a frente de todos, ela tecia e a noite, entre lágrimas esperançosa, ela desfazia o que havia tecido, enrolando seu casamento por anos. 

O que Homero não nos conta, mas nos deixa implícito é que ambos se moviam em direção ao seu amor. Ou melhor, ambos não se perdiam, porque tinham um amor para reencontrar, recuperar, dizer adeus e isso os uniu mesmo a distância. Isso os fez um, mesmo quando separados fisicamente.

O tempo de Penélope junto a Ulisses permitiu a ela encontrar ardis, estratagemas racionais capazes de congelar os desejos dos homens. Já Ulisses absorveu de Penélope a segurança de não se deixar hipnotizar por nenhum outro olhar afora o dela, nenhum outro corpo senão o dela e nenhum outro canto, senão o dela. Que ensinamento mais estranho é esse? Mas, é o ensinamento do corpo, é o ensinamento da dança.

Penélope me contou esse seu segredo que fez com que mesmo diante das sereias, seu amado voltasse, ela me disse: “eu danço para ele todas as noites!”

Os leitores e as leitoras mais desatentas, menos afeitas a essa energia guardada no corpo deve estar se perguntando: e acaso dançar para um homem faz com que ele retorne todas as noites para casa?

Penélope deve estar rindo, como somente as gregas riem, com aquela ironia que Sócrates aprendeu de sua mãe. Aquele riso cínico, estoico, brejeiro, debochado, vencedor, como quem diz: “não querida, dançar para um homem não faz com que ele venha para casa todas as noites, faz com que ele não tenha nenhuma outra morada fora do seu corpo.” 

É estranhamente mais forte. É estranhamente mais grego e isso Platão não compreendeu, consequentemente o cristianismo também não e repudiou o paganismo, enfim, eles censuraram o corpo, acharam que limitarias as mulheres quando na verdade castraram os homens. Qualquer sereia nos seduz. Não que as sereias não sejam encantadoras, é que elas são uma parte das mulheres e quando elas (mulheres) são privadas de lidarem com essa parte delas, nós desaprendemos a totalidade da entrega, da confiança, da segurança que Penélope possui. 

Antes que eu me esqueça, Penélope era uma eximia dançarina. Uma mulher grega aprende a reverenciar a deusa Héstia, a deusa da lareira. Um dos componentes fundamentais desse ritual é mexer os quadris. É acender o fogo, o caldeirão sagrado. Algumas precisam fazer isso para muitos homens, algumas apenas para um, mas todas elas fazem na dimensão do sagrado. 


Saio do mito e volto à realidade, porque essa energia da dança me fascina. Toda mulher deveria dançar, obrigatoriamente, uma vez por semana. Deveriam se reunir igual nós homens vamos jogar futebol, vamos ver futebol, mulheres deveriam se reunir para dançar. 
As escolas deveriam ensinar as meninas no ensino médio a dançarem e nessa dança que pode ser sagrada como a dança cigana, a dança do ventre, ou pode ser quadradinho de oito. 
A mulher só entende a sedução se ela dança. E é aqui que quero falar desse conflito, dessa ruptura. É aqui que quero retornar os passos que Odisseus me contou e Homero não relatou porque ele pediu segredo de 2700 anos. 

Ulisses falou que a sedução das sereias não era o canto, um cego as ouviria e sairia ileso. Não estava na beleza estonteante e impactante, seus marinheiros a viram, mas por não a escutarem continuaram. O segredo delas é que a voz é forma e a beleza é som. A sedução se dá na mistura fina, refinada do canto com o rosto; do rosto com o movimentar do rabo; o rabo com o movimento dos cabelos. Movimentos que Ulisses via todas as noites no bailar e locomover de Penélope e no centramento que ela lhe ensinou- amarre-se no seu mastro. Como ele acabou sendo colocado no navio. Contava ele que naqueles momentos, ele se conectava a sua amada em Itaca e só queria estar junto dela. A sedução das sereias uniu uma parte dele que lhe faltava consciência. E, quando as sereias não conseguiram seduzir, elas se perderam, dizem que morreram. Na verdade, elas despertaram para a beleza do ser mulher. 

Em suma, Ulisses me mostrou que toda transcendência é corpo, sensualidade. É o corpo que transporta a alma para outro nível.

