segunda-feira, 25 de março de 2013

O FEMININO: algumas visões.

UMA VISÃO EXTERNA-SOCIAL.

Jung nos ensinou que a mulher e o feminino não são a mesma coisa, na mesma medida em que o masculino e o homem não são sinônimos. O psiquiatra suíço seguindo a tradição do Tao nos mostrou que em cada homem há uma parte feminina (anima) e em cada mulher uma parte masculina (animus). Isso desgrudou o que até então parecia sinônimos. De modo que há mulheres yang, isto é com um aspecto masculino mais desenvolvido e há homens yin, ou seja, com aspectos femininos mais acentuados e não estou me referindo à sexualidade, pelo menos, não ainda.



No entanto, faço essas colocações para salientar como trabalhamos mal com o feminino. Como este feminino esta sendo e sempre foi massacrado, excomungado, torturado, silenciado.

O que tenho observado é que o feminino não tem lugar. Cada vez mais os lugares do feminino são diminuídos, negligenciados, desrespeitados, desvalorizados. Nossa sociedade valoriza, sempre valorizou, mas agora muito mais, as dimensões masculinas do existir. A distinção com outros momentos é que antes os espaços femininos da casa, do lar, da maternidade mantinham-se invioláveis. Hoje não. Todos esses espaços foram igualmente ‘contaminados’. Não há mais exclusividades, os espaços são compartilhados. Somos cada vez mais uma cultura unissex e para alguns se tornará bissexualizada. Mas é um unissex que sobrevaloriza o masculino. Não sei.

Sei que o feminino esta sendo repreendido por homens e mulheres e parte considerável da nossa tristeza, da nossa angústia, das nossas depressões, dos nossos remédios tarjas pretas é que não há mais úteros na sociedade. Por qualquer lugar que se ande todos têm um pênis. Estamos cada vez mais irascíveis, mais violentos. Ao ponto de agredirmos as mulheres, espancarmos, matarmos, minuto a minuto. Não apenas no Brasil como no mundo todo. é um mundo de espadas que competem a todo momento querendo mostrar ora seu tamanho maior que dos outros, ora seu corte mais profundo que do outro.  

Aos meus olhos não sabemos mais o que fazer com essa energia do feminino que em contrapartida aumenta a sua intensidade. É um paradoxo: na medida em que se intensifica a energia feminina, mais sem lugar esse feminino fica. Misticamente falando há uma energia feminina no ar. Pais carregam filhos no colo, os beijam, andam de mãos dadas, os levam e os buscam na escola. Mães saem pela manhã vão para o trabalho, depois a faculdade e retornam para casa. É um engano pensar a energia feminina com as representações de chatura e meiguice com que ela é apresentada. A energia feminina é suave, mas a suavidade dela é similar a da água- já viram enchente? Tsunami? É tudo água, a mesma que nos banhamos, a mesma que bebemos, a mesma que se conforma a qualquer coisa, objeto, mas exatamente a mesma que supera qualquer obstáculo. A energia feminina é a energia da persistência, da paciência. Sabe mãe de presidiário que viaja toda semana para ver o filho? Sabe mãe de dependente químico que sai toda noite a procura do filho? Até que o primeiro saia da prisão, até que o segundo se liberte das drogas. Sabe aquela coragem feminina que mesmo diante da ameaça de morte, de prisão, de desterro, continua acompanhando o corpo do filho, marido, amigo crucificado? Quando os homens por prudência resolveram se retirar?

Enfim, a energia feminina não tem nada das representações molengas, sem firmeza que apresentamos. A energia feminina é intransigente. É firme. É convicta. As maiores qualidades que atribuímos aos homens não vem do seu aspecto masculino e sim de suas dimensões femininas. Este resgate fica mais ou menos declarado no ditado popular: “por trás de um grande homem sempre há uma grande mulher.” Esse por trás não é meramente físico é igualmente psíquico.

Mas, o ponto contraditório é que essa energia assusta. Essa energia é assustadora. Não sabemos o que fazer com ela, como lidar com ela. Não se ensina nada sobre ela. Afinal, o que fazer com a ternura? Quando eu sinto ternura, compaixão, por alguém que nunca vi, não conheço, o que eu faço? E se for outro homem, acaso eu sou gay? Um parênteses, acho que uma maioria de homossexuais são  pessoas que interpretaram esse feminino como sendo questão de gênero, não necessariamente.

UMA VISÃO INTERNA-PSÍQUICA.

Prosseguindo... internamente, tenho visualizado nos atendimentos que presto, sobretudo entre as mulheres, que o feminino esta preso. Preso mesmo. Energeticamente, ao analisar os corpos sutis, muitas e muitos trancaram seu feminino em torres de marfim (a minha esta em uma), outras continuam fazendo uso de cintos de castidade. Algumas ignoram por completo onde estão esses aspectos delas. São mulheres, mas o feminino enquanto desejo, sedução, querer, magia esta completamente esquecido, negligenciado. E é incrível como é essa energia que se volta contra elas. Como é essa energia que se torna a maior rival e as vezes inimiga delas. Essas energias se apresentam algumas vezes aos meus olhos como Pombas-Giras, outras vezes como Ciganas, outras vezes como mentoras espirituais.

