domingo, 25 de novembro de 2012

50 TONS DE CINZA: amanhecer ou Crepúsculo de outra sexualidade?





De tempos em tempos ressurge no cenário mundial livros que tem como principal função mexer com os desejos e fantasias sexuais do casal, ou mais precisamente do universo feminino. Recordo-me de ‘A Vida Sexual de Catherine M’ que fez bastante sucesso ao narrar as próprias peripécias sexuais com os mais diversos homens, muitas vezes sob o olhar vigilante e excitado do marido. Mais recentemente tivemos Bruna Surfistinha, que dispensa maiores apresentações.

O que reputo interessante nessas propostas literárias como a mais recente: ’50 Tons de Cinza’ é que as mais diversas tramas acabam por pontuar bem especificamente algo sempre presente no universo feminino- o amor romântico. Pelo menos é isso que deixa subentendido outra trilogia de tom menos picante, mas igualmente erótico e de grande sucesso- Crepúsculo: o doce vampiro. 

No meu imaginário os vampiros são a anti-vida. O desejo deles por vida e viver é tão amplo, tão grande, que acabam por negar a vida no que ela tem de mais humana e importante- a morte. A eternidade no corpo, nos moldes postos por Drácula e similares, é a bestialização, na verdade, a animalização que será saciada no desejo de sangue. Mais do que desejo, a necessidade de se alimentar do sangue humano para saciar-se e sobreviver. Nessa busca pela vida outra antítese se apresenta- a impossibilidade de contato com o sol. O conjunto desses aspectos culmina com a forma padrão que perdem a vida- a estaca no coração, que por sinal é de pedra, empedernido, proibido de sentir.

Por isso tudo Edward Cullen, vampiro de Crepúsculo, é o anti-vampiro. É jovem, bonito, solitário, pode ter contato com o sol, na verdade a pele se doura no sol e não se alimenta de sangue humano. Ele não é um vampiro é alguma outra coisa, a saber???

Ele é o monstro humano que as mulheres amam, mas que os homens temem em mostrar. Ele é a representação de um conflito que tem cada vez mais ganhado expressão junto aos casais e nas relações idealizando um pedido, uma suplica feminina: “não se esconda de mim! Mostre-me quem você é! Compartilhe suas fantasias comigo!! Deixe-me ser sua cúmplice!!”

Todo homem e toda mulher sabem o quanto isso é ameaçador. Para o homem esse monstro deve estar sempre invisível, longe do sol, dos olhos da esposa, da namorada. Fomos ensinados que essa ‘monstruosidade’ só pode ser revelada às mulheres da rua, às putas. Já para as mulheres, tendo ou não consciência, foi por esse monstro que ela se apaixonou. Não o monstro enquanto ser bestial, mas enquanto aquela pessoa que ela sabe que a protege, que a devora, que seria capaz de matar meio mundo por ela. As mulheres se apaixonam por algo nos homens que achamos repugnante e não gostamos. Este é um conflito para muita terapia.
Assim, queremos dar nome, rosto, forma, localidade a este monstro. Quero situá-lo e identificá-lo como sendo o DOM do livro 50 Tons de Cinza. 




Na trilogia a mocinha, virgem, apaixonada é introduzida no universo BDSM por um DOM experiente, rico, cativante e sádico. Como um bom DOM, ele precisa retirar a submissão da sua escrava, fazer com que ela se entregue a ele e permita que ele seja o seu dono. Pelo que me contaram o sadismo dele não permite relação amorosa, contato estreito, intimo. Tudo é um contrato. Tudo é frio como o pedido dele de não ser tocado.

Caminho para a finalização. Creio que cada homem traz um ‘monstro’ que o assusta, que ele deixa enjaulado, escondido. Geralmente, de uma forma proporcional, quanto mais se deseja a pessoa amada mais se tende a esconder esse monstro. A ironia é que é justamente esse bicho que desperta a paixão e o amor da companheira dele. Casais não se relacionam por acaso e o que os une é sem dúvida apelos secretos, íntimos, ocultos que quando não são ditos acabam por provocar a separação. Nisso retomo o ponto chave do livro 50 Tons de cinza- o sadomasoquismo.


O sadomasoquismo é a prática que provoca o maior fetiche e na mesma proporção a maior repulsa. Faz parte do desejo, do fetiche ‘monstruoso’ masculino subjugar uma mulher. Faz parte do desejo, do fetiche ‘virginal’ feminino ser submetida, se entregar a um homem. Não estamos falando de estupro. Estamos falando de sexo dialogado, consentido entre dois adultos conscientes em parte, ou em muito, de suas fantasias. Estamos falando da intensificação do binômio dor-prazer, privação-saciedade, entrega-controle. No entanto, como isso é muito feio para ser realizado de forma consciente, na cama com um parceiro (a), agride-se 100 mulheres por hora no Brasil. Matam-se centenas de mulheres por dia no mundo. Isso as culturas de forma geral não acham monstruoso, hediondo, pelo contrário até, recebe-se até incentivo.
Crepúsculo pode ser discutido como mais do que uma história de vampiros e as leitoras atentas percebem isso. 50 tons é sem duvida mais do um livro picante e provocante, ambos trazem a discussão implícita e implicada de uma nova sexualidade. De todo modo a pergunta que se faz é como que essa obra conseguiu contagiar o universo ‘baunilha’? E a resposta que se desenha parece vir da relação entre a ‘pureza’ feminina acompanhada do amor romântico. A mocinha consegue resgatar o homem daquele vale de escuridão no qual ele vivencia suas relações. Ela vai apresentar a ele o amor. E creio ser esta a linha que une Crepúsculo e 50 tons de cinza: o amor.


