domingo, 16 de outubro de 2016

XIII ENCONTRO MINEIRO DE FILOSOFIA CLÍNICA/I DIÁLOGO NACIONAL DE FILOSOFIA CLÍNICA.

O belo encontro aconteceu na não menos bela cidade de Poços de Caldas. Tomei a liberdade de fazer um breve relato das falas dos queridos companheiros de área que tanto acrescentaram e contribuíram para os diálogos. Essa fala é um olhar, uma percepção e não sei em até que ponto toca a forma como cada qual compreendeu e sentiu as comunicações. De todo modo, confiram aí e podendo acrescentem mais informações, percepções.

13 de outubro

·        14hs Abertura dos Trabalhos.

Os trabalhos iniciaram com o atraso natural de quem espera pela chegada de todos os participantes vindos dos mais diversos pontos e a alegria dos reencontros. Nesses reencontros sentimos a falta da amiga, professora Marta Claus que por motivos outros, não pode estar conosco fisicamente, mas esteve das mais diversas formas, inclusive na lembrança carinhosa de cada um dos participantes que tinham nela uma intercessão que nos unia.

·        15hs PRÁTICA DA FILOSOFIA CLÍNICA EM OFÍCIOS DE ARTES: Ana Cristina da Conceição.

Foi uma bela abertura das apresentações. A moça bela, inteligente, sensível e me permitam dizer ‘desconhecida’ emocionou a todos ao expor um trabalho tão singelo, tão sensível e tão fortemente embasado, costurado nas metodologias da FC.

O trabalho desenvolvido se dá num espaço pago pela prefeitura de São João Del Rey, sobre a supervisão de uma psicóloga e de uma artesã, que mediante pintura, crochê, pequenos reparos em material de demolição, música e outros ofícios auxiliam os participantes (muitos rotativos) a retornarem as suas vidas mediante o ato poiético. Nessa relação dialética, laborativa no qual o trabalho transforma a natureza, ao mesmo tempo em que transforma cada um dos envolvidos; alterando as vizinhanças, as autogenias. Toda casa é gestada e gerida numa ótica da sustentabilidade em que o produzido é vendido para o sustento da própria casa e a capacitação interna dos envolvidos.

Ana Cristina nos fala de alguns partilhantes, da dificuldade de se seguir a sequencia metodologica da FC da colheita categorial a aplicação dos submodos, devido a muitos fatores, especialmente, a própria dinâmica do lugar. Ela destaca em sua fala, três partilhantes. Primeiro (não em ordem de apresentação) o rapaz que sentia a cabeça como uma panela de pressão. Depois a que que se falava pela pintura das rosas, das flores. Em terceiro outra que mediante o canto, a música se falava, se desvelava. Esta chegava muda, ia em direção ao teclado e começava a cantar, a tocar. Depois de muito canto, ela falava das suas dores, do seu mundo, das suas representações. Nisso vinham outras músicas não apenas dela como de outras pessoas.

Essas pessoas se dizem com as semioses mais variadas, que Ana Cristina numa atenção sensível vai proporcionando, ou vai dando condições de eles se desvelarem da maneira que somente ele pode se dizer (singularidade). Singularidades encontradas pelo submodo da esteticidade.

Essa apresentação mexeu demais com todos nós, inclusive comigo, porque me lembrava o trabalho de uma amada-amiga junto a saúde mental lá nos idos dos anos de 1980 em São Paulo, mas quem vai retornar parte dessa história será o Dr Cláudio em sua fala. Enquanto ela ia narrando eu ficava pensando a necessidade de espaços como esses para acolher as pessoas que estão passando por ‘transtornos’ psíquicos e mais do que serem estigmatizados necessitam ouvir-se, perceberem-se para darem prosseguimento a sua vida. Prosseguimento que passa pela acolhida, pela produção não em série e em escala, mas a produção via poiesis, na qual aquilo que eu produzo, eu gero, eu faço não me aliena de mim, muito pelo contrário, possibilita que eu me veja e me perceba no objeto produzido. Nesse ponto eu valorizo aquilo que faço/sou. O sujeito passa a encontrar sentido na sua existência e amplia a sua sensibilidade, ou aprende a lidar com ela por intermédio da Arte.

Por muitas vezes eu fiquei para perguntar a ela: vc viu Nise da Silveira? Veja!! E arteterapia, ou já leu “O Mundo Secreto dos Desenhos”?

Enfim, a gente espera a escrita da Ana em um artigo para ampliar ainda mais nossa percepção. Foi uma graciosíssima presença.

·        16:30hrs FILOSOFIA CLÍNICA NO CUIDADO AO IDOSO: Patrícia Oliveira.