Sem entrar no mérito da incorporação dessas forças, elas estão presentes e atuantes no entorno delas. Provocando doenças, desentendimentos, mas tendo como intenção chamar atenção, se fazer vista, lembrada. É como se uma parte nossa nos chamasse atenção para a existência de um aspecto negligenciado.

Focando o caso das mulheres, mas agora pelo universo externo, quando eu pergunto a elas o que elas acham das mulheres que andam de burca, das que são apedrejadas por terem cometido adultério, enfim quando falo de machismo, elas sobem nas tamancas. Acham um absurdo que isso ocorra no século XXI. Fazem discursos maravilhosos. No entanto, quando digo que internamente, elas são ainda mais repressoras, elas se assustam; mas são. Quando tento mostrar que elas têm feito com o feminino delas é mais opressor, elas se assustam. Mas, quando se faz possível visualizar esse corpo sutil, muitas se encontram de burca, outras aprisionadas em torres, algumas com cinto de castidade. Outras recebendo o que hoje poderíamos chamar de assédio moral.

O FEMININO SEM LUGAR.

De modo que o feminino não tem espaço não é só no mundo, o feminino não tem espaço dentro de nós. Poucos de nós dão espaço para o feminino e são para estes que as coisas acontecem. As chaves da prosperidade, da mudança, da criatividade, da inventividade esta no feminino preso, torturado, amarrado, castigado. Ficamos nos perguntando por que as coisas não acontecem em nossas vidas e elas não acontecem por não darmos espaço para o feminino.

O feminino representa nossa potencialidade. O feminino representa nosso prazer, nosso sonho, nossa fantasia, mas a gente é ensinado a não levar isso em consideração. Somos ensinados a acreditar que mesmo gostando de cozinhar o futuro é ser engenheiro, que amando escrever o futuro é ser padeiro. Somos desacreditados dos nossos sonhos, porque não sabemos onde colocar na vida.

A busca pelo sucesso que descabela as pessoas tem a fórmula masculina da dedicação, da ambição, da metodologia, da disciplina, mas tem também a feminina que é DESEJAR e aceitar que aconteça.

É simples. De uma simplicidade que amedronta. Mas é a simplicidade de se saber que o seu filho não deve sair hoje, nem casar com essa pessoa. A simplicidade de apostar o que tem na bolsa de valores e dar certo. A simplicidade de acreditar que a sua intuição esta certa. Essa simplicidade que não é lógica, não é convencional não tem um lugar seguro para desenvolver. Durante séculos aqueles que demonstraram esse tipo de conhecimento foram queimados, expulsos, barbarizados. Durante milênios aqueles que desenvolveram habilidades opostas as masculinas foram incompreendidos, violentados, degradados, ridicularizados, torturados, explorados.

De modo que ainda hoje falamos que há espaço, muitos de nós continuamos guardando, na verdade, trancando o feminino do mundo e nessa tranca aprisionamos o que há de melhor em nós. Num primeiro olhar mais apressado esse lugar é o lugar do desterro, é o lugar da repressão e da reprovação. Num olhar mais acurado, em grande parte das vezes, esse é o lugar da proteção. É o lugar no qual o cavalheiro encontrou para proteger a sua amada das dores, dos sofrimentos, da sua falta, das suas ausências e especialmente das habilidades que ela possui e amedronta as pessoas.

Liberta o feminino é mais do que proteger as mulheres é dar espaço para os sonhos, as fantasias, especialmente os desejos e os quereres. 

domingo, 17 de março de 2013

7 de março


Desde o dia 7 uma inquietude me agita. Estava dando aula no 1º ano, quando uma aluna disse que amanhã elas estariam dispensadas. Não entendi o motivo e quase me zanguei. No que ela me explicou se tratar do dia 8. Mas, aí olhei para ela, olhei para as outras alunas, imaginei todas minhas alunas e tive que fazer a pergunta: vocês são mulheres?


A pergunta é cretina, eu sei! Mas o que eu queria discutir é se elas se viam mulheres, não enquanto gênero. Eu na minha ignorância estava me perguntando: o que é SER MULHER? Por que dentro do meu imaginário, simplesmente, elas não se encaixavam.


Sei que o que é SER MULHER é outra pergunta absurda, ridícula, mas diante do meu imaginário e a presença física de cada uma delas, eu tive que a realizar. Nisso, uma aluna me disse que já se nasce mulher. Eu, rapidamente, recupero Simone de Beauvoir e fico pensando comigo mesmo... será? Enquanto gênero eu concordo. Enquanto gênero, elas são mulheres desde o quinto mês de gravidez, mas isso ainda não é ser mulher. Nascer mulher não é ser mulher. Parece que o SER mulher é uma construção social repleto de hábitos, costumes, desejos. Hoje há uma universalização e plastificação das identidades, mas já houve tempo que as mulheres nórdicas, guerreiras e combatentes eram tidas como homens para os romanos que deixavam suas mulheres em casa e possuíam outras ocupações. 