A pergunta que não cala é que amor é esse? E aí saindo da ficção e entrando na real, nossa concepção de amor é monstruoso. Refiro-me ao amor romântico, a idéia de amor que temos na cabeça e que não corresponde a realidade. É impressionante como esse conceito obnubilado de amor, de amar, afasta as pessoas da felicidade, da cumplicidade, da intimidade. Como que o amor romântico é um amor platônico naquilo que este tem de mais ideal, de mais distante, de mais longicuo, de mais criativo, mas não material. E são essas contradições que dilaceram relações. A expectativa de que o outro seja aquele que você sonha e não aquele que ele é. O desejo e o empreendimento para transformar o outro em alguma outra coisa que não é mais ele mesmo. Esse cansaço ofegante que as mulheres têm em discutir a relação.

Posto isto tanto a namoradinha do vampiro, quanto a sub de 50 tons aceitam o lado monstro de seus amados. Elas diferem em dois aspectos que podemos apontar como síndromes que acometem as mulheres.
A primeira seria a síndrome de se transformar naquilo que o ser amado é. Quase uma anulação da vontade, uma entrega plena para que o outro a molde e a faça conforme ele queira. É isso que fica subtendido em estruturas mais profundas no desejo manifesto da mocinha ser mordida e transformada em vampiro.
A segunda é síndrome da missionária. Para elas o amor é uma salvação. O amor pode tudo, cura tudo, suporta tudo e o mais impressionante é capaz de mudar o outro completamente. Depois de casado ele vai ser fiel, vai ser carinhoso, vai ser trabalhador. Enfim, o amor vai transformar o ser da pessoa. mais grave ainda, ela conseguirá amar pelo e para os dois.
Tudo isso estreita um diálogo entre essas duas obras, primeiramente, porque no fundo a namoradinha do vampiro é uma sub. O ponto positivo é que ela pelo menos não é tonta ao ponto de acreditar como a moça ingênua do 50 Tons que conseguirá mudar a essência do seu ser amado.
Finalizando, diria que relação não se discute se vivencia. Hoje diria, que o que exaspera homens é que discutir relação parece ser uma atuação teatral na qual a mulher esta apresentando um diálogo entre o homem da fantasia dela e aquele que não esta cumprindo esse papel no enredo. A gente fica lá no meio querendo dar pitaco, mas o que esta sendo dito não é muito sobre nós e sim da imagem que se criou de nós. No final todas saem com as queixas: “é a mesma coisa de estar falando com uma porta! Ele não responde! Ele só fica balançando a cabeça! Ele levanta e vai embora como se não fosse com ele!” E para falar a verdade, não é mesmo. 
Mas saindo dessa ficção também, qual amor que não é inventado?

domingo, 11 de novembro de 2012

PSICANÁLISE X ZEN: DUAS FORMAS DE AUTOCONHECIMENTO.




Vou pensar o autoconhecimento ocidental como um caminho que se faz pela racionalização do caminho e do autoconhecimento oriental aquele que se faz percorrendo o caminho. O primeiro tem na busca pela linguagem seu forte. O segundo no silêncio a sua maior característica. O primeiro se faz ocidental, porque ele traz uma crença tácita de que o universo simbólico, as experiências subjetivas podem ser compartilhadas e expressas pela linguagem. O segundo trás uma crença tácita de que o universo subjetivo e as experiências simbólicas podem ser apenas experenciadas, quase nunca compartilhadas pelo dizer, pelo falar. A primeira corrente tem muitos laços com o que denominaremos ciência e ouso dizer que o fazer científico é uma forma de autoconhecimento. A segunda corrente denominarei de mística. Não tratarei das distinções entre cientistas e místicos, mas o ponto principal é que o alcance dos cientistas, no que tange a publicidade das idéias é maior, infinitamente maior do que a dos místicos. Poderíamos dizer que os cientistas seriam exotéricos e os místicos esotéricos, isto é, estes arrolam um saber mais interno, para um público mais restrito e aqueles (cientistas) um saber mais publicizável para um público mais geral. Ambos necessitam de um ritual de iniciação.

Para ilustrar os primeiros vamos pensar na psicanálise, mais precisamente nos analisados. Para ilustrar os segundos vamos pensar nos místicos, em especial a tradição zen budista. Comecei a me debruçar sobre essa questão, porque alguns amigos da mística (assim como eu) recusam a terapia alegando que já se conhecem o suficiente. Em contrapartida, comecei a conhecer ‘partilhantes’ que gostavam de afirmar que fazem psicanálise há décadas e que se conhecem mais do que ninguém. Mas se conhecem mesmo? É possível se conhecer? O que é autoconhecimento, afinal?

Acerca disso, meu sonho é a criação da fotografia da alma. Sim, lá onde eu passeio tem uma câmera fotográfica que tira foto da alma. Não estou falando de foto Kirlian. Estou falando mesmo de uma máquina que fotografa a alma da mesma maneira que a gente fotografa o corpo físico. E aí a gente compara a alma com o espírito. Isso é sem dúvida um padrão mais objetivo de autoconhecimento. Igual avaliação física: 75 Kg, 1,90 de altura, você emagreceu demais, o que houve? O mesmo se dá com a avaliação psíquica. Seu orgulho aumentou. Sua vaidade diminui. Tudo analisado num único clic.

Enquanto essa máquina não é fabricada a gente continua com as oficinas de arte. Os trabalhos livres são sempre expressões do ser, do nosso fazer. Nesse fazer mostramos não quem somos, mas como estamos. A consistência de esse estar acaba por nos revelar imagens de quem somos.

