sábado, 16 de agosto de 2014

SIMULTANEIDADE: o continuum do encontro.


A simultaneidade é para mim um dos temas mais intrigantes. Não apenas porque envolve o tempo, mas é porque integra o tempo a dois, ou mais eventos acontecendo ao mesmo tempo em lugares diferentes e por vezes, pessoas diferentes.

A gente dá pouca importância a isso, mas é algo mágico. Imagine todo o esforço, toda a sincronia para dois carros colidirem num determinado ponto? Ou de um grupo de pessoas específicas estarem em uma sala de cinema, ou num avião, ou num bar? Essas pessoas saíram de lugares diferentes, acordaram em tempos diferentes, fizeram movimentos diferentes e tudo convergiu para que se encontrassem, exatamente, naquele ponto, local, tempo. Isso é mágico. Qual sentido e significado vamos atribuir a esses acontecimentos é da peculiaridade de cada um.

Mas, o ponto que quero destacar mesmo é de duas pessoas vivendo o mesmo tempo subjetivo, poderíamos chamar isso de amor, paixão? Uma pausa. 




Estou lendo Peter Galison, um historiador da ciência americano, que fala dos “Relógios de Einstein e os Mapas de Poincaré”. Mas, o que me chamou atenção nas páginas iniciais foi a simultaneidade, ou mais precisamente, a forma com que ele interpreta a teoria da relatividade. Como que ele, naturalmente, nos fala da necessidade de dois relógios para se medir as variações do tempo, variações? Sim! Fugindo de uma concepção de tempo absoluto como concebia Newton, Einstein visualiza a existência de muitos tempos, de muitos relógios e apenas a velocidade da luz como constante. Para Newton, Deus é um relojoeiro, dos bons. Desses capazes de pela simples escuta saber os tempos de atraso e de adiantamento. Um relojoeiro capaz de provocar eventos, encontros e desencontros mediante a sua vontade. Einstein nos permite levantar a hipótese de que esses eventos sejam provocados internamente, pelos desejos e vontades de cada um. Uma hipótese que fazemos a partir da leitura da sua teoria. Até onde sei, ele não fala sobre isso.  

De modo que, quando observamos, sejam as simultaneidades, seja o que Jung denominou sincronicidades é difícil não retornamos a uma concepção de tempo absoluto. É difícil nos colocarmos como sendo agentes eficazes desses encontros e desencontros, afinal, nós apaixonamos ou somos apaixonados? Batemos o carro, ou somos batido por ele? Bebemos ou somos bebidos? Temos algum comando sobre as forças da existência, da vida, ou pelo contrário, somos seres passivos diante dela? É complicado, complexo, difícil, mas, igualmente, intrigante e excitante.

Numa concepção newtoniana somos agentes passivos do destino. É essa concepção que temos, quase que naturalmente. Somos ensinados que não temos poder de comandar eventos que acontecem em nossas vidas. É uma concepção que estou chamando de EXTERNA. Ela é ensinada na escola, nas igrejas, nas religiões, no trabalho, pelo Estado, pela família. Não temos controle nem autoridade sobre nós mesmos, a não ser, pela obediência a todas essas instituições mencionadas. 

Numa concepção relativista, podemos ousar nos vermos como sendo agentes ativos do destino, isto é, responsáveis diretos pelo que acontece em nossas vidas, inclusive do que atribuíamos como inevitáveis: morte, amor, paixão. Essa é uma concepção menos usual, mas já encontra-se vasta literatura sobre isso, utilizando o conceito de co-criação. Essa concepção estou chamando de INTERNA. O aspecto ingênuo dela postula um universo no qual tudo é fruto do pensamento positivo e da intencionalidade emocional, esses modeladores transformariam o universo ao bel prazer dos sujeitos conscientes desse mecanismo.

Como podemos inferir, as respostas não são finais. Há um grupo de físicos, que radicalizando a idéia inicial de Einstein de que o observador influencia a realidade, salientam que o papel do observador é ainda mais decisivo. Por observador, eles entendem a consciência. De modo que, sem uma consciência, o universo seria morto e inerte. Resta saber se essa consciência é única- o relojoeiro de Newton- ou se plural, coletiva. 

As implicações disso é que por mais que haja leis, regras e forças no universo, elas entram em operação a partir da forma com que nossa consciência a alinhava. Entre as concepções EXTERNAS- o universo age sobre nós- e a posição INTERNA- nós movemos o universo- deve haver um meio termo no qual as forças externas e internas se alinham determinando tempos e espaços. Uma boa fonte dessa observação é a astrologia, isto é, como que os posicionamentos mesmo sendo de ordem universal, cada sujeito a vivencia ao seu modo e do seu jeito.  

O que percebemos é que sobre ou sob esses tempos nós fazemos história, fazemos vida. Nós fomos ensinados a focarmos no tempo absoluto, mas há um tempo interno, subjetivo, que parece comandar, alinhavar os nossos atos e ações. Um tempo que dita um determinado ritmo, pulsar e co-cria acontecimentos externos, eventos externos, observáveis. E é sobre esse pulsar silencioso que coordena os fatos que estamos refletindo.


É complexo e não vou nessa direção, porque agora eu só preciso do seguinte: podemos pensar o amor, a paixão, o ódio como simultaneidade? Podemos pensar esses estados internos como sendo sincronicidades? Dá para imaginar a operação que se realiza para que dois tempos subjetivos se alinhem e consigam pulsar sobre o mesmo espaço? Dois relógios impares, singulares, com suas peculiaridades, mas que possuem uma pulsação interna que modela espaços tão peculiares? Isso é formidável e grande parte de nós não se atenta a essa maravilha. Tratamos com tanta naturalidade que nos fazemos indiferentes a essa magia, quase que as ignorando, as desqualificando.

Saio da visão mais epistemológica e entro na poética. É formidável imaginar, conceber que num universo de múltiplos tempos há uma pessoa, que esteja no seu mesmo ritmo, compasso, cadência. Uma pessoa na qual se estabelece um continuum de tempo-espaço, uma interação forte, capaz de criar um universo compartilhado por ambos, aberto a outros. 



Eu fico vendo os relacionamentos como essas criações. Deveria falar das visões que embasam isso, mas tomaria um tempo demasiado. Todavia, a percepção energética dos relacionamentos, como que as energias dançando vão construindo, semeando particularidades. Isso é altamente excitante. E, nessa excitação, não estou falando apenas do desejo de transar e obtê-la, porque tem o dinheiro para conseguir uma prostituta, ligar para uma prostituta que se encontra disponível caso você tenha o valor que ela cobra. Estou falando de você, conscientemente, ou não, enviar uma mensagem para o universo de que você é um ser singular em busca de um par, uma complementaridade e esse universo movimentar engrenagens para que você encontre essa pessoa num banco de ônibus, ou na mesa de um bar, ou na fila da igreja, no estádio de futebol, na sala de aula, ou numa esquina, ou... O universo aproxima de você outro ser, que pode te proporcionar, naquele momento, o melhor continuum para que o próprio universo se sustente. É como se o universo fosse regido pelo amor e necessitasse do amor para se auto-regular.