Na minha juventude, isto é, no milênio passado, alunas não recebiam parabéns pelo dia das mulheres. Era notório na mentalidade da maioria, inclusive delas mesmas, que elas não eram mulheres na acepção maior do termo. Hoje não. A maioria das alunas da sala se reconhece e se afirmaram mulheres. O que inicialmente é bom, mas como pai eu fiquei super preocupado. Explico a preocupação mais no final.


Uma aluna me disse: “ se eu trabalho, cuido de casa, cuido dos meus irmãos, estudo; eu sou mulher!” Como dizer o contrário? Se uma garota de 16 anos trabalha fora para ajudar em casa, se a outra cuida dos irmãos para que os pais trabalhem fora, se a outra tem a vida sexualmente ativa, como não compreendê-las como mulheres? Por que eu fico desafiando o bom senso e também não concordo, dizendo simplesmente: sim vocês são mulheres?


Simplesmente, porque como me disse outra: “ uma semente, ainda que não plantada já é um fruto. Uma maça mesmo verde, já é maça.” E eu aproveitei a metáfora do fruto, pedi desculpa pela grosseria, mas tive que dizer: sim, mas o fruto verde, ninguém come.


De modo que o ser mulher é uma discussão sobre a mentalidade e também sobre a sexualidade. Algumas quiseram ligar o ser mulher a maternidade, mas nem precisei entrar no mérito, porque muitas objetaram essa visão. Falando que não achavam a menina grávida de 13 anos mulher. Outra, já revoltada comigo, me perguntou: “ e o que é ser homem?” E isso é tão mais claro, tão mais tranqüilo, tão mais límpido. O homem é homem desde o nascimento, mas podemos demarcar sem maiores implicações- infância, adolescência, juventude, adulto.Poucos alunos se aborrecem quando chamados de jovens e salientando- vocês não são “homens” ainda. Essa clareza esta sendo perdida no universo feminino. Todas já se acham mulheres, independente da idade. Meninas de dez anos se vestem como “mulheres” de vinte e cinco. Passam maquiagem como mulheres de trinta. Meninas de quinze, dezesseis anos entram no bisturi como se tivessem quarenta, cinqüenta. E mulheres de sessenta usam mini-saia como se tivessem treze. Esse fenômeno é estudado por outro viés, mas aponta para as diretrizes da sociedade de consumo que tem como vigor e centralidade das suas informações a juventude.


O ideal primaveril, jovem, sarado, gostoso, bonito, novo no qual todos devem se submeter. As rugas são proibidas, as celulites um atentado ao pudor. Toda pele tem que ter a marca de vinte e poucos anos de idade. Nessa toada, nossas alunas não podem ser mais crianças, menos ainda adolescentes, agora não podem nem ser mais jovens; são mulheres no sentido adulto do termo.


Essa é a minha preocupação. Há uma pressa para ser mulher que só agrada a pedófilos e tarados. Há uma forçação de barra para o amadurecimento que chega a ser grosseiro, temerário, escandaloso.


Ao final, eu disse para elas que o meu receio em cada uma delas em se ver mulher e se achar mulheres no sentido adulto do termo é que provavelmente aos 19 anos elas vão se casar, terão filhos, cuidarão da casa, do marido sem antes ter desfrutado dos encantos da feminilidade. Mais trágico ainda, aos meus olhos, é que elas estarão e estão prontas para o abate. Elas são presas fáceis para pedófilos, conquistadores de todo monte. Alguns podem estar se perguntando, mas não foram sempre? Antes a inocência protegia. Agora, sem inocência, precisa-se ter uma maldade, uma malícia que provavelmente não se tem aos quinze anos, pelo menos não para confrontar com alguém de vinte e cinco, trinta anos ou mais.

Falei mas não defini o que é Ser mulher para mim; faço isso no post seguinte. 


SER MULHER



Primeiramente, não posso definir o que é SER MULHER. Não sou mulher, falta-me útero para comportar o universo que é gerado. Em outros termos, me falta entendimento para clarear e rastrear esse incognoscível.


Diante disso, eu suponho que ser mulher é fazer a descoberta do seu útero. Não o físico, mas desse estado de acolhimento, de abrigo, de aconchego. Mas isso se aprende quando? Como? De que modo? Onde se ensina sobre esse poder fantástico e formidável, que nas sociedades matriarcais igualavam mulheres a deusas?


Eu sou homem, então a minha função social é ir acompanhando os despertares do Ser mulher. É no despertar delas que nos fazemos homens, nos tornamos homens, nos fazemos pais, nos reconhecemos irmãos, nos tornamos avos. Eu queria ter a paciência de acompanhar de perto uma única mulher em todo esse processo, mas eu me maravilho com processos de outras e quero ver de perto também. Acompanhar, tentar entender o que é isso- SER MULHER.

Dá para imaginar: sangrar por dias e não morrer? Carregar um ser dentro de si mesmo? Expulsar, esse ser de dentro de si e mesmo cortando o cordão umbilical se manter ligada, conectada? Ok ser mulher é um para além do ato de ter filhos.


Talvez aqui eu encontrei o que é SER MULHER para mim. É descobrir o ato de dar no sentido mais chulo, rameiro, puta; assim como no sentido mais refinado, cósmico, santo, sagrado.