Ao que tudo indica o ser mesmo não pode ser dito, sob pena de ele deixar de ser. O processo maravilhoso de autoconhecimento da psicanálise é o de aprender a se dizer, é o de conseguir transformar em linguagem aquilo que se fazia irracional e incompreensível. Quando eles chegam até mim percebo que os analisados conseguem racionalizar demandas internas de alta complexidade, mas isso ainda tem pouco a ver com autoconhecimento. Especialmente naqueles que fazem uso dessa racionalização psíquica, interna, como um mecanismo de autodefesa. Um escudo protetor que impede qualquer interação mais estreita com o mundo externo. É uma couraça que a todo instante que o outro aponta algo, ela diz: “isso eu já sei. Nada disso me é novo.” Muitas vezes não é mesmo, mas é diferente da abertura interna que tem aquele que se busca e se delicia com esse encontro, mediante uma risada.



Talvez o ponto que eu queira chegar é esse. No processo psicanalítico busca-se encontrar um eu que se solidifique, que se consolide, que se estruture, com o qual se identifique. Esse eu não está aberto e nem possui abertura. Esse eu para ser, continuar sendo, precisa se manter, permanecer igual. Essa identidade é conhecida como autoconhecimento. De modo que quando a pessoa se diz conhecedora de si mesma, saltam-nos os olhos tudo aquilo que ela desconhece de si mesma e aparta das suas condições de possibilidade. Salta aos olhos tudo o que ela não tem ciência de ser. Mas, como essa parte é um conteúdo não analisável ela ignora todo esse potencial efervescente.

O autoconhecimento acaba se tornando uma expectativa de se encontrar aquilo que se deixou onde você mesmo escondeu. Não sei se isso é autoconhecimento. Parece mais uma travessura de quem esqueceu que brincava. Alguém que na hora do pique - esconde bateu a cabeça. Quando recordou o sentido estava com amnésia e passou a fixar e posicionar tudo a partir daí. Os colegas continuam brincando, colocando e retirando as coisas do lugar, mas ela sempre passa arrumando, querendo dar um ponto fixo e eterno para as coisas. A isso ela chama de autoconhecimento. E nesse processo de autoconhecimento, quando me chamam pelo apelido, eu revido. Quando eu recebo, eu faço compras. Quando um homem que eu não conheço me olha, eu respondo aquilo. Toda essa padronização sem monta e sem graça, robotizada, deu-se o nome de autoconhecimento. Mas, será mesmo?

Como se reage diante do inusitado? O que se faz perante o absurdo? Nessas horas a gente vê que essa mascara primeira, bem fixada da personalidade, com a qual identificamos e levamos os outros a acreditar se tratar de nós mesmos cai por terra. E é quando ela está no chão que estamos começando a falar primeiramente de identidade.

Por sua vez, na corrente mística, o autoconhecimento é um não identificar-se. A busca é justamente para que esse eu não se solidifique, não se cristalize, não se enraíze. A busca se faz no mergulho para o mistério e não para a revelação. Sim, deseja-se antes de tudo a des-coberta e não a identificação.


Os mestres Zen apostavam na espontaneidade. Os Koans não são respostas prontas e menos ainda pensadas, elaboradas, são respostas espontâneas, imediatas, que só podem ser dadas por quem já esteve no processo do auto-engano. Isto é, no processo de acreditar que o autoconhecimento é ter um padrão confiável de conduta igual manual de carro. O que todo mestre ‘sabe’ é que a pergunta do discípulo é fruto de um século de racionalização, de muita articulação lingüística. O mestre quando dá a resposta está desconstruindo milhares de anos de autoconhecimento, de sedimentação.

Já o diálogo entre dois mestres é completamente diferente e pena que estes diálogos não passaram para a história. Mesmo porque a forma que os mestres mais apreciam de conversa é o silencio. O silêncio é a casa onde eles se encontram. É lá que eles compartilham dos mesmos sons, das mesmas músicas, da mesma ternura. E há vozes do silêncio, pensamentos do silêncio de tamanha paz e compaixão que quando em diálogo com o mundo só nos possibilita um koan ou um Hai Kai.

Quer me parecer então que a simples busca pelo autoconhecimento, ou melhor, a declaração de que se conhece como ninguém é um ignorar-se. Quanto mais uma pessoa se conhece mediante a demarcação de lugares fixos, mais distante ela esta da espontaneidade do ser de mil faces e milhares de sorrisos.

sábado, 3 de novembro de 2012

BAÚ




Hoje em dia, praticamente não se encontram mais baús. Eles são raridades, peças de museus e antiquários. Mas, houve um tempo em que não existia casa sem baú, esse objeto enigmático.

O enigma do baú a princípio é um: seu tamanho e seu significado, isto é, a um só tempo as dimensões em que ele ocupa e o inverso proporcional do que ele oculta, guarda, esconde. Seu enigma então é esse: todos sabem que no baú guardam-se coisas importantes dos seus donos, ao mesmo tempo, ele é trancado, segredado.

Recordo o baú para estabelecer uma analogia entre o mundo interno e externo em consonância com alguns clientes que procuram serviços como o meu.

Já atendi várias pessoas que chegam completamente fechadas (baú). Geralmente, elas são as mais aflitas para que você as abra, as desvende, as alivie desse fardo pesado de carregar um baú imenso nas costas. São também as mais intransigentes e incisivas tanto na questão tempo/hora, quanto na questão da objetividade das informações. Todo o dilema é que elas de fato acreditam que a única forma de não ser enganada é ter o baú arrombado.