O amor seria a constante dos encontros, dos desencontros, das construções e desconstruções da existência. Se no modelo físico a luz é a constante invariável do tempo externo. No modelo psíquico, o amor seria essa constante invariável do tempo interno. Nos movemos em direção do amor e construímos em nosso entorno aquilo que amamos. Não deveríamos separar tanto um estado do outro, uma coisa da outra. A observação atenta do nosso tempo interno pode nos dar a localização do nosso espaço externo. A observação mais acurada do nosso espaço externo pode nos dar a velocidade, os tropeços e embaraços do nosso tempo interno (amor).



Isso tudo é mágico e damos pouco valor a essa magia. Valoramos pouco esses encontros que a vida nos proporciona. Por vezes, apostamos alto demais em desígnios que não sejam o nosso próprio querer e a nossa própria vontade. Apostamos que a vida fará o papel de manter esse continuum, que ao que tudo indica, necessita de um desejo, de um querer, de uma vontade manifesta e declarada para que continue acontecendo e sendo. Necessita da consciência e da escolha. Mas, será que escolhemos mesmo o amor? Toda dor não é justamente essa?

Uma- desconhecermos o que é o amor.

Duas- lutarmos para que ele não nos invada, não nos tome, não se apodere de nós?

Hoje (13/8) conversava com meus alunos sobre corte/cortejar. E uma delas de 14 anos me disse: “minha mãe não entende que eu possa escolher uma pessoa para vida toda. Uma pessoa com que eu vou casar com 18 anos. Ela não entende que eu não estou perdendo nada, porque tudo o que eu quero é estar do lado dele”. O palavrão que eu pensei na hora e agora, eu não irei escrever. Ver esse tempo diante dos nossos olhos é assustador, mas revela, ou desvela, uma maturidade emocional que minha geração atingiu aos 30 anos, se é que alcançou. Pode parecer loucura, mas eles sabem o que querem. Sobre isso escrevo depois.


Parece que de tanto medo do amor, atraímos situações que nos afasta daquilo que estamos destinados a ser- felizes, plenos, entusiasmados. Essa lógica maluca de sabotarmos, de vitimizarmos, de mandarmos embora quem a gente quer perto é um vírus que precisa de antídoto. É um continuum que necessitamos desativar. Precisamos começar a deixar as pessoas nos amarem. 





quinta-feira, 31 de julho de 2014

4º MOVIMENTO: a entrega.


A maioria de nós não acredita em mitologia. Mas, eu vejo a existência dos mitos na vida dos meus alunos, na vida das minhas partilhantes. Muitos desses mitos estão sendo vivenciados a todo instante. O amor de Hades e Perséfone é um. Quem não conhece a moça linda, bela, encantadora, inteligente, que se apaixonou pelo problemático da turma? Quem não conhece a história da menina da classe média que foge para o morro para ser esposa do dono da boca? Quem não ouviu a história do menino queridinho da mamãe que entrou no mundo das drogas? É difícil resistir à baforada do desejo. E em meio a tanta repressão e combate ter forças para não ser tragado pelas sombras.

A estória do mito é o contar de um rapto. A moça virgem que foi raptada, isto é, teve a sua vontade, o seu querer subtraído.Num sentido interno, o rapto pode simbolizar aquele instante no qual a inconsciência invade e transborda a consciência. Noutro sentido, externo, superestimamos o rapto para pensar que Perséfone é vitima, foi raptada e não escolheu de própria vontade e desejo aquele destino para ela. É sempre mais fácil reconhecer a mulher como um ser sem desejo, sem vontade, sem querer. É sempre mais tolerável falarmos de loucura quando o inconsciente desejante, reprimido toma à consciência de assalto. Entretanto, Perséfone é tão especial por isso, ela deseja, ela quer, ela tem vontade. E isso em todos os tempos e eras foi assustador, continua sendo. O único deus capaz de lidar com essa força foi Hades. Foi ele quem viu naquela donzela, naquela virgem, algo que ele só via em si mesmo.

E nesse movimento estamos entrando na parte mais tortuosa, mais densa dos relacionamentos. Aquela na qual ora um, ora outro, se faz objeto dos desejos e fantasias do outro. Esse movimento no qual saímos do nosso mundo para entrar no do outro. Esse movimento no qual, eu reconheço parte do mundo do outro como sendo uma extensão do meu. Esse mundo no qual por vezes temos que raptar e se deixar raptar para irmos mais fundo. 



Esses raptos nos trazem em direção às alunas e partilhantes. Perséfone me pediu para perguntá-las por que ele? E, invariavelmente, elas falam de uma paixão oculta, de uma beleza e atração incontrolável. Elas falam de um reflexo no qual esse outro tinham algo delas que elas não podiam mais viver sem.

Juro que eu não sei que algo é esse, que ao falar, os olhos delas salivam e a boca traga tudo, como se fosse um olhar. Juro que não sei o nome desse algo, que causa uma sensação de pertencimento tal qual o corpo e o ser do outro fosse parte de um mesmo e único corpo. Na falta de um nome para esse algo, chamei entrega. É o nome mais próximo que chego.

Assim, muitas vezes, quando perguntamos a Perséfone o motivo pelo qual ela se encontra no Hades, ela responde: que ela encontrou a beleza oculta. Ela viu esse elixir da beleza que Afrodite pediu para ser guardado no Hades, longe de todos. Ela viu o local mais apropriado e talvez único no qual fosse possível produzir esse cosmético de fabricação exclusiva de Perséfone que lhe da à jovialidade, a juventude; o amor sem medo. Ela descobriu aquilo que nenhuma deusa, ou deus jamais compreendeu: a entrega.

Há uma força na entrega, uma resistência nesse ato de se entregar, que poucos têm condições de suportar. Seja para recebê-la, seja para doá-la. E isso torna a entrega tão especial, tão diferente, tão complexo.

Nessa complexidade, Perséfone me falava de um tempo no qual se desconhecia homens que não tinham vergonha das suas cicatrizes. E, eu lhe dizia, que cada vez mais, eu desconhecia mulheres, que fogem das cicatrizes e feridas de algum homem que amam. Ousaria dizer que o homem ama as qualidades, a mulher, as imperfeições. Refaço a frase: o masculino ama a perfeição, o padrão, a superfície- pele, cabelo, corpo, aparência. O feminino ama as imperfeições, a profundidade- alma, desejo, vontade, querer- a singularidade que faz daquele ser quem ele é e não outra pessoa. Nisso, eu e Perséfone refletíamos que há muitas mulheres fugindo das cicatrizes, porque estamos masculinizados demais. Com isso, os relacionamentos se engasgam, engastam, porque o feminino quer a nudez da alma e o masculino quer o embelezamento do corpo. Os amantes superficiais querem o corpo e o que ele pode oferecer. Os amantes profundos desejam à alma e tudo aquilo que ela pode dar. A sabedoria constrói a cumplicidade conjunta de permitir ao corpo todos os gozos da alma. O encontro de Perséfone e Hades representa essa profundidade.