No primeiro sentido é a descoberta da sexualidade. A descoberta do próprio corpo, do próprio orgasmo. A descoberta dos prazeres que o corpo proporcionam, mas que vão para além do corpo. O prazer de sentar ao lado de quem se gosta e falar de como foi o dia. Essa descoberta, esses prazeres são master card- não tem preço.


 
No segundo sentido é a descoberta do descobrir-se e descobrir o outro. A descoberta do prazer em acolher, receber, distribuir, compartilhar, abraçar, beijar. Falo da generosidade feminina do sacrificar-se, do esperar. Vou cuidar do meu filho e depois volto aos estudos. Vou trabalhar para ajudar meu marido. Vou sair mais cedo para levar meus pais ao médico. Vou para balada porque fulano(a) esta na fossa e precisamos nos divertir. 





Eu fui gerado por uma mulher fantástica, filha de uma mulher sensacional. Fui casado com minha ídola, que me decepcionou como somente uma ídola pode fazer, mas que é linda como somente uma estrela pode ser. Namorei mulheres sensacionais, deslumbrantes, a quem sou grato eternamente. Tenho uma filha que é a mais linda do mundo e a mulher que eu mais admirei em todas as minhas vidas. Ela é minha musa, minha estrela guia.


Ser mulher é sorrir diante da burrice masculina

Chorar diante da insensibilidade embrutecida feminina.

Ser mulher é gozar de alegria

E ter um gozo maior na culpa ou na fantasia.

Ser mulher é escolher no pai dos futuros filhos

O amante para toda vida.

Ser mulher é com-fundir pegada com amor

E chorar quando o pegante deu uma patada- ele não me ama?

Claro que não! Obvio que sim!

Você se ama?

Ser mulher talvez seja algo similar ao que disse Maiakowiski ao falar de si mesmo:


“O coração tem domicílio no peito.
Comigo a anatomia ficou louca.
Sou todo coração.”


Creio que parte considerável do SER Mulher é ser todo coração.

Ainda que se perca, “que na bagunça do coração o sangue se errou de veia e se perdeu.” 

sexta-feira, 8 de março de 2013

Não aos Rótulos



ROTULOS
Minha visada espiritual é artística. Gosto da forma como os artistas compreendem, organizam, percebem a realidade. Nessa perspectiva me afinizo muito com a percepção que eles têm da vida.

Em nossas oficinas a loucura, as dores da alma, as aflições da existência são temas comuns e recorrentes. Ficamos estudando sobre as intercessões entre loucura-arte-mediunidade tentando clarear para nós mesmos essas lacunas, esses espaços ora monstruosos, ora repletos de beleza. Não obstante, lançamos um olhar muito agudo e compassivo para os lados ainda mais destoante dessas intercessões que são as psicopatias e as lideranças carismáticas de caráter perverso e suicida.

Como podem depreender brevemente do exposto acima este é um campo de estudo de várias áreas, vários segmentos, sempre aberto para quem deseja falar desse universo a partir de si mesmo. Essa é uma das condições: que cada um fale da sua vivência para poder compartilhar das vivências dos outros. Isso abre o espaço para a tolerância, o respeito, a compaixão. Isso retira os seres da condição de analisados e analisandos. Todos passam a ser estudiosos, aplicados e interessados em saber um pouco mais sobre si mesmo.

Conto isso, porque anônimos ou não, famosos ou não, cada qual traz sua narrativa de dor, sua experiência e sua vivência. E eu perguntei a alguns deles em algo similar a uma mesa redonda:
você teria sido você sendo classificado de bipolar, ou autista, ou esquizo? Mais ainda: teria desenvolvido sua obra tomando antipisicótico?

"Van falou que os rótulos sempre existiram, o pernicioso é que agora eles são clínicos e colocados como verdades absolutas. É assustador verificar o desconhecimento dos rotuladores da plasticidade neural, das mudanças sinápticas que o cérebro é capaz de fazer, das próprias mudanças que os seres realizam ao longo da sua trajetória de vida. Assim, embora sempre tenham existido rótulos é criminoso o peso clinico, médico, psicológico nas costas e nas mentes de crianças tão tenras, adolescentes em formação. Por outro lado, quanto ao uso dos antipsicóticos, teria impedido, com quase 90% de chance deu ter cortado minhas orelhas. Teria também ‘impedido’ deu sentir o mundo na intensidade que ele me incidia. Teria minimizado minhas dores, mas foram as minhas dores que me fizeram ser quem eu sou. Não posso ser sem mim. Cortar as orelhas foi um ato de desespero, de dor lancinante, uma tentativa de amputar meu ser; mas mesmo dilacerando, cortando todo meu corpo, eu não deixo de ser aquele que sou. Ser o que sou, expressar o que sou, somente a arte me serviu de remédio, de alivio, de consolo. Pintar, não para ser o mais vendido, mas para encontrar uma paz, um equilíbrio, um eu que podia sair de mim sem que necessitasse deu me cortar para vê-lo e sabê-lo. Isso, os antipsicóticos cortam, mutilam, apaziguam, mas o eu adormecido, enfurecido encontra-se dopado e uma hora estaremos frente a frente com ele. Acho que o antipsicóticos seria minha ruína".