Todas as que chegaram até mim vieram de outros atendimentos nos quais ouviram coisas que queria checar, se certificar. Mas, elas não apenas ouviram, elas tiveram o baú devassado, aberto, arrombado e me chegam tentando confrontar as orientações que receberam com o que guardam no fundo de si mesmas. O que aponto como diferença é que os caras nos quais elas foram são adivinhos, profetas, videntes, sei lá o nome que se aplica a eles. Sei arrombadores. E definitivamente não quero ser nenhuma dessas coisas e fico profundamente atrapalhado quando me confundem.

Em outras palavras, eu não sou um arrombador, isto é, não abro baús sem que o próprio dono me forneça as chaves, as senhas. Se está trancado é porque algo maior, no próprio ser, ou fora de nós, não quer que se abra e isso eu respeito demais. Em verdade essas são uma das ‘regras’ que aprendi com meus orientadores: jamais devassar o mundo interno do outro. Jamais causar no outro a terrível sensação de se estar nu, sem que esse outro tenha se preparado para tirar a roupa junto com você. Quem melhor ilustra isso é uma amiga que foi a um dentista que vou chamar antroposófico. Essa corrente odontológica consegue falar pela arcada dentária de todo nosso desenvolvimento fisiológico-psíquico. E minha amiga meio que desavisada sobre isso, ao ter os seus caninos analisados com tamanha profundidade que a remeteu a agressividade contida sobre a irmã, levantou-se da poltrona e nunca mais voltou. Ela apenas me dizia: “a gente já é analisado o tempo todo, agora até na poltrona do dentista!!!”


Mais do que a análise o incomodo dela foi a abordagem selvagem, devoradora. Ela queria tratar os dentes, as visões, percepções, interpretações, o cara deveria ter guardado para ele.

Lado a lado com essa situação nós temos as mulheres que estou registrando acima o que vejo é que elas pedem o estupro e a profanação simbólica. Elas pedem o arrombamento. E é essa a tristeza. Elas, mais do que quaisquer outras mulheres e pessoas que atendi desejam ter os seus desejos mostrados. Elas esperam imensamente que alguém seja capaz de ver a culpa, o remorso, a dor que elas carregam dentro do baú. Algumas se encontram tão piradas que não se dão conta que o baú delas está virado ao avesso, com todo o conteúdo privado, interno, as mostras e elas pensam que ninguém esta a ver, ou perceber.

E de fato, eu não vejo. Ou melhor, não vejo, porque é o outro que tem que dar conta de narrar, de falar, de dizer, de calar, de guardar, de jogar fora. Não se pode pedir para um terceiro carregar o seu baú. Ou ainda, outros podem até carregar o seu baú, mas não o seu conteúdo interno. Esse universo privado não pode ser depositado nas mãos de qualquer um e ninguém deveria acreditar em quem adentra esse universo sem ser convidado, chamado.

Nesses um ano e alguns meses atendi apenas 4 clientes assim. Todas elas traziam nos seus baús atos inconfessáveis, pensamentos culpados e remorsos imperdoáveis (aos olhos delas). Em geral, eram casos relacionados à traição. Três traiam o marido e uma articulava o homicídio da mãe invalida.

Esse é o baú que elas trazem e deixaram no meio da sala. Elas queriam mostrar, contar, mas não dão conta de dizer. Enfurecem-se ‘comigo’ por não ver. E de fato não vejo. O que elas têm igualmente em comum é que no imaginário delas, eu era um adivinho, uma pitonisa que saberia e sabia tudo da vida delas. Bastava eu abrir as cartas, ou jogar os búzios, ou meramente olhar para elas que teria acesso a todo o seu conteúdo psíquico, saberia o que as trouxe até mim. E eis a constatação que faço durante a consulta. Não sou adivinho. Por algumas vezes estive quase a lhes passar o telefone da mãe Dina, ou algum outro que consegue fazer o que não acho licito- invadir o espaço interno do outro.

Ela me dizia que o fato de ela estar lá diante de mim representava um sinal aberto e claro de que ela estava aberta e solicita. Eu por minha vez tentava dizer a ela que não era tão simples. Não consegui entrar na energia dela pelo toque energético. Depois também não consegui pelo Tarot. Só deu certo ao final com a ajuda dos universitários astrais. Ela era um baú cheio de angustia, insegurança, desespero. Ela queria ajuda, precisa ser ajudada, mas devassar seu universo simbólico, na minha percepção atrapalha mais do que ordena. O paradoxo de tudo isso é que elas me ensinaram demais e é sobre isso que vou falar nas próximas postagens.

sábado, 27 de outubro de 2012

"DEUS SE EQUIVOCOU"




A frase é lapidar. O autor dela é nada mais e nada menos do que o mais recente e popular falso profeta do momento- Luís Pereira do Piauí. A frase explicita de forma muito clara o que é o radicalismo religioso, a fé cega e os seus perigos.

A frase esboça o desequilíbrio, o desrespeito, o descompromisso dele para com o que pregava, falava, dizia, fazia. A isenção que ele se deu de toda e total responsabilidade pelos desatinos cometidos é similar a realizada pelos banalizadores do mal. Por estes quero entender mais diretamente aqueles que como os nazistas em tribunal alegavam solenemente: “estava cumprindo ordens!!” 

O profeta do sertão banaliza sua crença, suas convicções ao alegar que Deus se equivocou. E não estou fazendo nenhuma defesa de Deus, pessoas sérias sabem que de quando em vez, ele se equivoca, ou melhor, escreve certo por linhas completamente tortas (pelo menos aos nossos olhos). Não é sem razão que muitos comparam o reino dos céus a um êxtase regado a vinho e dizem que o reino dos céus é para as crianças. Pode parecer contradição, mas é continuidade; ou melhor, é um ziguezague no qual muitos não acompanham. A alegria, a ingenuidade, a proteção que os céus   dão aos bêbados e as crianças, justamente, por estarem com a consciência em outro lugar, depositada na certeza de que algo as projete e as ampara, mesmo que elas não saibam, não peçam proteção e amparo.