Representa um lugar no qual não há julgamento, não se vê os desejos, a vontade como feios, ou perversos, ou malignos. Hades respeita o querer, o desejo, a vontade, seja ele qual for. Mas, como lidar com esse espaço em nós? Como contar os desejos mais secretos para sua esposa? Como compartilhar essa vontade com ela? E vice-versa? E é engraçado como esse espaço vai sendo esvaziado, vai sendo descuidado, desertificado, até ser um lócus dos mais apropriados para explosões nucleares. Sabe aquele homem que matou a mulher a tiros depois de 30 anos de casamento? Sabe aquela mulher que cortou o pênis do noivo depois da ruptura do noivado? Sabe aquele grupo de homens que praticaram estupro coletivo? Sabe aquela mãe que matou o filho recém nascido? São todos os que não olharam para seus mundos infernais e foram devorados por eles. Mas, não quero falar disso, quero falar da pergunta que fiz para Hades no inicio de tudo isso. “entre todas as donzelas do mundo, porque Perséfone?”

E ele me diz algo mais ou menos assim:

“Não escolho donzelas, ou rapto virgens. Pouco me importa a virgindade do corpo. Preciso de Perséfone, porque ela quis me ver sem o elmo da invisibilidade. E ao me ver não enojou, nem vomitou. Tirou minha armadura, cuidou das minhas feridas, dos meus machucados, das minhas cicatrizes. Eu a protegerei contra todos, contra tudo, especialmente, de mim.”


É aqui que o ciclo fecha. É aqui que, novamente, o mito grita no nosso dia-a-dia. É na fuga da profundidade que desenvolvemos relações superficiais, tão superficiais que ficam dolorosas. E o que tenho observado é que nenhuma dor é maior que a perda da ilusão. E como disse certa feita o poeta: “nada resiste ao contato furioso da existência.”

A paixão, enquanto sinônimo de vontade e desejo é esse contato que quando não se dá por escolha, se faz por rapto. Subtamente somos levados a entregar, seja parte, seja, integralmente. 

II

Foi nessa entrega, que Perséfone deixa de ser a lindinha da mamãe e se faz mulher. Mulher no sentido mais pleno e completo da palavra. Mulher capaz de suportar e suturar uma cicatriz na alma do amado.

Agora, caminhando para o final, re-lendo o mito: é como se ele estivesse nos dizendo: “ O BELO É PROFUNDO! A beleza é mais profunda que o corte de gilete!” E aqueles que param na epiderme não compreendem nem o que é ser homem e menos ainda o que é ser mulher. Na fabricação do elixir da beleza, a deusa do submundo encontrou, desvelou, uma beleza mais bela que a luminescência de Afrodite. É a beleza da entrega.

Beleza que sinaliza não para um rapto, mas para um arrebatamento, um pedido, uma dança entre ambos. Perséfone, me confidenciava: “entre todos, me deixei raptar por Hades, porque somente nele poderia ser inteira, intensa, toda, mesmo ele sabendo que em alguns momentos precisaria de voltar à superfície, para nos renovar. Escolhi Hades, porque o desejo dele por mim não me permitia nada além de me entregar de corpo e alma, vontade e desejo, em todo o meu querer. E ter a certeza de que ele me comportaria.”

O contraponto a esse tipo de relação vivenciada na sua dimensão mais positiva, isto é, na nudez do casal um perante o outro é que somos uma sociedade cada vez mais superficial. Uma sociedade que como regra não deseja ultrapassar nada mais profundo que a epiderme. Paramos na pele, na superficialidade do querer sem desejo, do desejo sem vontade, da vontade sem amor, do amor vazio, do vazio existencial, da existência que se alimenta de superficialidades e repete o mesmo ciclo. 

Um ciclo de fuga, de medo, de receios. Um ciclo de vida que teme a morte ao mesmo tempo em que banaliza a morte a cada viver. Nunca a nudez mostrou tanto o vazio. E nunca tantos e tantas foram tão superficiais como um corte de gilete.” A beleza esta mais superficial do que uma verniz, menos densa do que uma folha de jornal. A beleza esta virando só aparência.


Nesse ponto a Primavera não pode temer o inverno, porque é nele que ela se faz mais esplendorosa. Casais não deveriam temer a entrega e nós como seres singulares, não deveriamos fugir desse encontro, desse contato. 

Como disse a poeta: 

"Aprendi com a Primavera a deixar-me cortar
e voltar sempre inteira."


Celebremos a entrega. 



Poema: Primavera de Cecília Meireles. 

sábado, 19 de julho de 2014

AS QUATRO ESTAÇÕES: 3° MOVIMENTO- o medo.


O medo... esse que nos apavora.

Anos atrás, a partir de uma fala genial, magnífica, magistral de Mia Couto, escrevi as impressões que Kryon dizia acerca do medo.


Ele falava que o oposto do amor não é o ódio como pensávamos e sim o medo. É estranho pensar o medo como o oposto do amor, mas cada vez mais acho pertinente. Cada vez mais me assombro como que nos empenhamos em não manifestar nosso amor seja para outra pessoa, seja para pessoa nenhuma, seja para nós mesmos, seja.... De forma geral e quase sistemática, sabotamos o amor e damos as mãos para o medo, numa auto sabotagem sem precedente.

Toda essa situação me faz lembrar Oscar Wilde, talvez nos seus versos mais famosos:

"A gente sempre destrói aquilo que mais ama.
Em campo aberto ou em uma emboscada.
Alguns com a leveza do carinho,
outros com a dureza da palavra.
Os covardes destroem com um beijo,
os valentes com uma espada."

Esse ímpeto de destruição me remete a coragem. Nunca tinha visto amor como coragem até assistir uma peça que tratava do amor. A coragem é a cor com que colorimos a existência.; inclusive os próprios medos. Num primeiro momento, os dias, meses, ciclos que Demeter ficou sem achar Perséfone, destruída pela sua ausência, ela foi secando, murchando, esfriando, até congelar tudo a sua volta. O outono e o inverno foram muito rigorosos e mais complexo, inesperado. Nunca tinha visto algo assim na superfície. Por outro lado, o mundo subterrâneo na ausência de Perséfone era mesmo o inferno- muito calor, muito rigor, muita severidade, muita brutalidade e agressividade. Tudo eram espadas e flechas. Sangue e dor. Imposição e fúria. A dificuldade de cada um lidar com a falta, a ausência era enorme. 

O sentimento de rejeição perante a falta do outro leva à destruição de tudo envolta. Os muitos medos que temos, que nutrimos, que por vezes nos consomem. Assim, retomando às estações, a Hades e Perséfone fico me indagando sobre o medo da nossa beleza. Não a beleza do espelho, mas a beleza da alma. Indago-me também sobre o medo da nossa ternura, da nossa bondade. E isso é perturbador na clinicia, na vida, como que nos assustamos, não com as nossas feiuras, e sim, com a nossa beleza, com o que temos de melhor em nós. Para a maioria, estar diante da própria ternura, da própria beleza, da própria generosidade machuca. 