Outro que se propôs a responder a essa questão foi um dramaturgo francês.

"Os rótulos não importam, somos mais fortes do que isso. Moldamo-nos a partir e para, além disso. Aos antipsicóticos somos impotentes. Não se tem força contra um controle que domina o próprio corpo, que destroem caminhos de conexão entre a alma e o corpo. Os antipsicóticos são a destruição. Ninguém resistiria a eles, ninguém seria com eles. Na minha loucura fiz meu teatro. Minhas vozes fizeram personagens, minhas alucinações fizeram montagens e figurinos. Essa irascibilidade incontida, desenfreada é que nos faz artistas. Foi quem me fez ser quem sou. Precisa-se de espaço para o eu e não de confinamento. A própria idéia de eu é uma temeridade quando se fala de mente, de psique. Deixo isso para o filósofo, porque toda essa discussão me cansa, me causa fastio. Necessitamos de liberdade, de espaços, de criações. Necessitamos de aberturas para as manifestações do ser nos seus aspectos de criatividade e originalidade. Precisamos de poesia e metáforas. Necessitamos do teatro".

Vou caminhar para o arremate. Os rótulos prendem, segregam e é difícil romper com eles, ir além deles. Quando o rotulo vem acompanhado de pílulas mágicas, as prisões e correntes ficam mais grossas, espessas, rudes. Estamos aprisionando com rótulos e fórmulas miraculosas mentes que possuem outra configuração.

O que os fármacos desejam é que o corpo não sofra, não doa, não morra. Eles querem o melhor para o corpo e o corpo para eles é uma máquina. Agora estenderam essa mesma lógica para a mente. Na concepção deles a mente é um programa de computador, um software. Uma extensão da máquina que somos. E como a dor, a morte são tidas como avarias desprezíveis, busca-se de todos os modos e de todos os jeitos minimizar as dores do corpo. No entanto, A dor no corpo é reflexo de dores nos campos mentais, emocionais que os fármacos podem cortar, isto é, ‘analgenizar’. Mas a fonte e origem da dor permanecem e precisam ser tratado. Uma das formas utilizada para minimizar esse sofrimento se dá pela arte e na arte.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

DJANGO: Livrando o imaginário.




Fui ver Django livre. Fiquei extasiado. A narrativa, a trama, a história, a intertextualidade, tudo. Creio que o impacto na sociedade americana seja ainda mais contundente e voraz do que nas plateias latinas e europeias, já que há detalhes históricos de difícil compreensão e interpretação. Durante todo o filme há sacadas geniais, formidáveis, dignas de Quentin Tarantino. A ironia e zombaria com que ele revela e explicita as origens da Ku Klux Klan vale a pena ver o filme diversas vezes apenas para assistir essa cena. No entanto, o aspecto mais mordaz e contundente que quero chamar atenção é a relação entre o escravo da senzala e o escravo da casa grande.

Aqui no Brasil- “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freire abordou o tratamento dispensado aos senhores e aos escravos, de como nossa estrutura social, política, econômica seguiu essa mesma arquitetura. Avançando sobre essa duplicidade, é estranho averiguar como que rechaçamos sapos barbudos que ousaram fazer pontes, estradas, Pacs, minha casa e minha vida entre esses dois mundos. Mas, retornando, Casa Grande e Senzala ganha vulto e dimensão posterior quando deixa tácito uma “democracia racial” com profunda ressonância a idéia do brasileiro como um homem cordial.

Nos EUA uma mulher escreve um livro despretensioso denominado: “A Cabana do Pai Tomas” (não o li), mas contam que o laureado Abrahan Lincon ao encontrá-la disse: “ é a senhorazinha a responsável pela guerra da Secessão?” Isso dá mostras do impacto que o mesmo teve na sociedade americana. Outro que evoca esse livro como um modelo para se entender a escravidão americana foi Malcon X. De forma que nos diálogos entre Jamie Fox e Samuel L Jackson isso ficou marcante, o que nos convida a recordar a obra de Harriet Beecher Stowe.

Malcon gostava de registrar como que para o negro da casa grande as revoltas contra o senhor eram algo que machucava o escravo da casa. Já para os da senzala, qualquer prejuízo ao senhor, era uma vitória para o escravo. O negro da casa grande com o tempo sentia-se e achava-se branco, um igual ao senhor. Ele passava a desconsiderar a dor dos seus irmãos de etnia até não se reconhecer mais como negro. Nos EUA essa divisão ficou centralizada, até mesmo devido a um ódio hostil e pesado. Um ódio declarado e manifesto aos quatro ventos. No Brasil esse ódio permanece camuflado, velado. Afirmamos de todas as maneiras possíveis, até a exaustão, que não há discriminação racial em nosso país, que ela é de renda. Por esse prisma, negros ricos são igualmente bem tratados como brancos e etc... O ponto que momentaneamente importa é que no Brasil uma infinitude de negros não se reconhecem como negros. Se vêem como brancos, ou quase brancos.