Mas, no caso do profeta, ele não esta dialogando com a brejeirice do menino Jesus, tão pouco esta mirando o voo ébrio do espírito santo, o profeta esta imbuído da fúria do Deus do Velho Testamento. Mais do que risadas, ele apregoa o ranger de dentes. Mais do que a graça, ele apregoa a condenação eterna. Mais do que o amor incondicional, ele prega o proselitismo. O falso profeta é igual a tantos outros cuja única diferença é: não dizer que é maior que Deus, e nem marcar data e hora para o fim dos tempos. Fora isso os encontramos nos púlpitos de milhares de seitas, igrejas, templos, terreiros, salões, casas. A única diferença é que o declarado e laureado falso profeta anunciou dia e hora para o fim do mundo e ousou dar voz àquilo que deveras sente: ser maior e mais certo que Deus. A arrogância deles sabe disso, mas a esperteza jamais vai permitir dizê-lo. Nunca dirão o que realmente pensam, a não ser quando entre eles.

Em outras, não é Deus que se equivoca e sim a certeza do profeta. Junto a certeza do falso profeta equivoca-se os bons e os justos que aguardam com ira e impotência a solução dos seus problemas reais e concretos. São eles que aguardam que Jesus venha salvá-los, mas não sem antes rir, zombar, tripudiar, indo de casa em casa dos inimigos dos eleitos lhes cuspindo na cara. Mais do que avivamento, ressurreição, graça, libertação, salvamento, eles desejam vingança. É isso que é para eles difícil de assumir. Estão ligados pelo ódio, pela fúria, pela raiva. Eles querem que o mundo acabe, termine, mate a todos, destrua tudo. Um mundo que sobre apenas eles. Mas, e quando eles sobrarem? O que eles farão? O que serão? Juro, que prefiro o lado entre os mortos do que junto aos salvos, aos proselitistas. Deus me livre dos bons, creio que era essa oração que Zaratustra fazia na montanha.

E em certa medida é isso que os falsos profetas oferecem- vingança. Viram Avenida Brasil? Não foi isso que arrebatou a massa? A menina sofrida se vingar da madrasta cruel? Não é isso que todos os falsos profetas oferecem- poder rir no final daqueles que não creram? Vingar-se daqueles que não acreditam? Esses que seguiram o falso profeta não reelegeram um dos anões do orçamento? E alguém duvida que se fossemos de novo para praça e tivéssemos que escolher entre Jesus e Lampião, não faríamos deste, um nosso novo Barrabas?

Mas, a moral da história é que tudo seria cômico não fosse trágico. E a tragédia aos meus olhos é a nossa ingenuidade, a nossa confiança e crença numa redenção fácil alcançada com dia e horário marcado. A tragédia é tomarmos vinho e ao invés do êxtase termos apenas o porre. Sermos infantis enquanto acredita-se que esta sendo criança. Tal diferente é uma coisa da outra. A criança é sempre pura, sem mascara. A criança é um estado de ser e não uma faixa etária. E é um equivoco acreditar que crianças confiam em qualquer um. Sendo que, de igual sorte, há uma diferença entre o êxtase sagrado e a embriagues, embora aparentemente, ambos, remetam a celebração.  

Em suma, os falsos profetas são os aliados mais preciosos para que o mal floresça e prospere, porque ao invés deles ensinarem o amor, eles ensinam o medo, a fúria e o rancor. Pena e tristeza de quem os segue.





sexta-feira, 19 de outubro de 2012

BASTA UM NÃO QUERER.





À uma amiga  
No facebok corre um post, entre as mulheres apaixonadas, que mostra duas pessoas e uma mesma gominha esticada no dedo de ambos, com os seguintes dizeres que podem ler ao lado. A imagem, assim como a frase é ilustrativa para o que desejamos escrever, porque retoma a singeleza do amor no seu aspecto mais lúdico, infantil, espontâneo, terno.

Extrapolando a imagem, insinuo que a brincadeira retoma uma parte da infância, que será primordial para o restante da vida- a confiança. Não há relação que se construa sem confiança. E não importa a idade que temos, todas as vezes que alguém trai a nossa confiança, alguma coisa em nós retoma a fragilidade infantil, a ingenuidade. Lidar com essa fragilidade não é fácil em nenhuma época, em nenhum momento da vida, seja ela adulta, juvenil, sênior.

Assim, na brincadeira de gominnha (e creio que todos nós brincamos) mesmo quando a usávamos para acertar o outro, ali se estabelecia uma relação de troca. Nessa direção chego ao ditado popular que diz: “se um não quer dois não brigam.” Pura verdade! Mas o que tenho observado na clínica é que: se um não quer, dois não se amam, não ficam juntos, não se relacionam. 

E isso é a parte dolorosa das relações, sejam amorosas, ou não, é que basta apenas um dos parceiros não querer mais para que tudo acabe, se finde, termine.  Lidar com essa fragilidade não é fácil. É de fato complexo. Uma das grandes tensões da relação consiste nesse voto de confiança tácito e mutuo: não largue a corda. E quando alguém larga, isso é frustrante demais.

A frustração é a de que simplesmente não temos controle sobre a vida do outro, os sentimentos, pensamentos e emoções dos outros. Mais igualmente frustrante é saber que mesmo amando, gostando, o outro já não sente mais o mesmo e não há nada a ser feito a não ser aceitar o término. Mas como se aceita isso? Como se aceita que a qualquer momento, no ápice da brincadeira, o parceiro (a) pode desistir, dizer que não quer mais, que cansou? Essa sensação de impotência dilacera a alma, corroi as entranhas, amargura a vida. A pessoa olha para todos os lados em busca de uma explicação, por que eu?