Esse medo nos apavora, deseja-se correr, fugir, mas o mais comum é destruirmos, agredirmos, machucarmos. Quando conseguimos fazer isso com o outro é um tanto mais justo, porque o outro pode se defender, mas quando fazemos conosco é ainda mais doloroso. O inverno de Demeter machuca toda Terra, mas, especialmente, a ela mesma, é ela que se gela. O mesmo se dá com Hades. Conseguimos formas de nos machucar, nos agredir e por vezes nos destruir que nosso pior inimigo não conseguiria. Aqui eu deveria falar de obsessão, de perseguição, das co-criações destrutivas que fazemos em nossas vidas, mas isso fica para um outro momento. O assustador é como poucos de nós estão preparados para o amor, à felicidade, à prosperidade, à riqueza e todas as benesses que a vida tem a nos ofertar e oferecer. Somos edcados e depois nos construímos para aceitarmos o pior, para lidarmos com as carências, as ausências, os vazios. Somos educados contra nós mesmos. E é talvez esses aspectos que Hades e Perséfone nos trazem. O amor dos dois nos levam a pensar em como os relacionamentos podem limpar, clarear todo nosso mundo subterrâneo de maneira harmonica e de como podemos fazer isso vivenciando o próprio inferno. 




Num segundo momento do mito, da relação entre Hades e Perséfone, vai delineando que estamos falando do lugar do desejo, do querer, da vontade. Estamos falando daquele fogo que acende, irrompe, inflama, insufla os seres de coragem para desafiar tudo, todos, inclusive descer ao próprio mundo subterrâneo. Todo aquele e aquela que já recebeu a baforada do desejo na nuca, que teve o hálito do querer nos lábios do outro(a) compreende o que estou dizendo. Compreende que para ter esse milésimo, esse segundo de prazer... devora-se, morde, puxa para si, abraça, unha, corre, tenta se controlar, se descontrola mais. Qualquer uma que já foi desejada sabe a doce delícia de resistir e se entregar a esse outro que devora, conquista, toma para si. Perséfone e Hades, um diante do outro, nos lembra desse estado, dessa querência, desses instantes. Eles nos remetem ao encontro com aquilo que queremos, mas algo nos impede, uma tensão simbolizada pelo rapto.

Quando olhamos para a jovem Perséfone sendo raptada, podemos insinuar, que Hades viu nela a mulher que ela não reconhecia, e ela viu nele a beleza, a leveza que ele não sentia e nisso podemos ver o rapto com outros olhos. Ser raptada no mito é a um só tempo recusa e entrega, amor e medo, escolha e destino; medo e coragem. É o ímpeto entre a ação deliberada e o desejo não manifesto. É a tensão não abordada entre o medo e o amor.

A singeleza incontida desse frenesi está naquilo que Hades representa e oculta por completo, por inteiro- a morte. Em toda mitologia grega descer ao Hades representa a travessia da alma. Num sentido mais simbólico, esse mundo subterrâneo se fez inferno, se fez chacras inferiores, se fez desejo, vontade, querer, procriação. Fez-se medo, receio, preservação e porque não, repressão.

Temendo esse fogo, as religiões em sua grande maioria ensinaram a sublimação, o sexo sem ardência. Catequizados que fomos, a maioria dos seres matam o desejo, a vontade, o querer. De modo que, antes de chegarem ao Hades, já chegam mortos, arrefecidos. Esses não suportam o olhar imperativo do deus dos mundos infernais que nos pede conta sobre como lidamos com nosso fogo que queima, devora, isto é, como lidamos com o desejo, a vontade e o querer? Por mais que não lidar seja um lidar, ninguém mente para Plutão. Como se o mito quisesse nos dizer e dissesse: “na morte todos estão nus. E não há nenhuma veste para nossas vergonhas.”

Hades é o sem pudor. É aquele que sensualiza a santa, que não se choca em ver a mãe como mulher. Hades é aquele que sacraliza a puta. A frase de Hades à humanidade poderia ser: “nada do que é humano me choca!” E Hades sabe que o humano é esse hiato entre o animal e o angelical, entre Demeter e Zeus, entre a Terra e o Céu. Mas, não importa, não se chega nem a si mesmo, nem a nenhum desses outros lugares sem se passar por lá. Sem se reconhecer no espelho de Perséfone, cuja única beleza que reflete é a da própria nudez sem vergonha. Isso é infantil e ao mesmo tempo o ápice da maturidade do ser. Estar em paz com os próprios desejos, com a própria vontade, com o próprio querer. 


Estar em paz com os desejos e poder compartilhá-lo com o outro, partilha que sabe e compreende que nesse espaço cabe a ausência, a distância. Creio que seja essa uma das chaves de entendimento... Quando a tensão entre Hades e Perséfone amplia, ela vem a superficie, ele se faz invísivel. Nesse respeito, o amor prevalece e o desejo não arrefece. 




Vamos à entrega. 

segunda-feira, 7 de julho de 2014

QUATRO ESTAÇÕES- 2° MOVIMENTO: a auto sabotagem


2º MOVIMENTO:

Como estamos falando de Primavera, sou remetido a falar de Demeter, deusa da agricultura e especialmente da sua filha com Zeus, Perséfone, a esposa de Hades, deus do mundo subterrâneo. A partir deles pretendo falar do restante das estações e dos processos que se desenrolam no subterrâneo da nossa psique: medo, auto sabotagem, entrega.

Demeter é linda como um dia ensolarado. Perséfone é fruto do amor e da conexão de Demeter com o universo. Homens compreendem pouco dessa profundeza, dessa interação tão intima, rítmica entre mãe e filha. E devido a essa incompreensão, Hades “rapta” Perséfone para viver com ele nos mundos subterrâneos. O que eu escrevo agora são as biografias não autorizadas de cada um desses personagens. E conto, porque eu vivenciei todas essas histórias, acompanhei e negociei cada capítulo e momento de tensão.

Quando Hades “rapta” Perséfone, uma tristeza de morte invade Demeter. Uma tristeza, uma culpa que é anterior a Eva, é quase maldição de Pandora. É uma dor que antecede e gruda em todas as que nascem com a abertura do triunfo. E esse sentimento devastador, desolador, Demeter e nenhuma outra deusa conheciam. E aqui é a densidade da história.


Hades conhecia, mas ninguém acreditava nele. Os irmãos olímpicos nunca compreenderam muito aquela sua invisibilidade diante da vida, acompanhada de uma fúria irascível perante os acontecimentos. Mas, uma garotinha, por mais feiúra e monstruosidade esse tio pintasse, ou fosse pintado pelos outros, via uma beleza, que nem o próprio Hades enxergava. Esses olhares femininos!!!

Foi assim, que ao fazer 15 anos, Perséfone foi conduzida ao Hades. E aquele mundo no qual todos se assombravam, que quem entrava não saía, que era repleto de dores e ranger de dentes, ela colocou leveza, desculpe-me Afrodite, ela levou beleza. O Hades nunca foi o mesmo, nem enquanto espaço, nem enquanto tempo, nem enquanto ser. Uma única presença e alterou tudo, como se antes de ela nascer, ela já estivesse fadada a ser esse ponto de equilibro, de tensão entre dois mundos.