Mentira, é uma linguagem que só pode ser mostrada, por isso Homero não disse nada, não escreveu nenhuma linha e eu me silencio agora. 


Voltando aos passos sem volteios:

Meu universo de pesquisa é pequeno, atendi apenas cinco partilhantes com esse padrão da dançarina. Conversei com outras dezenas, que esporadicamente dançam, mas os padrões não são tão fortes. O que me chamou atenção nas dançarinas é o que elas movimentam enquanto elas dançam.

Somos levados a acreditar que é o corpo delas que está movimentando, mas isso é um olhar superficial, apressado. O que está movimentando nelas é a alma. Não apenas a alma delas. Na dança elas se conectam a alma de muitas outras, a alma dos parceiros, dos amantes, dos maridos, o alcance é ilimitado e exponencial. De repente, elas estão preenchendo o ambiente e todos os olhares se voltam para elas. Nesse momento, ninguém vai acreditar, mas já não é mais uma mulher é uma deusa em movimento. Essa mulher é capaz de trazer para si tudo o que ela deseja, tudo o que ela quer. Nós homens nos rendemos diante dessa sacralidade. A sacralidade do corpo, da alma, do olhar, da boca. A sacralidade da alma que ao se permitir corpo, ao se saber corpo personifica e presentifica o espirito; a deusa, a mulher. 



Mas, como as dançarinas lidam com essa força? Com essa alma? Como que os companheiros lidam com essa alma e essa força? Não vi nenhum caso bem sucedido. Entenda por bem sucedido, meu olhar, minha decisão de quem tem a arrogância de estipular um mundo ideal para o outro. Muitas delas vivem bem, sentem-se bem. No entanto, eu vejo uma falta.

Algumas delas fecharam uma companhia de dança, porque os companheiros não suportavam os assédios que elas recebiam. Outras se casaram, largaram a dança, tem filhos, sentem-se bem, mas não conseguem compreender o motivo da vida delas ter parado. Literalmente parado, elas não conseguem fazer nada, realizar nada, trabalhar com nada e o que a alma dessas mulheres me pediam era música e movimento. 

E, as que voltaram a dançar, voltaram a movimentar uma energia na vida delas, na vida deles, mas que retoma a problemática de Ulisses e Penélope: o que nos torna casal? Continuamos sendo dois mesmo à distância?

Finalizando, o que eu percebi pelo relato delas é que os homens não dão conta de lidar com essa energia. Seja por insegurança, seja por desconhecimento, o movimento natural é de posse, de aprisionar, de controlar. Muitas aceitam esse movimento e matam o corpo, a alma, o espirito da deusa, desencontram-se de si mesmas, desconectam-se delas mesmas. Traem-se e sim, serão traídas. Porque o que enfeitiçou o parceiro foi o movimento da sereia, que ela perdeu, abriu mão e esse movimento seduz, arrasta, destrói se a própria dançarina não tiver ensinado o cara a se amarrar no mastro do navio.

O mastro do navio, nesse momento, para o encerramento desse post é a dança que a mulher faz para o seu parceiro. É o ensinamento silencioso, trocado entre ambos, que ajuda a cada um lidar com o sexo oposto e a contraparte interna de cada um. Não obstante, o manto a ser tecido é o estratagema que o parceiro deixa à dançarina e que Maiakowiski escreveu para Lila tão bem e belamente: “afora teu olhar, nenhuma outra lâmina me seduz.”

Reduzimos isso ao sexo, a penetração, as posições de kama sutra, mas isso diz respeito a um engravidar da alma, a compreensão de que aquela mulher é deusa. Nela se confunde e se mistura o profano e o sagrado, a puta e a santa. Quando ela dança para ele, ele sabe disso e reverencia. No caso reverenciar é olhar, tocar, pegar, cheirar, explorar os sentidos, ir além deles e voltar para casa. O sagrado grego, pagão é a integração de corpo e alma sem divisão, sem culpa, sem pecado. A oração se faz em vida, na imanência da carne, no desejo pelo corpo um do outro, na totalidade desse encontro. Essa casa que é morada dos dois. Casa que é lugar onde um habita o outro sem invasão. Casa que é a abertura de mundos possíveis e sonhos inimagináveis. A odisseia da vida na lareira dos quadris. 



                       Vem rápido dançar pra mim!