No entanto, o que mais tem me chamado atenção em Tarantino é o diálogo que ele tem feito com a memória, com a História, com o imaginário. Essa arte de re-escrever e re-interpretar os fatos históricos é formidável. Vimos isso, primeiramente, em “Bastardos Inglórios” e atualmente, com Django. É fabuloso imaginar algum lugar no universo (mesmo que seja na fantasia, no imaginário) no qual nazistas foram caçados por judeus e tiveram a suástica marcada na testa. É igualmente espetacular a criação de um lugar em que um negro escravo, se liberta e se torna caçador de recompensa de brancos sulistas. Um negro que mata branco sulistas e da Ku Ku Klan.

Nazistas, racistas, machistas devem estar rindo da impotência de um texto e de um filme como esse, já que segundo a possível argumentação deles, a verdade se deu de outra forma. Se por um lado eles têm razão, por outro, creio que a discussão histórica atual é justamente a de se perguntar: o que é mesmo realidade? O que é mesmo fato histórico? Que história é essa que replica a imagem dos vencedores ad infinitun sem se ocupar com os impactos disso sobre os vencidos? Essa perspectiva histórica de Tarantino abre margens não para que historiadores re-inventem fatos, mas para que ficcionistas, artistas, cineastas, professores ousem imaginar os fatos por outro curso e outro viés.

Nessa direção é incrível como que começam a pulular pesquisas históricas que re-contam os Quilombos, que mostram que a escravidão não se deu tão pacificamente como apontavam e apontaram. E metafisicamente, fico me perguntando: como surgem essas fendas? Seria possível reescrever a história? Seria possível alterar o passado? 

Esse apelo é formidável. Olhar para o mundo e pensar que ele esta assim, mas poderia ser diferente. Poder ensinar que a potência da ação inicia-se com a potencialização dos pensamentos. Insubordinar-se contra a opressão passa necessariamente pela utopia de pensar outras realidades e outras possibilidades.

Django Livre, Bastardos Inglórios retira as correntes que aprisionavam cineastas, artistas, políticos, educadores de se pensar os fatos, como se eles fossem objetivos, lineares, VERDADEIROS. Incita a exploradores psíquicos a cogitar sobre a imponderabilidade da memória, da lembrança, do imaginário. E sobre isso fico de fato pensando.... será que o passado é mesmo inalterado? 

Quem faz análise, quem envelhece observando os acontecimentos, percebe como que vamos dando novos coloridos ao fatídico  como vamos colocando peças, cores, detalhes que não estavam lá; ao mesmo tempo em que vamos apagando, sombreando outras coisas. De modo que a estória se desdobra em muitas, em outras. Django e Bastardos Inglórios insinuam esse caminho. Em futuros posts tentarei escrever sobre eles.    

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

BENTO XVI: a renúncia anunciada




Quando Jânio renunciou ao poder, ele falou de forças poderosas. Alguns não acreditam, mas há forças que se alimentam do poder. O que é o poder?

O poder é essa energia que esta incrustada em Sarney, Marcos Maciel, Renan Calheiros e tantos outros. O poder é essa energia que transfigura os seres, os come e os devora por dentro. O poder é um ente vivo que mata qualquer um que atravesse seu caminho com propostas de mudança e alteração.

As casas políticas tem essas energias incrustadas.  Entra partido, sai partido e as coisas permanecem como estão. É difícil encontrar seres contactados a fazerem a limpeza desses lugares sem ser tragados por eles. O preço da mudança é caro. Ter alguém nessa posição que não vai deixar essa força grudar é difícil. 

Brasília é um local de poucas décadas, cravada em uma localidade imersa em cristais. Imagina o Vaticano? Centrado no centro do poder antigo, com mais de mil anos de história? Alguém consegue imaginar o que é energeticamente ser coroado Papa? As forças que se encontra estacionária em cada coroa? O peso de cada brasão? A dificuldade de não sucumbir pelo peso opressor dos roedores energéticos? Há jogos, há interesses, há partidos, há disputas e há entes que querem deixar tudo do jeito que está. 

Nenhuma força, nenhum lugar foi mais corrompido do que a Igreja. Retirar essas forças desse local não é tarefa fácil, nem simples, demanda tempo, conscientização.

Num primeiro momento a renúncia de Ratzinger é ruim, mas num segundo momento podemos vislumbrá-lo levando milhares de seres para outras localidades e consciência. A renúncia do Papa sinaliza que uma parte energética da Igreja aceitou o 'colapso', aceitou largar o poder. Mas, não podemos nos iludir, essa renúncia acirra ainda mais a disputa entre aqueles que desejam a manutenção do poder a qualquer custo e aqueles que querem a mudança. A qualquer custo significa, especificamente, contrariar os ensinamentos de Jesus. De todo modo, agora há dois lados claros. Os terceiros terão que tomar partido e já tomaram. Aguardemos os próximos acontecimentos.