Nunca disse, mas amo Perséfone. Não apenas por carregar um Hades inteiro dentro de mim, mas por ela não correr das cicatrizes, machucados, feridas que trazemos de batalha. Por ela conseguir amar e olhar para além da armadura que colocamos e do elmo de invisibilidade que temos. Sim, se Perséfone é a Primavera e com isso traz o feminino. Hades é o inverno e por vezes o masculino. O outono e o verão serão as estações negociadas entre Hades e Demeter. São os pontos em nossa psique que podem ser negociados, compartilhados, quiçá entregues.  

É impossível não ser seduzido pela “inocência e candura” de Perséfone. Falamos das deusas para que cada mulher nas suas múltiplas faces se reconheça Perséfone, Demeter, Afrodite e outras tantas. De igual modo que compreendam seus filhos, maridos, namorados como Hades, Zeus e alguns outros. Percebam como representação. Demeter é o atributo da mãe, da geradora, da cuidadora, da criadora. Perséfone é o atributo da filha, aqui quero vê-la como a desviada, a menina doidinha que ninguém entende o que esta fazendo: se ela tem tudo, por qual motivo ela esta se envolvendo com esse povo barra pesada do Hades?

Porque ela tem o vazio existencial. Porque ela sabe e sente que tem mais coisas entre os campos de centeio e os mundos infernais do que está sendo mostrado, esta sendo dito pelos seus pais. Porque há uma parte de nossa alma que necessita se alimentar e por vezes se nutrir desse universo mais denso, pesado, trágico. Porque ela tem a curiosidade das buscadoras da verdade. A mãe dela quer ir fazer compra no shopping, quer que ela seja bailarina, quer que ela case com um bom partido, mas ela necessita de outra dosagem de adrenalina. Demeter espera que sua filha reine sobre a Terra, Zeus, seu pai espera que ela viva no Olimpo, nos céus; e é curioso como que a partir do céu e da Terra, ela esta destinada a imperar nos mundos subterrâneos, que é quase a justa medida entre o reino dos seus pais.  

Há uma Perséfone em cada mulher. Uma que necessita transgredir, ir além do mundo demarcado pelos pais, pela família, pela própria sexualidade dela. Perséfone é a puta no sentido mais sagrado do termo. É a que vai se fazer mulher desafiando os limites dos pais, rompendo e quebrando fronteiras, até que seja capaz de os reconciliar. O trágico disso é que nem todas conseguem a reconciliação, seja com elas, seja com os mundos que elas passam a dividir, ou se expulsam, exilam; de todo modo... O trágico é a auto sabotagem que nos infligimos. Quantas descem ao Hades e não mais retornam? Se perdem? Quantas esquecem o movimento das estações nelas mesmas e passam a se nutrir apenas se envenenando?  

Perséfone é aquela que se deixa raptar por Hades, porque ela também tem o seu inferno, sua dor, sua falta. Perséfone é a menina que precisa encontrar seu lado mulher e fará isso com um homem que vê nela muito mais do que doçura e travessuras.   


Se reconhece?

Falaremos do medo. 

segunda-feira, 30 de junho de 2014

AS QUATRO ESTAÇÕES - PRIMAVERA




Anos atrás escrevi sobre a chegada da Primavera. Agora venho anunciar que ela chegou ao fim. Não que ela tenha terminado, mas passou, foi embora. Ficou por muito tempo, mais até do que podia e lhe era permitido. Como sabemos, as estações são cíclicas, vem e vão, passam e retornam. Somente os incautos a querem eternamente. Como que impedindo outras estações chegarem, outros movimentos acompanharem, a vida se suceder e se renovar em todos os seus sentidos e níveis.

Recordo, como se fosse hoje, da Primavera entrando na minha sala. Tinha uma alegria incontida, tinha uma felicidade glamorosa, tinha um riso no olhar e uma profundidade no sorriso que abria as portas de todas as salas, de todos os portais. Eu ficava rindo da alegria que a Primavera produzia em mim. Cheguei a pensar que quando ela fosse embora, as flores murchariam, o verde desbotaria, mas nada disso tinha importância, porque ela trouxe a Primavera para minha vida, para mim.

A Primavera já não era mais uma prima, já não era mais uma estação cujo tempo e ciclo todos os viventes da Terra estariam, a Primavera era uma alegria de estar, de sentir, que existia em mim, comigo, a Primavera era um estado interno, uma estação interior. A Primavera floria dentro de mim, iluminava eus e aspectos meus que se faziam taciturnos, sombrios, cinzentos. A Primavera me deu oportunidade de cuidar dos meus jardins secretos.



As mudanças da Primavera me fizeram mexer, mover, caminhar e especialmente perceber que o que buscamos é a integração. Cada mulher na vida de um homem, cada homem na vida de uma mulher nos fornece condições de sermos melhores, seja um para o outro, seja um com o outro, seja os dois para com a vida. O erro, na verdade, a falha e falta que venho observando é o descuido conosco. Como que poucas vezes usamos essa força de maneira consciente para sermos melhores com a gente mesmo, conosco mesmo. De modo que aos meus olhos a Primavera, metáfora para as mulheres, para o feminino, busca ser as 4 estações e é sobre isso que escrevo em quatro movimentos que devo postar semanalmente. 



1º MOVIMENTO:


Quatro estações é uma obra de Vivaldi. Grandiosa. Solene. Bela. Ontem, após eu abrir as portas para a Primavera ir embora, passar, se despedir, seguir seu rumo e seu ciclo, eu não compreendia, como que um relacionamento amoroso pode terminar com um amando o outro e o desejando ainda mais forte?

E a possível resposta é: aceitando as variações, as mudanças das estações. Aceitando os ciclos, os ritmos, as variações, enfim... aceitando a vida como música. Mais precisamente, compreendendo que para qualquer movimento, a liberdade é fundamental. E as relações podem ser espelhadas pela lógica do senhor e do escravo, não importa, se um esta impedido de ser, o outro que o prende, o acorrenta, é também um prisioneiro. 

Não preciso frisar para ninguém que nos prendemos, que fazemos escolhas que condicionam a nossa liberdade. Mas, queria enfatizar, que no que tange aos sentimentos, esse estar com o outro deve transcender a idéia de prisão e se transformar em ato deliberado da vontade, do querer, do desejo. Sim, poderia estar em qualquer lugar, mas escolho estar aqui com você. Foi isso que Sartre pensou ao falar do casamento, dizia o filósofo francês: quando escolho uma mulher, renuncio a todas as outras. Não, porque se prende a ela, mas porque nuna concepção nietzscheana, eu escolho hoje, agora, amanhã, sempre, que este momento se repita. E a consciência dessa escolha, mais do que prisão é libertação, mais do que castigo é absolvição. E o nome que o filósofo bigodudo deu para isso foi AMOR FATTI. Amor à fatalidade. amor como um dizer sim à vida, ao viver e a tudo o que ela anuncia, traz, leva, devolve, inicia, termina. Não deveriamos temer o Eterno Retorno.  