Uma abordagem ‘nova’ para a FC na qual Patrícia com extrema competência e clareza expõe a amplitude profissional do filósofo(a) clínico. Ela nos fala do posicionamento deste ao lado do seu partilhante, ressalta a necessidade de se cercar de bons profissionais e estruturar o seu trabalho no mais alto nível. Pode parecer bobagem, mas Patrícia nos ensinou que o cuidado ao outro não desassocia do cuidado de si mesmo. E, o prisma que ela utiliza para construir essa abordagem não é a terapêutica, que estamos acostumados e afeitos e sim a PROFISSIONAL, que as vezes escapa. Ou seja, cuidar de si mesmo aqui refere-se a responsabilidade de se compreender como alguém que estudou, se capacitou para exercer uma função e esta não pode ser meramente voluntária. Ela nos mostra a importância de se guardar um lugar e de se estabelecer numa posição de forma ética, clara, transparente. E tudo isso passa ou tem como ponto emblemático, um CONTRATO.

Em sua fala, ela aborda alguns casos, como o de alertar a equipe médica que sua partilhante que estava no CTI não podia receber determinada medicação, registrando e aclarando a atenção que ela dispensa aos seus atendimentos, ao cuidado prestado e envolvido a cada partilhante. Ela nos conta também do acompanhamento junto com as/os partilhantes a uma consulta médica e a garantia a essa partilhante que ela tenha voz, seja ouvida. Já que algumas vezes os médicos ignoram a presença da pessoa buscando se comunicar apenas com os familiares, ignorando a percepção e a representação do outro. Fica da sua apresentação o profissionalismo, a ética pessoal e profissional como grande marca.

Também esperamos um artigo, ou uma vídeo conferência, um curso virtual falando e expondo para mais pessoas essa experiência exitosa.   

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 17:30hrs ESTÁGIO SUPERVISIONADO: para que orientador? - Guilherme Gomes Caiado

Parte dessa exposição já podemos ler na Partilhas desse ano. Guilherme de uma forma bem aconchegante inicia a sua apresentação com uma dinâmica de apresentação. Após isso, ele nos coloca para refletir e depois falar sobre o papel do orientador.

Guilherme em conjunto com Maíra sua amiga e colega de turma escrevem dos contratempos que teve ao longo de seu pré e estágio supervisionado. O ápice do contratempo se dá quando a sua partilhante, depois de setenta páginas escritas, acaba largando a terapia. Ele desesperado, descontente, pensa em largar de vez a busca pelo certificado A.

Chama atenção em sua fala e no diálogo que se estabeleceu a partir da sua exposição, o sentido metodológico e especialmente que escapa a metodologia na formação do filósofo clínico. Mais precisamente, parece que todo ensinamento metodológico da FC tem o objetivo que aprendamos aquilo que não se ensina por nenhuma técnica: o respeito a singularidade e a escuta. 
Particularmente, gosto de pensar que o pré-estágio é o momento no qual o filósofo clínico se coloca na condição de partilhante (espacialidade) sem a qual a clínica fica dificultada. Guilherme nos fala da necessidade de entrega, da confiança, da organização não apenas mental quanto psíquica para a clínica acontecer de forma mais clara e elegante.

14 de outubro

·        9:30hrs ABERTURA DOS TRABALHOS: Izabel Cristina.

Realizou uma dinâmica que serviu de orientação para pensarmos algumas situações.

·        10hrs A QUESTÃO DO AUTOCONHECIMENTO NA FILOSOFIA: da identidade à singularidade- uma contribuição para a prática da Filosofia Clínica. Marta Batallini.

Sem dúvida foi o trabalho que pautou as discussões do dia e atrevo-me a dizer do encontro. Por uma via muito bem sedimentada academicamente, Batallini nos fala da construção da identidade a partir do daimon (voz interna) grega, passando pela conceituação de persona/mascara pelo viés sociológico de Talcott Parsons de (ator social).

Essa construção identitária serve para ela pensar os múltiplos papeis existenciais que vivenciamos e a necessidade de: 
a)   não soma-los, isto é, deixar que a esposa se alce ao papel de namorada, ou de mãe, ou a de professora, ou a...
Na matriz sociológica que ela fundamenta muito bem sua percepção, as mascaras sociais que utilizamos são frutos de uma soma e não de uma divisão. Ou seja, todo número multiplicado por 1 é ele mesmo. Nessa condição há um mesmo (nossa identidade) que deve ser multiplicada e não somada. Quando a somamos tendemos a nos dividir e a levar problemas de uma persona para outra. Essa somatória segundo a percepção dela tende a acarretar problemas existenciais, que valendo-se de seus procedimentos são fáceis de auxiliar o outro. Sem dúvida que é clinicamente interessante.

Ela ainda avança para a questão da singularidade que não me atrevo a buscar expor aqui de forma breve. Não preciso dizer que é provocante a visão e concepção por ela apresentada, mas de fato muito boa e interessante. Digna de um artigo para melhor apreciação e discussão. Partilhas e nós aguardamos.

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             11:30hrs A FILOSOFIA CLINICA NA PSIQUIATRIA: Cláudio Fernandes

Uma apresentação cuja marca foi a humildade. Talvez tenha sido essa a grande impressão que o Dr Cláudio provocou em todos nós. Com um texto pronto, ele o guarda e prefere o diálogo conosco e com a apresentação da Marta Batallini que o antecedeu.