Talvez, as sementes plantadas por João XXIII já possa ser colhida e acolhida no seio da Igreja, em breve, uma nova Instituição. Na maneira dele, João Paulo II cuidou das sementes, do solo. Da forma dele, para nós, demasiadamente conservadora, Bento XVI compreendeu que essas forças devoram, matam, são intransigentes e não aceitam negociar para perder. Ao modo dele, ele expôs mazelas, fissuras (pedofilia, lavagem de dinheiro, corrupção) que não podem mais ser ignoradas, mas estão longe de ser solucionadas; pelo contrário. 

Ratzinger tinha tudo para ser Papa, mas descobriu que sê-lo é muito mais do que ter conhecimento teológico. Ser Papa é saber negociar com forças que devoram. Forças que tomaram conta não apenas da Igreja como das maiorias das instituições religiosas. Ser        Papa implica na compreensão de que para servir a Deus e a Jesus nenhuma negociação fora do amor pode ser realizada. 

Em tudo, parece que energeticamente, fica cada vez mais claro, que enquanto humanidade, estamos renunciando ao poder a qualquer custo. Ao poder que torna os seus mandatários servos de forças que deveriam se opor.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

AS SENHAS DOEU: imagens de nós mesmos.


Meses atrás atendia uma moça, linda. Enquanto ela ia falando, eu ficava vendo, não ela mesma, mas uma imagem que existia entre ela e os outros. Como explico:

O tema da consulta era o amor. E na fala dela (vou chamá-la de Yves-Y) algo me inculcava, pois não conseguia precisar se ela amava o ser do qual ela falava, ou se como Santo Agostinho nos lembra, Yves amava a sensação de amor, que embora ilusória é altamente excitante. Quando Luis Soares conversou com ela, pude ver que o amor mesmo, Yves não permitia sentir, ou melhor...  o amor que ela permitia conflitava com o amor que ela imaginava e isso nos apresentou três instâncias mapeadas: 1- o amor; 2- a imagem que ela tinha do amor; 3- como o cara a amava. Essas imagens brigavam entre si, mas não ao ponto de ela perceber a própria infelicidade. 

O inusitado de todo atendimento é que antes de se chegar a ela mesma, tinha que se passar por uma imagem que ela projetou dela mesma. Uma imagem que ela mesma construiu, criou e que a impede de receber o amor real, verdadeiro. Para entendermos melhor essa imagem projetada criaremos uma analogia com um espelho: Yves existe enquanto geradora da imagem, mas entre o reflexo da imagem e ela há uma projeção criada dela mesma, que a impede tanto de receber o amor, quanto de se ver realmente. Há uma distorção do mundo que ela vê, na forma como ela sente e também  dela mesma. Definitivamente, ela não é quem pensa ser. É isso que os psicólogos chamam de uma idealização? 

Antes de ela ser ela mesma, Yves é uma imagem que a impede ou dificulta imensamente de ser ela mesma. E se por um lado, ela se idealiza, por outro, mas o mesmo lado, ela cria mecanismos para ser seduzida por sujeitos que acessam, justamente, essa projeção. Dá para entender o peteco? Um eu que cria tantas imagens de si mesma, que ora se perde nesses reflexos, ora fixa-se em uma ilusória?




Praticamente, ela não se relaciona com quem consegue de algum modo vê-la e percebê-la para além das projeções. Ela só se relaciona com aqueles que conseguem acessar a imagem delirante que ela faz de si mesma. Assim, o mais louco disso tudo é que por mais sofrível e sofredora que fosse essa projeção do outro, ou idealização de si mesma, ela estaria ligada a este amor, enquanto fosse alimentada. Poderia ser espancada, surrada, currada, maltratada, desprezada, humilhada, ela nunca veria isso, porque o cara de certa forma consegue acessar e alimentar essa projeção. Dá para entender?

Ela não esta vendo ninguém, nem a ela mesma. Ela só vê a projeção que ela tem do mundo, que fez do outro. A questão de todo atendimento e de toda essa abordagem que denominei de 'As senhas do eu/doeu' é que ela gostaria de se livrar de um ex-marido que mesmo depois de separado a atormenta. Não no sentido do cara correr atrás dela, não a deixar ter relacionamentos com outros, ameaçá-la de qualquer modo. A atormenta no sentido deles não conseguirem romper um vínculo. Vínculo altamente sexual e nesse caso mágico (no sentido de magia mesmo), mas sem representar qualquer tipo de goécia. Pelo menos não deliberada e consciente, mas inconscientemente ambos estão acorrentados a algo que no momento em que se conheceram décadas atrás era mágico, durante casados foi se corrompendo, ficando doentio, chegando a patológico. Não ficou obsessivo devido a separação, mas esta longe ainda de ser algo agradável e natural. De modo que eles estabelecem uma relação, que mesmo sem se comunicarem por anos, quando ele a chama, independente de com quem ela esteja, Yves vai e transa como se estivesse hipnotizada. 

O que fico observando é que algumas pessoas tem o dom de alimentar essa projeção, são os 'hackers', ou no linguajar popular: canalhas, malandros, vadias; enfim sedutores no sentido de manipuladores de desejos e vontades. 