Novamente, a clínica tem me mostrado que ninguém aceita Altas no amor. Um pedido tão natural e tolerável nas brincadeiras da infância. Quando no amor, ela se faz inaceitável. Em nossa concepção o outro não tem direito a rendição. O outro está fadado ao compromisso eterno até que a morte os separe. Não quero entrar nessas divagações. Nessas que tentam mostrar o outro lado, isto é, o direito que todo ser humano tem e deve ter e infelizmente até fazer uso, de desistir, largar, soltar, não querer mais. Mas, quero retornar na dor do não, a negativa amorosa.

Afinal, como sobreviver depois dessa recusa? Como não olhar para dentro de si mesmo e tentar encontrar onde errou? Como não sentir-se culpado (a)? Como não se condenar pela perda de tensão e interesse do outro e ao mesmo tempo não amaldiçoá-lo por ter desistido?

Muitas partilhantes chegam até mim procurando essas respostas. Elas chegam trazendo uma fenda n’alma.  De modo que muito mais do que uma resposta para essa cicatriz, elas querem um remédio que atenue a dor: ora da falta, ora do orgulho, ora da vaidade, ora da rejeição, ora do amor mesmo.  

E a tristeza é que não há receita, não se tem remédio pronto, não se tem uma dosagem predeterminada e pré-estabelecida. Mesmo porque a dor advêm de uma fenda que é anterior a relação. E essa fenda quer ser vista, percebida, notada que há uma dor e para remediá-la tem que olhá-la nos olhos.

A única dica que atrevo a passar é que nesse momento de fragilidade não aceite respostas fáceis, respostas prontas. Não aceite nada menos do que a verdade por mais que ela machuque e maltrate. Trabalhos não trazem a pessoa amada e por amor a si mesma, a vida, ao outro, ao amor, nada é menos amoroso do que o amor obrigado, sem vontade. Então não aceite essa resposta pronta e mal acabada. Tão pouco se sujeite as caricias fáceis, daqueles que esperam sua fragilidade para ter aquilo que nunca deu quando estava centrada.

Sugiro que procure uma amiga (o) que te escute. Que esta amiga não fale nada, não diga nada, apenas fique ao seu lado. Ora passando a mão nos seus cabelos. Ora, tomando um porre juntos. Ora falando mal de todos homens, amaldiçoando a todos. Até que um vento silencioso e misterioso traga a certeza de que não ira morrer pela falta dele (a). Até que o coração esteja aberto para receber uma flechada misteriosa que vai lhe fazer pegar outra gominha e começar uma outra relação.

No mais, minha amiga, me parece que tudo é muito fácil e muito falso.
Bjs para vc!!!



segunda-feira, 15 de outubro de 2012

PIMENTEL NO PARTIDO DOS OUTROS



Há um ditado popular que diz que pimenta nos olhos dos outros é refresco. Adapto essa frase para pensar e analisar a figura do senhor Fernando Pimentel. 

Para muitos um grande articulador, um excelente prefeito. Para mim um ser deslocado, equivocado, não apenas por suas ações de dois, quatro anos atrás, mas por suas ações ao longo de sua atuação como prefeito de Bh. Ainda não sai das minhas retinas e nem de minhas lembranças que foi ele que expulsou os camelos do centro, assim como foi ele também o responsável por transformar a Avenida Afonso Pena em campo de batalha entre policiais e perueiros. Em suma, imputo a este senhor a impessoalidade da prefeitura, dessa gestão que se preocupa em ser avaliada por mecanismos nacionais e internacionais de metodologias escusas, que acabam redundando em rankings que seriam cômicos se não fossem o que são- trágicos. Afinal, como alguém sério pode dizer que ele e Lacerda estão entre os melhores prefeitos do país? Que nossa bela e amada capital encontra-se entre as melhores do mundo? Diante desses dados somos obrigados a pensar ao inverso de Poliana e nos perguntar- se for verdade, imagine os outros prefeitos e as outras cidades!!!! Trágico.  

Aos meus olhos, poucas vezes a prefeitura, o prefeito estiveram tão longe do povo quanto nesses últimos oito anos. Nem vou trazer a lembrança de prefeitos que despachavam junto ao povo, nem dos que caminhavam junto a eles. Vou apenas lembrar que Célio de Castro e o próprio Patrus eram anônimos. Não eram vistos em jornais, revistas, em rankings. Por vezes eram até ignorados como sendo prefeitos da cidade, mas governavam a cidade para essa gente que os desconhecia.

As gestões atuais esvaziaram esse contato humano, solidário, gentil. É um contato mais frio, burocrático  impessoal no pior sentido do termo. As imagens de Lacerda e Délio sambando é triste como furar olho de animal. Aquela cena representa o esforço por tentar ser popular, por tentar ser do povo, por tentar estar junto a ele, mas mesmo assim, tudo é falso. Nada é real. O povo mesmo, eles não conhecem, não conseguem se aproximar, mesmo quando desejam. 
Eles fazem, eles realizam, mas parece que tudo é feito com um certo nojo, com um certo distanciamento, com uma frieza singular. De modo que mais do que um distanciamento, o que sinto, sentia tanto em Pimentel quanto em Lacerda era e é uma elitização. 

Elitização que culmina no governo de Lacerda. O prefeito que cerca praça pública, que vende rua para amigos hoteleiros. Lacerda é a frieza e o distanciamento haja vista que seus padrinhos políticos são Aécio Neves e Pimentel. Cronistas esportivos para ironizar alguns cartolas, afirmam que em estádio de futebol precisam apresentá-los a bola. Lacerda numa analogia similar precisa ser apresentado ao povo. Ele só conhece isso enquanto dados estatísticos e conceito sociológico. 