Ele nos fala de três grandes matrizes, a da psiquiatria e a classificação via DSM. Fala dela com certa dificuldade e incomodo (percepção minha, ele não fala disso diretamente). Mas, ao longo da exposição dele vai ficando claro a insatisfação e dificuldade de fazer uso desse mundo pronto e acabado no qual irá apenas se enquadrar o outro.

Nessa dificuldade psiquiátrica, ele fala da FC a abertura que ela proporciona de abordar o outro em seu universo. Nesse ponto, ele nos conta das suas atuações históricas junto aos vários movimentos psiquiátricos e antipsiquiátricos, culminando sua fala para o Programa Braços Abertos da cidade de São Paulo. Fala da acolhida aos usuários e dependentes químicos. Nos conta da sua abordagem em ouvir, escutar as demandas dessa população, assim como dos coletivos que lidam com eles, médicos, enfermeiros. Nessa sensibilidade, ele fala da importância inusitada dos dentistas para a recuperação arcaria dessas pessoas e com isso todas as implicações que isso acarreta ao recuperar a aparência, a mastigação.

Por um ato falho, ele esquece a psicanálise que lhe serviu de esteio por décadas, mas não se alonga muito por ela, apenas a registra. O cerne então da sua fala foi a escuta, mais do que uma escuta, é o desapropriar-se de qualquer pre-juízo. É o estar nu mentalmente para acolher e receber o discurso do outro, seja qual for o discurso. 

E, junto a esse discurso abrigar, acolher o outro numa atenção profunda, eidética, de acolhimento. Poucas vezes eu ouvi uma tentativa tão radical ( no sentido de ir às raízes) de se buscar e de fato entregar ao outro um lugar no qual ele pode ser ele mesmo e não se ter nenhuma metodologia definida, nada a ser utilizado, a não ser a escuta daquele ser que sofre.

Foi em pontos como esse que a humildade dele foi reconhecida, já que o psiquiatra tem o poder da imputabilidade. Poder social utilizado com os fins mais perversos e mercadológicos. Cláudio parece abrir mão de tudo isso para ouvir esse outro e a partir dessa escuta propor alternativas que não firam, não destruam, não abalem, não destitua o ser da sua singularidade. A beleza e o respeito a isso é de uma luminosidade estonteante.

Esperamos que de certa forma o texto não lido possa ser acolhido pela revista Partilha para uma publicação. Assim como maiores detalhamentos de como ele tem desenvolvido a sua prática médica. Recordei em parte do livro Visita de Médico.


·        14:30hrs PERSPECTIVAS DA FILOSOFIA CLÍNICA

Everaldo realizou o relato de sua busca por si mesmo, pelo autoconhecimento. De forma breve, mas bem pontual, ele nos contou, sua ‘historicidade’. Bacharel em música, toca flauta clássica, aos 24 anos sente uma angustia existencial que encontrou apaziguamento ao ir morar e estudar (flauta) na França. Depois de um ano, ele percebe que a angustia era um pouco maior e resolve dar um passo ainda mais instigante. Já estava lançado na facticidade da existência, ousou um pouco mais, foi estudar yoga na Índia.



Acreditou que era somente chegar, sentar na posição de lótus e se tornaria professor, aprendeu que a Yoga tinha escola, graduação, mestrado, PHD, aulas cinco, seis dias da semana, conhecimento da anatomia humana nos seus mais diversos corpos. Implicações das glândulas, dos hormônios. Relação entre as asanas e as ativações hormonais, glandulares, fisiológicas. Estudou tudo isso, virou PHD e voltou ao Brasil depois de sete anos. Entrou na faculdade de Filosofia, formou-se, tem se especializado e dedicado a filosofia da mente, abriu um Centro de yoga em Poços onde dá aulas e acabou encontrando a FC, que está já no estágio supervisionado.

·        15:30hrs FILOSOFIA CLÍNICA E LEITURA ENERGÉTICA: uma percepção sobre a singularidade e a universalidade. Kélsen André

Como bem situou o Marcio antes mesmo da apresentação: e o particular? Tem o universal, o singular, cadê o particular?

Ótima provocação. Como já tive a oportunidade de falar e quase me arrepender do que disse, agora escrevo sobre o que eu não falei e gostaria de ter dito, rsrs.

Pensei no diálogo, o realizei comigo e em mim e agora compartilho com vocês, ressaltando àqueles que não estiveram lá, que não foi assim que se deu.

Meus problemas eram dois: o que é isso, singularidade? Quanto mais nos aproximamos da singularidade, mais universal nos tornamos. Diante disso, minha questão era: é possível chegar ao conhecimento do outro? Estou querendo dizer e pensar se há uma singularidade na qual me identifico e me defino? Como alguém pode se tornar aquele que ele é? Diante dessa tensão, o que é isso singularidade?