E, sem muitos temores, reflito que eu retive a Primavera em uma única estação por muitos anos. Claro, que ela mudou, claro que mudamos. Claro que pedi inúmeras vezes para ela me mostrar seus invernos mais tenebrosos, seus outonos mais rigorosos, mas a bem da verdade, não estive com ela nesses momentos. Deixei-a sozinha. Comigo, quase ao meu lado, mas sozinha.  Quando fui ao encontro dela, decidido a deixar que o instante no qual estivemos juntos, qualquer um deles se repetisse sem que isso fosse um ônus sobre os ombros, ela estava cansada da espera. Parte do nosso instante tinha se desfeito. Quando, ela quis partir, como que escapando de minhas mãos, do meu abraço, eu a segurei pelos cabelos. Era a parte física que me restava. Na minha cabeça, ela não tinha o direito de partir, mas dá mesma forma que ela veio é claro que ela pode partir. E é igualmente óbvio, que as portas estão sempre abertas para ela, porque a beleza da Primavera é o movimento. E a beleza de todo amor, de toda vida é o encontro. 

A magia de se encontrar com um outro que chamarei de instante. Esse instante é tempo e espaço. É um ente interno e externo. O instante que existe e que cala é esse inefável que a gente agarra, segura, tenta reter, mas o seu sentido, a sua essência é esvanecer, é flutuar, é fluir. E a nossa vida deveria ter como meta a criação de instantes sublimes. Segundos, inesqueciveis que nos fazem nascer, renascer, nascer de novo, provar outras primaveras, apenas para ter esse insntante para sempre. 

Enfim... O lindo da vida são as variações, as mudanças. E escrevi tudo isso, porque a vi e a chamei de Primavera, achando que uma mulher, um relacionamento, poderia ser um solo de uma nota só. Perdoe-me. Não pode! O outro é mais do que o instante que o congelamos e o impedimos de caminhar. 
O outro é dinâmico, flui, escapa, se move, se adapta, escamoteia, mas só tem sentido, ou melhor, só tem sentido para mim e em mim, se for capaz de se fazer quem é. Mesmo que isso incorra na vivência de outros instantes com outras pessoas, a perda da exclusividade da estação. É somente, nesse ponto que a jura de amor é traição a si mesmo. Nesse ponto em que todo sublime do encontro com o outro, a completude dele só se realiza na plena liberdade de estar consigo também. Sem essa liberdade, dois se acorrentam numa composição de uma nota só. 

Por isso a partir de hoje te chamo de 4 ESTAÇÕES. Especialmente, porque reza a lenda que Vivaldi compôs 4 estações pensando no seu contato com a natureza. É vero! Mas, acordei no meio da noite, certo de que os movimentos de Vivaldi não são para uma natureza externa, ele estava apaixonado e falando de uma natureza interna. Ele estava falando da paixão, do amor, do instante no qual nos encontramos com o outro. Todavia, a lição mais preciosa que ele estava nos dedicando é que o Allegro da Primavera é sensacional, lindo, mas todo os outros Concertos são também. Todas as outras estações são também. E é uma estulticie acreditar que o amor é feito apenas por coisas boas, na verdade, o amor é repleto de provações, que se torna mais leves, rarefeitos, devido a presença desse outro conosco e nos ativando. 

Assim, nada tira do meu campo intuitivo, que Vivaldi fez as 4 Estações pensando no amor, na paixão, nas relações, no seu universo interno. Vivaldi em 4 Concertos nos ensina os movimentos do bailar interno da vida. Escutem. 

Primavera é toda linda. Toda. Em todos os seus ritmos, todas as suas variações, todos os seus tons, em todos os seus movimentos. Especialmente, naquele que tu me ensina a ver o verão e as outras estações em mim. 
Que o nosso recomeço seja ainda mais pleno. 

Mil bjs. Eternamente grato. Por tudo. 


domingo, 22 de junho de 2014

PROTEÇÃO E/OU CUIDADO.



Estou aqui fazendo uma enquete mental e postando para leitores reais, virtuais, imaginários e nem tanto assim; você é protetor ou cuidador? Respondeu? Falta maiores dados para responder? 

A cuidadora, cuidador é atencioso, melindroso, tem muito esmero, capricho, minúcia, se atém a detalhes, observa cada gesto, postura e sabe interpretar cada um deles com muito requinte e precisão, isto os torna profundos, pelo menos no que se refere a quem ou do que estão cuidando.

 De forma geral, os cuidadores retomam a energia da mãe. Pensando a mãe como sendo aquela que se ocupa com os detalhes, com as delicadezas, com os gostos, com as singularidades de cada filho, de cada membro da família. Aquela que é capaz de ao fazer a comida separar partes com mais pimenta, outras sem alho, outra sem cebola para que cada um sinta-se bem ao comer. Recordo-me de uma que dizia saber qual filho abria a porta, pelo jeito de colocar a chave na fechadura. A forma de caminhar apenas confirmava a impressão anterior. E o chamar pelo nome, era mero detalhe para perguntar o que tinha acontecido, sim, pela forma de abrir a porta e caminhar, ela sabia ler como o filho encontrava-se subjetivamente, sem ao menos tê-lo visto, ou falado com ele. A maioria das mães, das esposas conseguem esse feito e isso não é magia é cuidado e observação.  
Podemos observar essa energia de cuidado em outras esferas, por exemplo, a escola primária, na qual nos deparamos com a Tia. Esta em sua atividade tem como função social espelhar a mãe, fazer da escola, uma extensão da casa. Assim, ela deve cuidar, o mesmo se dá com a enfermeira.

Oposto e complementar ao cuidado está o proteger. O protetor é concentrado, metódico, áspero, por vezes rude, superficial, quase nunca se atém a detalhes. De modo geral, os protetores retomam a energia do pai. Pensando o pai como aquele que se ocupa com o geral, com o sustento, com as necessidades. Aquele que quase nunca repara as singularidades, focado que está no coletivo. O protetor, o pai vê a família como todo e é difícil compreender que a família é composta pela singularidade dos seus membros. 

Essas dinâmicas parecem que já foram mais bem demarcadas. As instituições conseguiam ter mais claramente se cuidavam ou se protegiam, assim como as pessoas sabiam também se eram protetoras ou cuidadoras e isso geralmente era dado pelo componente biológico; macho protege, fêmea cuida.

Fato é que precisamos ser os dois, aprender sobre os dois e isso não tem sido tranqüilo. Integrar cuidado a proteção e proteção a cuidado é uma dinâmica que requer atenção, ou melhor, que exige autoconhecimento. Olhar para dentro e acionar a parte que nos falta, geralmente, em nós homens, uma parte feminina e nas mulheres, uma parte masculina.