E é neste ponto que quero voltar a analisar a figura de Pimentel. Não que o que eu tenha dito sobre Lacerda não se aplique a ele, a Anastasia e a Aécio. São todos tecnocratas sem traquejo para o que a política representa- proporcionar a felicidade aos cidadãos. O político busca dar felicidade ao seu povo. O tecnocrata vê qual é o valor dessa utopia. É outra forma de pensar a política, de pensar a cidade, de se fazer e de ser humano. Mas, o ponto que unifica tecnocratas e políticos é a ambição. 

 Não há político sem ambição, mas é na ambição política que se revela o ser político de cada um.  No frigir dos ovos, quem é Pimentel? O que Pimentel já fez ou tinha feito oito anos atrás? Quatro anos atrás para achar que poderia ombrear com Patrus? Em qualquer coisa, em qualquer ranking, ou escala, Pimentel encontra-se atrás de Patrus, menos em um: na ambição. 
Patrus era deputado federal mais votado de Minas, era ministro, criador da bolsa família. Digo sempre, Patrus era o nome do próximo candidato a presidente da Republica. Já Pimentel era um tempero de Minas. Bem dosado dava sabor a política mineira, nada mais do que isso. Mas falávamos da ambição. A ambição de Patrus é a de servir ao partido e as bases, quando o PT tinha isso. O PT mudou é outro. 

A ambição de Pimentel é incomensurável. Ela não se ocupa apenas em ser, mas em impedir que os outros sejam. Foi num cenário similar a este que ao invés de passar a prefeitura a um sucessor natural, Pimentel sentou-se com o seu adversário político, não apenas municipal, estadual, mas nacional. E juntos apoiaram um desconhecido em detrimento de todo um partido. Num cenário constrangedor para toda coligação no Brasil.

Ali, de forma simples, Pimentel deveria ter sido convidado a se filiar-se ao PSDB. Mas, pelo contrário, o diretório estadual se posicionou favorável e achou uma ação incrível. Anos depois, na sucessão estadual, a oposição tomou uma surra de Aécio ao eleger um desconhecido para governador de Minas e pela primeira vez desconfiaram de Pimentel. Agora, já não se tem mais dúvidas. Pimentel no partido dos outros é refresco. Ele deve respostas a todos. Não pode se calar, ou escolher as quais perguntas deseja responder.  

Torço para que Patrus não preste mais ao papel de conciliar e consertar aquilo que não estragou. Torço para que ele se veja pelos olhos que lhe concebemos- uma das maiores figura pública de Minas. Pela sua humildade, pela sua valentia, mas, sobretudo por sua humanidade. Patrus é um político, dos poucos que restam que ainda pensa a felicidade como sendo um fazer político e uma ocupação do estadista. Não pode se submeter à ambição desvairada desses que tem como meta e desejo apenas a realização dos caprichos e vontades. 

Finalizo com uma pergunta que Minas, Bh espera a resposta. A pergunta foi feita por uma repórter na coletiva dada por Patrus. Leiam parte, abaixo: 

"O ministro Fernando Pimentel chegou ao evento atrasado, quando Patrus já havia começado o discurso. Ao final, Pimentel minimizou a hipótese de que ficaria marcado dentro do partido por ter sido um dos articuladores, juntamente com Aécio Neves, da aliança que levou Marcio Lacerda ao poder, em 2008, retirando o PT de 16 anos de comando da prefeitura da capital mineira.
“Se você não entendeu nada, eu não vou responder essa pergunta. Isso é a unidade do nosso partido, simbolizada aqui hoje”, disse o ministro ao repórter que lhe fez a pergunta."


Pode até ser, mas ainda aguardamos uma resposta menos covarde e mais honrosa, quiçá verdadeira, isto é, que diga: "foi por ambição. Pura ambição. Por que não ouvi Salomão- vaidade, vaidade, tudo é vaidade". 

É!!!! Pimentel na campanha dos outros é refresco.









domingo, 7 de outubro de 2012

Jugular da Existência


Muitas coisas aprendi no ano que passou (2005). A primordial foi sobre a linguagem. Nós de forma normal a tememos. Nós temos o dom de falarmos somente as coisas desnecessárias. Tememos as verdades, não que ela exista, mas tememos dizer as únicas coisas que precisam ser ditas, que devem ser ditas.

Este ano (2006), eu assassinei a poesia. Pelo menos a poesia que tropeça nas nuvens, que busca coisas além do ato e do fato que esta posto e dado. Chamei esta fase de jugular da existência.

A vi no Discovery: um leopardo, lindo, maravilhoso correndo em direção a sua presa. Na primeira tentativa ele derrapou, pois a presa mudou de direção no momento do bote; na segunda não teve como, ele a atingiu diretamente no pescoço. A cena era eletrizante. Era a busca pela vida, pela sobrevivência. Logo eu que sempre achei Darwin equivocado, sempre preferi Bakunin na sua exposição acerca da evolução humana, fiquei maravilhado com a cena. Ela lembra Quincas Borba que inicia toda uma filosofia ao ver dois cães brigando por um osso. Fiquei assim diante da cena. O leopardo carregando a presa entre os lábios não como troféu e sim como a vida. Ele tinha lutando, buscado e devorado a vida e comia cada parte com tamanha voracidade que ele estava orando. Aquilo era a oração do leopardo. A devoção da selva. Tinha uma beleza que transcendia toda a selva e toda a civilização. Foi lindo como um milagre do pastor da Igreja Universal. Ou qualquer milagre que vejam.