Nessa pergunta, eu estava buscando a identidade e partindo de um a priori de que ela existe. Para isso falei da Leitura energética e outras práticas esotéricas como a astrologia que parte de um pressuposto da possibilidade de se conhecer o outro, mais do que ele mesmo. Parte-se dessa possibilidade, porque de certa maneira há uma convicção de que algumas artes divinatórias, algumas técnicas bioenergéticas captam a essência e não o aparente. Ou seja, estava afirmando sem conseguir provar, mas tinha convicção, rsrs de que há um universo vibracional e que antes de qualquer coisa, esse universo se manifesta.

Uma clara contradição performativa pelo viés filosófico, especialmente o da filosofia clínica para quem eu só venho conhecer esse outro se ele se apresenta e a partir da apresentação que ele me fornece. Aqui então temos uma intercessão entre esses dois universos, a saber; é no recorte, na historicidade, que eu conheço o outro. Todavia é ingenuidade o filósofo clinico acreditar que ele conhece o outro, já que esse forneceu apenas um recorte de si mesmo.

Nesse ponto, eu gostaria de ter estreitado uma discussão mais clara com a perspectiva da Marta Batallini e a fala do Dr Cláudio, no sentido de incorrer na impressão de que haveria uma identidade, algo que nos faz ser quem somos. Esse algo chega antes da minha atuação social e do meu papel existencial. É algo que eu vibro falando ou calado. É algo que me identifica e me singulariza. Torna-me eu e não outro. E, diferentemente do apontado pela colega todo sentido existencial é conhecer essa voz e agir por ela, de modo que se houver uma representação social, o único papel que eu posso representar é o de Mim Mesmo. E, esse eu mesmo se dá no conhecimento dessa voz profunda que existe em mim. E é essa voz que deve coordenar todas as minhas outras representações sociais.

Nessa visão, caminharia para a concordância do pensamento do Dr Cláudio que nos disse num outro contexto, mas com o mesmo sentido, que ir à clínica empossado desse olhar é um pre-juízo, é contaminar o olhar e talvez a escuta no que esse partilhante nos trás. No entanto, todo o trabalho terapêutico seria uma forma de devolver o si mesmo para a pessoa e não ensiná-la a se comportar nos mais diversos atos e representações sociais que a gente atua. Obvio que eu voltaria ao meu paradoxo da demarcação de até onde e até que ponto é legitimo minha crença nesse si mesmo, por exemplo, pensando num si mesmo de um sócio ou psicopata? Teria ele o direito de matar exercendo a sua vibração e essência? Terapeuticamente, essa poderia ser uma descoberta legitima- um assassino por natureza como rezou Quentin Tarantino?

Vou tentar escrever sobre isso e publicar junto a Partilhas e peço perdão aos queridos colegas pela falta de maior clareza acerca do diálogo que eu gostaria de ter realizado e promovido. Na próxima vez que for tão instigado por falas anteriores, que mexem tanto na apresentação que faria, abrirei uma mesa de discussão.



Ali, eu queria mais ter ouvido, promovido um debate do que falar do paradoxo entre singularidade e universalidade, pelo menos no que tange a pessoa humana no seu universo terapêutico.

·        17hrs MESA REDONDA: considerações acerca do I Curso de Aconselhamento Filosófico em Faro/Portugal: mediador Márcio José Andrade da Silva. Participantes Maria da Conceição Silva e Leonardo Ricco.


O caríssimo Márcio abre a fala mostrando paisagens de Portugal e trilhas por onde passaram. Em cada foto, ele nos conta um pouco do vivido, do experenciado, das relações. Talvez a grande foto seja a da visita a um vilarejo de pouquíssimos habitantes e a convivência com uma velha moradora que além de lhes abrir as porteiras para chegarem ao lago/rio que banha o vilarejo, os leva para casa para saborearem o vinho que ela mesma faz.

Em seguida Leonardo Ricco trás seu artigo que está publicado na Partilhas n° 3 trazendo sua percepção sobre o esoterismo e os vários significados que esse termo possui. Mesclando sua fala com o que escreveu, o que vivenciou e as paisagens internas que ele visitava em lembrança, Leo foi tecendo um universo interno, no qual ele queria nos levar para dentro, nos dar um olhar a partir da sua pupila.

Assim, como Márcio nos brinda, revive e explica suas memórias e percepções mediante fotos, nos levando junto com ele no seu olhar significado. Leo de forma ainda mais artística tentou nos levar junto dele, tentando nos fazer perceber e compreender que cada conceito construído era fruto de um sabor (sapere) experimentado. Nenhuma daquelas palavras eram apenas palavras e sim sentido de algo que marcou a sua alma e alterou seus passos (metodologia). 

Caminho que se faz ao caminhar, na sua abordagem. Claro que não conseguimos captar o que ele nos disse com a singeleza e singularidade que ele nos apresentou. Entrar no tempo subjetivo do outro é sempre um desafio. Mas, a beleza desse lugar, a ousadia de tentar mostrar essas paisagens é sempre emocionante, comovente, cativante. O artigo de Leo vale a pena demais ser lido, assim como todas as outras coisas que ele faz, devido a essa coragem, essa ousadia de buscar caminhos pouco explorados, as vezes inabituais. Poucos de nós filósofos clínicos temos a ousadia de ir tão longe e de arriscar tanto.