O segredo do sedutor esta em somente dizer o que a pessoa quer ouvir. O sedutor dialoga não com a pessoa mesma, mas com a projeção que a pessoa tem de si mesma. Ele alimenta essa projeção, essa carência e depois que ele (a) consegue isso, não adianta tentar mostrar que o cara, ou a moça são aproveitadores, estão fazendo mal, os caras já estão operando a relação não mais a partir de si mesmos, mas de dentro da base de comando do outro. Ele (a) pescou a senha. 

Uma senha que se torna fácil de ser pescada devido a nossa infantilidade. Acreditamos em contos de fadas. Mulheres de todas as idades sonham com príncipes encantados. Homens em todas as idades desejam princesas para tomar conta e castelos para mostrar para os amigos. E a paixão nos leva a querer construir mundos encantados. E não acreditamos que possa existir pessoas que controlem a paixão, os instintos. Não acreditamos que possa ser possível alguém que manipule tudo isso, finja tudo isso, simule e represente tudo isso. Não acreditamos que possa existir pessoas que justamente por racionalizarem as emoções e sentimentos sejam capazes de manipular os sentimentos e emoções de outras pessoas; mas elas existem e cada vez em maior número. 

Enquanto a moça era atendida, especialmente, por Tranca-rua, via um monte de seres acorrentados- mulheres e homens. Era uma cena bem parecida com a imagem do arcano XV do Tarot de Marselha: O Diabo. O detalhe é que quando os olhavamos mais atentamente, nenhum deles tinha coração. Óbvio que essa é uma visão simbólica, que ele elucidou com uma inversão de uma  passagem bíblica: “digas onde esta o teu coração e lhe direi onde esta o seu tesouro.” No caso, o tesouro delas estava na mão de outro, em posse de outro, e não foi feito grandes esforços para isso, muitas mulheres e alguns homens acreditam que amar é colocar o coração nas mãos do outro ser. Acreditam em um amor dramático, cheio de sacrifícios, cheio de privação e renúncia. É um amor pisciano no que esse apresenta relação com o cristianismo, ou seja, se não há sofrimento não há amor. Ou mais complexo ainda- amar é sofrer, doer, sacrificar-se. Todo esse cenário dramático que vemos em toda parte: religião, jornal, teatro, novela, música, escola, na vida de forma geral em que poucos buscam uma relação amorosa mais saudável e salutar. 



O que achei deveras curioso é que mais do que uma decodificação errônea, a bem da verdade, é que havia um jogo perigoso, intrigante nessa cena. Quando se dá a senha/coração, a pessoa implicitamente esta dizendo que somos obrigados a recebê-la, a aceitá-lo. Não dá para discutir isso sem retomar a proto-idéia de onde isso sai, a saber, a entrega de Deus do seu único filho para salvar a humanidade e a humanidade cruel mata a ovelha sagrada. Há desde então uma desonra moral em não amar o outro. Acreditamos que no amor o coração tem que ser dado, mais precisamente doado ao outro. O verdadeiro amor é aquele que abdica do seu próprio coração. Nós vemos essas relações trágicas entre pais e filhos, namorados, seitas. Poucos compreendem que é o amor e não o coração que deve ser compartilhado. 

ponto assustador da dinâmica de Yves é que se aos meus olhos era ia se tornando vitima, Tranca-rua deixava bem claro que ela alimenta esse programa virótico que roda no sistema de crença das pessoas. Isto é, ela e nem nós percebemos que por trás do ato de dar o coração, esconde-se algo ainda mais nefasto, que não se desatrela de nossa forma de ver o amor: a chantagem. 

Quando dou meu coração ao outro transponho e transfiro a responsabilidade que tenho de cuidar de mim mesmo para o outro, renuncio e entrego minha responsabilidade de crescimento e amadurecimento para que o outro cuide de mim. No final, posso cobrar do outro um preço mais caro, um preço que o amor não pede e nem cobra: o da culpa. Culpar o outro por nossa falta de coragem, pelo nosso não posicionamento é um ponto marcante dos relacionamentos. Um ponto marcante que pode ser acompanhado tanto por marcados internos, quanto que por marcadores externos.

Os marcadores internos vão sinalizando um jogo doentio que vai virando de patológico, até se transformar em obsessivo e culminar em ódio o que acaba por deflagar o ponto visível do marcador externo que é o homicido, não sem antes sinalizar pequenas e corriqueiras violências simbólicas. 




Eu que considerava Yves vítima fui convidado a analisar a situação mais de perto. E a percepção virótica veio quando o amigo Exu pergunta a ela se ela gostaria de libertar e libertar-se do cara. Ela diz que não. Percebi que mais do que uma escravidão o que existia era uma servidão voluntária. Uma servidão que colocava o outro na condição de canalha, de carrasco, quando na verdade, a manipuladora era Yves. Ou melhor, não existiria nem inocentes, nem culpados, mas uma relação que se desenvolve de forma que ela se machuca, mas tem um prazer nessa dor. Um prazer de se ver  e se manter acorrentada aos pés do seu amado. O importante a frisar é que a libertação disso se faz de forma simples, cada um retirando o seu coração das mãos das outras pessoas. 

Olha a sua volta, se o seu coração não estiver com você e em você, provavelmente, alguém tem a sua senha.