Estava ali. Um acontecimento sem metafísica nenhuma. Sem razão nenhuma, mas com todos os motivos e propósitos. Estava a vida e a necessidade de segurar a vida com a boca, entre os lábios para que ela não escorra, não falte, não perca o sentido. Eu quis a partir daquele momento a jugular da existência. A sua carótida. O local no qual ela passa e jorra sangue como mel e o seu sangue imola o justo, vaticina o prodigo e acaricia o devotado. Tudo em um mesmo altar e em um mesmo ritual: a vida sem mistificação. Ela mesma, sem símbolos, mascaras, devaneios ou explicações transcendentais.

Assim, essa imagem não me sai da cabeça. Um leopardo correndo pela savana em busca de sua presa, ao encontrá-la dispara. A presa corre também, ela quer viver, quer continuar viva. Sua vida é uma porcaria, mas ela não quer morrer. O leopardo a ameaça e ela têm como única defesa a possibilidade de correr e se esconder. É lindo! É o pega - esconde da selva, mas o leopardo abocanha sua presa e da sua boca escorre o sangue da vitória.

Penso na vida e no viver. Cada ser vivo deveria ter uma presa para sentir o sangue dela escorrendo por entre a sua boca. Ficamos civilizados e as paixões nos suscitam medo. Queremos a  vida, mas só em parte e não inteiramente. Separamos a vida como quem em restaurante francês come mais por pose do que por fome. Falta-nos fome para devorarmos a existência. Buscar nela a sua jugular e provar do seu sabor.

A vida é curta, fisicamente analisando. De forma geral passamos por ela sem dizermos as coisas mais essenciais, necessárias, precisas. Deixamos escorrer da vida o mel que poderia nos transformar e modificar os outros.
Penso em casais, penso em amigos, penso em família, penso em todos: a linguagem entre nós é a arte do disfarce. Falamos para não ser. Nossa comunicação é o veículo da frivolidade. Não falamos as coisas essenciais, não educamos ninguém em nenhum lugar para as questões chaves da existência: amas? Sabes que irá morrer? Viver para nós é alisar estas questões sem deixá-las irem para o centro. Todos que vão ao centro e ao cerne vão sendo convidados a fazerem silêncio ou a serem internados.

E este é o barato. A linguagem universal é o silêncio. O som primordial é o silêncio. A fórmula mais elegante é o silêncio. Mas a possibilidade de comunicação é a linguagem. Dai todos, a principio, deveriam ter o mesmo valor. A poesia é tão matemática quanto à física. E esta é tão musical quanto à dança. E todas são metáforas da existência que poucos lêem.

Eu mesmo não leio. Às vezes a partitura da vida me cansa, mas eu estou ficando ao avesso. Não há um segundo da vida, um momento da vida que não seja belo, não seja poético, não seja metafórico. Mas ler isto te retira da condição humana. Para mim qualquer um que sabe um pouco mais da poesia da existência esta perdendo sua condição humana. Melhor é saber sem falar. Melhor é aprender esta linguagem e conversar com os seres e viver em estado de graça. A palavra é a desgraça. Assim o avo da Elo conhece a linguagem da lua. Outros a do mato, do cerrado e estas coisas falam mais diretamente que todo vernáculo criado e construído. A linguagem entre os homens é o mais artificial da nossa civilização. Mas é o que nos possibilita desentender completamente o outro e nos apaixonarmos por ele.

Quero transformar o vazio em algo. Quero apontar o dedo para o silêncio e levar as pessoas ouvirem a musica que Kepler escutava. As pessoas querem a poesia da vida, mas vivem com pinça na mão. Selecionando e dissecando o que querem viver, escolhendo com nojo e comendo com a delicadeza de quem se alimenta mais por esnobismo do que por fome.

E esta é a jugular da existência. Quero despertar a fome. A compreensão de que não é a sua boca que come, é o seu ser que devora o alimento e é triturado por ele. Como se a cada dentada que desce estivesse sendo devorado pelo próprio alimento que come. Assim, come-se com gana para não ser devorado primeiro. Quero que as pessoas vejam na rosa uma rosa, nada mais. Apenas uma rosa. E não há mais poesia na rosa do que nas vestes penduradas no varal. (Cecília Meireles escreve uma poesia sobre roupas estendidas no varal) e entre nós mineiros a poesia mais bela deste mesmo cenário foi cunhada pelo Roberto Drummond que disse que "se houver uma camisa preto e branca estendida no varal a torcida do galo torce contra o vento". Acerca dessa antropofagia, só compreendi o cristianismo com um preto-velho. Era no ano de 99. Ele falava que o lobo ao devorar a ovelha ficava menos lobo e mais ovelha. Esta se entranhava nele. Quando comemos estamos sendo comidos. Vale a alegação de que este é um paradigma antigo e superado, não irei discordar pelo contrario. Podem dizer mais que as leis da selva não se aplicam entre nós seres civilizados, vou compreender. Mas, dê uma dentada na jugular da existência para o sangue escorrer por entre os seus dentes e os bons sentirem temor de você porque você agora quer comer sem usar faca e garfo. É delicioso. Começar a perceber que a poesia esta na vida inteira, inteirinha, inteiramente, completa, independente de... A poesia nasce quando deixamos de separar o que esta no prato e saboreamos a tudo com a mesma intensidade. È certo dizer que há poesia também na seleção e na dissecação do que será vivido, melhor - comido; mas ai você não compreendeu a poesia da existência. Você vai ficar cheirando rosas e comprando chocolate para ser romântico. A vida tem uma indelicadeza, uma asperidade que será encontrada em capricórnio.