A terceira a tecer considerações foi Conceição, que entre o registro cativante e intersubjetivo de Márcio e as impressões internas subjetivas de Leo, nos dá em sua fala a objetividade do relato. Ela fala do encontro, da quantidade de Pintos e outro sobrenome que esqueci que ela encontra em todos os cantos. Fala de como num primeiro momento a abordagem ‘selvagem’ do aconselhamento lhe causou um certo estranhamento. Não somente a ela, como a muitos outros filósofos clínicos. Expondo uma resistência e desconforto inicial que ela vivenciou. Aos poucos, ela foi compreendendo o método, a metodologia e hoje está no nível III do Aconselhamento Filosófico. No ano de 2017, ela deve retornar a Portugal para junto de Jorge Dias terminar o Project.

Um ponto interessante que escutei de duas pessoas que fazem o curso é de como que o foco no problema, a abordagem centrada nesse problema, ajuda na clínica para pessoas que tem emergência, ou querem apenas uma solução para o que em FC denominamos de assunto imediato, sem um tempo maior para terapia. Tanto na visão da Conceição, quanto no da Marta Claus isso foi um grande ganho que o aconselhamento lhes proporcionaram. Aprender técnicas de abordagem para uma terapia breve, para questões emergenciais.

Conceição discorre ainda sobre maiores detalhes de uma e outra técnica, mas aguardamos maiores detalhamentos também na escrita de um artigo.
15 de outubro

·        10hrs NOSSA HISTÓRIA NA FILOSOFIA CLÍNICA: Izabel Cristina Pereira e Márcio José



Como diria José Trajano: “não cheguei aqui ontem, eu tenho uma história.” E que bela história. Izabel Cristina nos remete aos anos de 1990 quando toma conhecimento dessa terapêutica, mas não tinha ninguém em Poços. Entra em contato com o Instituto Packter por intermédio do computador de uma amiga, já que ela ainda não tinha. Do Instituto ela recebe a informação de que o responsável pela região era o Sebastião. Procura o mesmo, mas ele só teria turma a partir do outro ano. Ela vai até São Paulo e localiza um professor que diz que se ela conseguisse uma turma de 8 pessoas, ele abriria uma turma. Ela consegue 12 sendo que apenas 3 buscam a certificação A. Tem um imbróglio territorial, que interrompe o curso.

Ela muda para Salvador e lá refaz o curso, mas quando chega no momento do estágio, a maioria desiste, mas ela não. Cumpre o estágio e se torna filosofa clínica. Retorna a Poços e auxilia na construção das mais diversas associações ao longo do país, que culminará com o nascimento da ANFIC.

Nesse momento surge a pergunta sobre a ruptura ANFIC x IMFIC e Márcio expõe os motivos, as razões. Márcio conta a história do IMFIC, como nasceu, como se estrutura, qual o objetivo, deixando claro que ele é um centro de formação e não um sindicato de representação dos filósofos clínicos. Que na concepção dele e de muitos outros deveria ser o papel da ANFIC.

Particularmente, acredito que ainda que ela se julgue no direito de emitir carteirinha de filósofo clínico apenas para quem passar, num digamos exame de ordem, mas ela não pode legislar sobre os centros, e institutos de formação, por mais que seja compreensível um ordenamento mínimo do que a gente vai reconhecer como filósofo clínico.

A partir disso várias outras tessituras foram consideradas e saliento duas, uma jurídica e outra acadêmica;

a jurídica foi posta por Luiz que das muitas contribuições aponta o caminho de se buscar junto aos municípios a introdução da filosofia clínica como prática integrativa e complementar pelo SUS. Isso garantiria e respaldaria nosso trabalho profissionalmente.

Gláucia acha que não deveríamos ficar nessa fissura de legislação, reconhecimento pelo Mec e coisas similares, porque a nossa prática em certa medida já é maior que a academia. Não no sentido de ser melhor, mas no sentido de ela pode crescer, se estruturar, se fortalecer, se fazer um movimento alternativo a essa loucura que as pessoas tem discutido e tentado fugir. Ela utiliza a mesma lógica para falar da revista e de não entrarmos na loucura de buscar qualis e similares que funciona pelo viés quantitativo, produtivo, que tem pirado e ao mesmo tempo diminuído a qualidade das publicações.

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Enfim... é algo que temos muito a discutir, a construir. Nas recordações de Izabel, de Márcio íamos vendo o tanto que já se andou e o tanto que ainda temos para andar. Ele responde uma dúvida que carreguei de onde estavam as associações que tinham revistas e publicações diversas e percebi que elas foram criadas, mas se ‘dissolveram’ na criação da ANFIC que precisa definir sua posição como REPRESENTANTE DOS FILÓSOFOS CLÍNICOS, precisamos muito disso.

Bem, isso foi o que aconteceu dentro daquele espaço, pelo olhar desse que vos escreve. Cada um de nós lá presente teve um olhar, uma percepção podendo ser complementar, oposta a essa. Fiquem a vontade para produzir asteriscos e continuar a composição do belo encontro realizado.