Na clinica a maioria das pessoas chegam em busca de cuidado, precisando ser cuidadas. O meu forte é proteger. Cuidar para mim demanda um esforço enorme, porque implica em aprender a cuidar da gente mesmo. E, nós homens, de forma geral, sempre fomos cuidados. Tenho amigo de mais de 40 anos que nunca compraram uma meia, uma cueca para falar do mais básico e elementar. Eles nem sabem qual é o número de calça que vestem. Primeiramente, a mãe fez isso por eles, depois as esposas, namoradas. Poucos de nós sabem cuidar da gente mesmo. O maior tormento quando homens se separam é que não sabem cozinhar, lavar, passar, enfim... cuidar de si mesmo. Há uma dependência da outra no pior sentido do termo, isto é, naquele que não consegue olhar para dentro e nutir uma dimensão importante do nosso ser- nossa esfera afetiva, nossa relação conosco mesmo. 

Indo mais longe, em quatro anos de clinica atendi quatro, se muito, cinco homens. Nós não cuidamos nem da gente e enquanto temos alguém ou algo para proteger ignoramos e relegamos esse cuidar interno as favas. Nós não vamos nem ao hospital sem que uma mulher marque, nos carregue. 


As mulheres se cuidam, ou melhor, as mulheres cuidam. Sãs treinadas, ensinadas a exercerem essa função, acabam por aprender a se cuidar de forma indireta, mas poucas sabem se proteger. O mais complexo é que quando elas se separam, uma grande maioria, perde a referência externa e interna. O fazer delas de forma geral é voltado e direcionado ao outro- marido, filho- quando o marido vai embora, ou os filhos crescem, uma angustia, um vazio, um não lugar intensifica. Elas esquecem de cuidar delas mesmas e continuam buscando proteção fora delas. Muitas param de cuidar de si mesmas, buscam proteção em lugares duvidosos e ao não encontrarem ampliam a sensação de vazio, de incapacidade, de menos valia. Demora um tempo canalizar força, atenção, cuidado, para perceber que elas conseguem ficar de pé e caminhar sem um homem ao lado,ou por trás para dar suporte, guiança. 

Terapeuticamente falando, a maioria das pessoas querem cuidado. No entanto, o meu ponto forte é o proteger. Nesse hiato tenho ofertado, cada vez mais, o aprender a se proteger, cuidando de si mesmo às pessoas que me procuram. É uma aprendizagem conjunta, tal qual o primeiro filho ensina aos pais a serem mãe e pai. É uma ilusão acreditar que isso é inato, pelo contrário, tanto o cuidar quanto o proteger são habilidades que podem ser treinadas, praticadas e quanto mais as praticamos, menos paradoxal essa dinâmica vai nos parecendo.

Na minha infância era impensado um pai trocar fralda do filho, preparar uma mamadeira. Nessa mesma infância era um absurdo uma mãe trabalhar para comprar as fraldas e o leite dos seus filhos. A dinâmica mudou e os homens cuidam e as mulheres protegem. É um ganho para a sociedade. Nossos filhos tendem a ser mais integrados do que fomos.

Estamos nos construindo como seres mais integrados e essa integração não se faz com um encaixe perfeito, imediato. O encaixe se dá mediante a troca, a atenção, a percepção. E, com isso retomo a pergunta inicial, você é mais protetor, ou cuidador? Ou os dois? Ou nenhum deles? Saber a resposta, se colocar essa questão, pode nos fazer seres humanos melhores. 





quinta-feira, 5 de junho de 2014

TAROT e principio da incerteza

TAROT e principio da incerteza um diálogo entre místicos e estudiosos.

O tarot é um jogo divinatório conhecido, conceituado, respeitado. Envolta dele há muita mística, parte dela sendo desmistificada por estudiosos e pesquisadores dessa arte. A corrente mística do tarot o compreende como sendo figuras arquetípicas de épocas remotas (Egípcios, Hebreus, Atlantes), codificadas em símbolos por grandes mestres para manter um conhecimento preservado, mas longe do olhar insano de muitos. Seguindo essa tradição, esse conhecimento se faz saber oculto passado a poucos iniciados.

Uma concepção mais recente, de estudiosos dos arcanos, já o grafam como sendo cartas que chegaram a corte européia por volta da Idade Média/Renascença. Nada nele é místico, pelo contrário, ele possui uma racionalidade que todos e qualquer um com estudo, esmero, dedicação pode aprender. Essa corrente desmistifica essas histórias as localizando no tempo, no espaço, na fonte que elas começaram a ser difundidas. 

Temos assim duas linhas que sempre se apresentam como opostas, mas são complementares. No meu mestrado, as identifiquei na ciência, como o que Nietzsche chamou de apolínea x as dionisíacas. As apolíneas são solares, claras, objetivas, racionais, por assim dizer. As dionisíacas são ébrias, circulares, lunares, dizendo assim mais toscamente. O ponto nietzscheano é que para ele, os gregos eram trágicos, isto é, equilibraram as duas forças, as duas formas. Sócrates ao privilegiar o apolíneo representaria a decadência. Os grandes oráculos gregos eram dedicados a Apolo, todavia, não resta dúvida que o jogo, o engano, a arte de ludibriar tinha um aspecto dionisíaco, isto é, de Hermes.

Seguindo essa linha durante séculos as artes divinatórias não estiveram separadas do que hoje denominamos ciência. Esses saberes eram apenas um. Nesse aspecto a ciência se desenvolveu tendo como marcador falar daquilo que pode ser dito e se calando sobre o restante. Mais claramente, os aspectos dionisíacos foram sendo retirado do mundo, deixando a arte como último subterfúgio. Até os sonhos ganharam contornos e dimensão ‘racional’, lógica- psicanálise. As artes divinatórias ganharam lugar e força de oculta; numa perspectiva, foram as guardadoras de lugar contra a mecanização do mundo. Foram.... já não são mais, pelo menos nem tanto.

I

Escrevo tudo isso porque comprei e li o livro “Curso de Tarot” do Nei Naif. Ele é um estudioso do tarot. Mais do que um estudioso, ou justamente por sê-lo, ele desmistifica uma série de bobagens que os místicos fazem, falam, situam, perpetuam: cortar com a mão esquerda, dividir o monte em três, dar seis pulinhos antes do primeiro corte, terminar a leitura sempre com a mão direita voltada para Meca, seja lá a loucura que estabelecemos para darmos sentido ao universo vazado, oco, vazio que os oráculos nos remetem.

Naif ensina a focar o olhar. Toda a sua metodologia parece ser o aprendizado de ver o tarot enquanto símbolo, registro gráfico que nos possibilita aclarar as coisas com precisão. Ele situa os arcanos maiores nas suas dimensões física, mental, emocional, espiritual, uma dessas dimensões pré-determina qual aspecto a leitura deve focar. A objeção é que um arcano representa e simboliza não apenas um aspecto, mas o todo, a totalidade. Pre-determinar a leitura do arcano a uma dimensão tende a ser uma redução perigosa. Em defesa dos estudiosos poderíamos dizer que talvez, isso seja bom, desde que fique claro que o arcano maior não é apenas um aspecto, ele é o espelho do todo. A pergunta que vale a pena ser feita em defesa dos estudiosos é: se a pergunta diz respeito apenas ao mental, porque vou abordar todos os outros pontos que o tarot encerra? Qual a necessidade disso?