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quinta-feira, 8 de setembro de 2016

ALETHEIA: a História perseguindo a verdade.

Eu fico me perguntando: como atingir a verdade? Como saber se estamos de posse dessa senhora linda e casta? Como se ter essa certeza? Sim, porque algumas pessoas a tem. E são convictas dela. Isso é a um só tempo uma beleza e uma temeridade. 

Vejamos alguns casos: Inri Cristo diz ser a reencarnação de Jesus. Agora, um outro apareceu dizendo ser também. Ambos têm convicção, certeza, a beleza da persuasão de que dizem A VERDADE. Na mesma perspectiva do engano, Temer não se acha GOLPISTA. Se acha um eleito, um agraciado pela vontade soberana do povo e das divindades. Entendem a dificuldade da situação?


Os gregos chamavam a verdade de Aletheia, traduzida para o latim Veritas, que será compreendida como VERDADE. Aletheia conjugaria uma relação antônima (a) com Lethe (esquecimento). De modo que Aletheia foi interpretada como desvelamento, Verdade.

Se essa é a interpretação oficial e tradicional do termo, fundo outra baseando-me nos desdobramentos do nome A (partícula de negação), Lethe (esquecimento), Theo (deus/es). Essa composição ‘esquecida’ e ignorada pelos filósofos, ainda que mais tarde venham a falar da clareira como espaço de transcendência, me parece um retorno a essa parte ignorada.


É nesse sentido que Aletheia ganha mais um adendo, algo como- aquela que não se corrompe, que não se perde, que é alimentada pelo fogo divino. Esse fogo (lembrança), registro, impregna os seres de uma certeza, que pode por um lado produzir sombras, ou luz (Alegoria da caverna).


O engraçado e irônico é que os deuses gregos eram humanos, demasiadamente humanos, inclusive no ato de mentir, de enganar.

O que sabemos é que esse fogo divino que alimenta a heurística, a disputa, a certeza de que por se estar certo, obvio e ululante que o outro está errado. Nós vemos esse fogo divino em disputa muitas vezes. Pessoas em posições opostas possuem esse fogo, porque de fato acreditam que estão possuídos pela Verdade. E, como provar que não estejam, não estão?

Para Platão isso se daria por uma exposição matemática, típica entre os geômetras, nas quais a influência dos números (inspiração pitagórica) permitiria a exposição clara da verdade, não na sua simples forma, mas em seu conteúdo. Um triangulo não se faz triangulo, meramente por ter três lados e sim por possuir a 180° na somatória interna de seus ângulos. Isso se faz como diria René Descartes séculos mais tarde- verdade indubitável.
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Ok, mas quando não temos elementos racionais tão fortemente claros e aclarados? O que fazemos? Como procedemos? Especificamente, quando um dos lados está mentindo e está cônscio da sua farsa, o que fazer? Mesmo ficando claro que pedalada fiscal é crime, mas não passível de impedimento e cassação de mandato, o que fazer?

Pensemos em Salomão diante das duas mulheres lutando pela posse de uma criança. Sem conseguir uma prova razoável a favor de uma ou outra, o sábio propõe uma ação extrema- cortar a criança ao meio e dar metade a cada uma das antagonistas.
Mas, eis que essa medida aos olhos da mãe é uma lastima. Aos olhos dela a verdade não valia tanto, não era maior do que seu amor e nisso, ela renuncia. Abdica do seu direito de estar certa, para apenas gozar da felicidade de ter seu filho vivo ainda que nos braços de outra.

No outro polo, está a canalha, a de má fé, a sórdida, que aceitaria a metade do filho da outra, apenas para prosseguir no seu intento. Qual intento? O de possuir aquilo que não é dela. O de ter ou de destruir algo que não possui. Essa é a tristeza da mentira, da farsa, do golpe, a usurpação. 

Fato, é que Salomão na sua sabedoria consegue reconhecer na renúncia da mãe o mais alto nível de verdade, o ceder para que a vida ganhe. Essa acaba sendo a lição que o rei nos dá para a posteridade. A renuncia se esconde nos braços da verdade e isso é uma característica que os humanos ensinaram aos deuses. Esses acreditavam possuir o fogo da Aletheia, mesmo quando mentiam e sabiam que mentiam, acreditavam que era algo divino. Como os mentirosos acreditam, piamente, nas suas inverdades e nas suas teias conspiratórias. A renúncia é um atributo humano dos mais transcendentais.

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Ao longo da história, de todo o percurso histórico, nas contradições obnubiladas na busca pela VERDADE, a renuncia foi o canal da posteridade, a claridade que nos permitiu ver o desnudar das ações e quiçá intenções. A renuncia foi a marca e o sinal de que a vida falava e pulsava naqueles que fizeram e deixaram o fogo arder, mas de uma forma diferente. Valendo-se de outros princípios e formas.
Podemos pensar nos cristãos sendo conduzidos à arena para ser devorados pelos leões. Podemos voltar mais no tempo e ver Jesus se deixando crucificar, ou Sócrates tomando cicuta. Havia neles outra porta de acesso, dado por Aletheia que era a transcendência. Estavam convictos, cientes, de que há uma porta, provavelmente estreita, similar aos portais da cidade por onde os camelos tinham que se despojar de todas mercadorias dos donos para passar, rastejando, para outro lado. Nesse aspecto, a verdade, parece existir e permanecer para além do individuo. A verdade mantem-se e um dia ela liberta, esclarece, clareia.
Pena que é um saco, aguardar esse momento. 

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Por exemplo: Judas o Iscariotes acreditou que no seu beijo de traidor instauraria uma revolta, já que Jesus não aceitaria a morte sem luta.

Pedro, a pedra angular acreditou que no seu ato de cortar as orelhas do centurião, estaria defendendo seu mestre. Ambos, tinham noção do tempo histórico. Acreditavam e queriam fazer história naquele momento, naquele local. Não tinham a menor noção do não tempo, ou do tempo divino, ou da transcendência dos atos heroicos da renuncia. Mas, quem a não ser os sábios possuem esse entendimento?
Sempre queremos e desejamos a ação imediata, intempestiva, com o desfecho sonhado e desejado. Sempre acreditamos que estamos de posse da verdade e sendo assim, precisamos calar, extinguir, aniquilar quem diz o oposto do que falamos.

Penso em Giordano Bruno que morre por suas convicções e penso também em Galileu que de forma, relativamente, sossegada abjura de suas convicções e aguarda a posteridade para comprová-las. Permanece vivo sem com isso ter se martirizado. 

Renuncia a certeza que tinha, convicto de que o tempo histórico lhe faria justiça, mas tendo ciência que não valia a própria vida, tampouco a dos adversários que estavam pios e certos que matar era a melhor medida. A história mostra que os canalhas nunca retrocedem depois que chegam ao poder. Fazem de tudo. De tudo.


É assim, que tentamos compreender o nosso lado, nosso posicionamento, acreditando piamente em nossa certeza; certeza que pretendo refletir de onde vem, como sabemos que estamos certos? Como sabemos que a verdade nos deixou captura-la?

Quer me parecer que algumas vezes é pelo tempo, pelo processo histórico imanente. Quer me parecer que outras vezes é pelo transcendente, por aquilo que escapa ao sangue coagulado do tempo e só se abre quando esse sangue seca, evapora, fluidifica. Vira éter, memoria, imaginário. Interface subjetiva do ser fora do tempo, do ser no não tempo.

Ok, é uma falácia poética para eu sair da história enquanto constructo material, factual e adentrar na história enquanto impregnação imaginária, seja desta ou de outra localidade, seja deste ou de quaisquer outro tempo. Um retorno à clareira, a luminosidade que a História sempre precisa retornar e ser colocada. Faz-se má história enquanto as árvores da floresta estão em pé, as nevoas, ou as bombas de efeito moral ainda não volatizaram no ar. A História precisa de um respiro, da construção do seu espaço (a clareira) para que possa ser analisada.

Perceba que ela é feita em qualquer lugar, por todos, a qualquer tempo. No entanto, sua análise, sua compreensão requer a construção coletiva, individual de se abrir um espaço em meio, envolta desse tempo histórico e analisar, compreender, narrar, descrever, interpretar. Esse cuidado é de fundamental importância.

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Se Sócrates foge como desejou Críton não estaríamos falando dele. Se Jesus desce da cruz como queriam seus apóstolos e mostra sua força, não estaríamos falando dele, pelo menos não da mesma forma. 

Os dois apostaram na transcendência que talvez, somente os dois conhecessem e confiavam. E, confiando nos dois,  em seus exemplos e ensinamentos, quer nos parecer, que independente do tempo, do espaço, do lugar, o amor, a tolerância, o respeito, a dignidade à pessoa humana são características que nos aproxima de quem está mais próximo do fogo da Aletheia. A truculência, o deboche, a violência é uma arma, historicamente, muito utilizada por aqueles que não têm parte ou nenhum dos atributos acima. Precisam da força para dobrar, exigir, fazerem-se respeitar, porque não consegue o respeito, a admiração, o carinho que algumas pessoas têm de graça.

Luis Inácio é um líder. Podem prendê-lo, ridicularizá-lo, escorraça-lo. Ninguém tira isso dele. É algo que não se consegue dar a Aécio, a Alkmin, a Bolsonaro. 

Dilminha, não é carismática, está longe disso, mas tem uma fibra moral, uma conduta ética, que causa espanto, assombro, admiração. 




É assustador e admirável ver a menina sentada no júri de exceção, depois de torturada se posicionando de cabeça erguida enquanto os canalhas escondiam os rostos, por que? Não faziam o que acreditavam? O que era certo? Não estavam diante e de posse da verdade? De onde vem a vergonha? Não é Temer um legitimo presidente, porque teme as vaias?