E, de fato, talvez não tenha a não ser a busca por encontrar a imagem da totalidade. Imagem que os oráculos não deveriam parar de buscar, ou almejar. 

II

De todo modo, talvez, nessa pergunta, eu elucide a distinção entre nós místicos, de forma geral, dionisíacos; e os estudiosos, geralmente, apolíneos. É que para os místicos o oráculo é um ser. Um ser no qual escutamos. O oráculo é o jogo. Um jogo que toma forma, que nos devora caso não o decifremos. E decifrá-lo se faz quando nos tornamos o próprio jogo, a própria leitura, fundindo jogo, jogador, partilhante em uma única teia. Recordo de uma babalorixa... antes de começar a jogar os búzios ela me disse: “sou uma porta-voz. Eu falo o que ele me manda e não tenho permissão de mudar nada daquilo que ele me pedir para falar. Não tenho também a permissão de inventar, aumentar, alterar, mentir. Sou fiel ao que ele me diz sob pena de perder a mim mesma.”

Ela é mística. Quando ela joga, ela é tomada pelo jogo. Ela não é mais ela, ela é Ifá. A direção que ela tinha pensando em ir, se desenha e se apresenta em outra direção e lugar. Tento descrever o que acontece, leiam com atenção:

A gente olha o jogo. Recorda da pergunta elaborada pelo partilhante. Começamos a ler carta por carta (tarot), posicionamento por posicionamento (astrologia/numerologia) até que em determinado momento tudo se funde. Tudo o que era desligado, desconectado, parcial, compartimentado, sem ligação se liga, se conecta. Nesse momento não há uma ou outra coisa, causa e efeito, há uma fusão. Tudo é um único ser. Um ser que se fragmentou, que se dividiu por não suportar o peso da unidade. Mas, ali, lendo o jogo, temos com muita clareza onde ele pode encontrar a unidade, ou quem sabe, a harmonia entre todos os fragmentos dele. Muitas vezes essa leitura não tem nenhum sentido para nós, mas, milagrosamente, faz todo sentido para a pessoa. É como se tivéssemos deixado de falar dela(e) e passado a ser ele(a) sem saber quem ela(e) é mesmo. Nesse ponto já foi criado uma atmosfera psíquica, plasmática na qual há uma teia pela qual vemos, lemos, aquilo que não sabíamos segundos antes e por vezes esquecermos minutos depois. Essa teia plasmática circunda o jogo, o jogador, o partilhante e outras esferas ainda mais tênues, invisíveis por onde partilhamos nossas informações. Aquele jogo não é mais de um individuo, de uma pessoa, ele é coletivo. O aprendizado dele é para todo um grupo, um segmento, um núcleo. Nesse momento o jogo conecta o jogador, o partilhante e o próprio jogar numa rede, numa teia e não temos o direito, a capacidade de violar essas linhas e interações. Todavia, elas se mostram numa perspectiva na qual e pela qual todos poderiam sair ganhando. Essa linha não tem tempo, quebra as dimensões de causalidade, em verdade, as supera e as transmuta. O jogo fica mágico, porque tangencia, adentra outra esfera, outro campo e permite meios, mecanismos de alterar as realidades. Não apenas física, ou emocional, mas todas elas.


Já os estudiosos fazem um caminho muito mais seguro. Seguro, porque o caminho depende deles. Eles controlam tudo até mesmo o jogo. Eles não se perdem nesse universo desconhecido, pelo contrário, eles estudaram as cartas, os arcanos para não se deixarem tomar por essa força. O jogo nunca ganha vida própria, nunca sai do controle. Ele ganha sentido, significado claro, claríssimo, cristalino, quase profético também, mas por outro mecanismo. Um mecanismo de leitura, interpretação, significação racional, estudado. Uma significação metódica, racional, esquemática, regulada, testada, apolínea. Eles vão lendo carta por carta e no conjunto conseguem uma compreensão e transmissão do que foi vivenciado. 

Eles exploram níveis de profundidade e elevação de cada arcano, de cada posicionamento. Níveis que vão muito além do que muitas vezes os arcanos dizem de maneira imediata, mas devido ao estudo, ao método, muitos deles entram no invisível sem perceber e talvez seja melhor assim.  Porque são eles que voltam depois desenvolvendo um método seguro para quem deseja ler e aprender sem se perder, sem se desviar.

Para os místicos as cartas começam a falar, umas dialogam com as outras, chamam as outras, pede uma companhia ao lado. Por várias vezes, elas me diziam em ar de intimidade e dica: “observe para onde estou olhando!” E ao seguir o olhar, a postura dela, encontrava a resposta, o diálogo oculto que estava acontecendo e esse diálogo descortinava um mistério. Comparando a um vôo. Os místicos realizam um vôo cego. Saímos de um ponto e chegamos a outro que não definimos de antemão. Os estudiosos antes de tudo estabelecem um plano de vôo. Sabem onde vão pousar. O jogo para eles é claro. Eles transportam os seus passageiros sem sobressaltos, sabem evitar as turbulências.


De modo que parece que para místicos é mais importante a viagem do que o plano de vôo. Já para os estudiosos é mais importante o plano de vôo do que a viagem. Mais precisamente, o vinculo do místico é com o oráculo, com Ifá. É a ele que devemos obediência e ele é que abre e fecha nossos olhos, cala e abre nossas vozes. Já os estudiosos têm vinculo com o cliente. É para ele que se volta a leitura, a compreensão e se ele pede conselhos sobre o aspecto amoroso, mesmo que as cartas estejam gritando que se deve ver o lado espiritual, foca-se na interpretação amorosa.

A moral da história é que no holismo não podemos nos fazer especialistas por mais que isso facilite o entendimento do vivenciado. Claro que entendo a interpretação astrológica que prima pela clareza: sol-identidade, lua-emoções; marte-instinto; etc... mas isso fragmenta o ser da pessoa em 12, 24, 36. Fazer a leitura dos arcanos maiores num dos níveis é divino, aumenta a precisão em 90%, mas diminui a expressividade do ser em 97%. É algo mesmo de princípio de incerteza, isto é, a impossibilidade de precisar entre o ser e o estar da pessoa ao mesmo tempo. Mas, se a Física e as ciências da natureza podem se dar a esse luxo de um ou outro, a nós que lidamos com as ferramentas do ser, as tecnologias do autoconhecimento temos que caminhar para o ou/e do gato de Schrodinger que esta meio vivo e meio morto ao mesmo tempo. 

As artes divinatórias precisam apostar na totalidade. É nela que espelhamos o real, ou mais precisamente, que o real se espelha. Recorrer a especificação sem dúvida que a torna mais inteligível, acessível, todavia, já temos a ciência que faz isso muito bem. O tarot e outros oráculos tem que tentar refletir o todo, como faz a poesia, como nos disse o poeta: 

"Ver o mundo num grão de areia
e o céu numa flor silvestre
ter o infinito na palma da mão 
e a eternidade em uma hora. "
Willian Blake