Escrevi tudo isso e não disse nada que de fato desejo, quero e ficara para outro post- que é analisar este cenário numa perspectiva espiritual. Talvez, já ensejando que nem no espiritual conseguimos mais a exposição idealista platônica de ir além da figura e chegarmos na essência das coisas. Caso seja isso, o que de fato não acredito, creio que há mais equívocos de espíritos e de médiuns do que da espiritualidade. Pretendo, novamente pontuar, o risco, o perigo, de acreditar que espíritos estão em condições de analisar a História e o seu processo enquanto ela está em curso, enquanto ela ainda está sendo feita. Isso tem se mostrado para mim temerário. 

No entanto, não vamos nos opor a isso, como já ressaltamos, aqui nesse blog, achamos legitima a manifestação e o posicionamento das pessoas, inclusive médiuns, que são pessoas e não entidades como muitos gostariam. É um posicionamento que no melhor estilo de Voltaire defenderemos até a morte, porém, vamos colocar pontos de interrogação, questionamentos, como pede a boa Filosofia. Como exige os bons historiadores. É o que pretendemos escrever no próximo blog a legitimidade dos espíritos em analisar a História que ainda não fechou suas portas. Espero que consiga a claridade necessária e precisa para ver, observar e narrar com neutralidade. 


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segunda-feira, 15 de agosto de 2016

OTELO: amor, ciúme e tragédia.



Nós seres humanos somos complexos. Mesmo falando de uma mesma coisa a interpretamos e a sentimos de forma diferente (amor, ciúmes, por exemplo). E sentimos o mesmo por coisas, razões, motivos diferentes e diversos, causando tantas dores, aflições, desencontros. 

Sabe a moça auditiva que se relaciona com o cara material? Ou seja, enquanto ele espera que a moça mostre o seu amor lhe dando coisas, o tocando; ela espera que o cara lhe demonstre amor dizendo. E nenhum dois percebe que ela o toca dizendo eu te amo! Como gostaria de ouvir. E ele a ama lhe dando tudo que ela sonha. Como ele gostaria de ser tocado. 

Os dois se amam, mas constroem um vazio entorno de si mesmos cuja separação é um alívio e uma desilusão. E, eu sempre pergunto as Moiras e aos Poetas que assumem esse lugar de construtores de destinos: por que diabos vocês não colocam como casais pessoas que tem a mesma forma de amar?




E elas respondem com um sorriso nos lábios: colocamos, mas dessas vocês preferem ser amigas. 

Já os poetas, para mesma pergunta dizem sempre emburrados: “porque o romance é só um passatempo do destino. O cerne é aquilo que vivem sem ver. É nisso que acontece o sentido.”



Reza a lenda que "Mondi" havia dito que só pintaria os olhos de sua amada depois de ler a sua alma. Pouco depois de conseguir, ele morre e ela suicida. Por que somos trágicos? Não vou falar da sacanagem que Rodin submeteu Claudel também por ranço trágico e vou parar com os exemplos senão irei expor muitos amigos, a mim também. Mas, já não basta? Já não fizemos arte demais, amor demais? O que mais queremos? Por que não conseguimos amar fora do trágico?


Um amigo chegou para mim em tom de lamento e disse: “não sei o que é ciúme. Nem por objeto, nem por pessoa. Nunca senti ciúmes e isso é uma bosta para os relacionamentos.”

Uma outra amiga nos disse numa mesa de bar: “tenho ciúmes até dos meus amigos. Se é meu amigo, minha amiga, não pode ser mais amiga de ninguém, pode conhecer, mas ser amiga de outra pessoa é uma forma de traição.”

Eu vou escutando sempre atentamente e sempre querendo compreender mais e melhor. E, um dia numa conversa com Lua Nova, quando comecei a desenhar esse texto, ela me mostrou o ciúme. Um sentimento que não tinha, que não visitava, mas que abri um pequeno buraco de fechadura para visualizá-lo. Nossa!! Perturbador.

Ela me fez recordar cenas desmedidas, descontroladas de um passado distante. Cenas patológicas de quem num rompante, num repente, têm os sentidos apoderados por um misto de fúria, de excitação, de raiva, numa intensidade tamanha que o universo todo se reduz a um alvo, a um objetivo. E todos os sentimentos precisam ser ato e enquanto não são não há nada a ser feito, porque todo pensar, todo sentir existe para dar terminalidade a esse pensar-sentir que não finda e roda na cabeça—coração insuportavelmente.




O ciúme é mais perigoso que a morte. Recordo de cenas homéricas desta vida de ver carros de colegas depredados, e como segurar a mulher? Quem ousa tocá-la? Ela fica possuída de uma força, de um tormento, de uma dor, de uma raiva e também de uma culpa que devora, ataca, maltrata, mas sofre e dói. E como a pessoa se liberta disso?

Por que o que eu vi é que o ciumento dói. Na verdade, o ciumento é todo dor. Não há nele uma parte da alma suscetível ao toque. Todo ele é um ser dolorido, onde quer que você o toque, até mesmo por um sopro, pode lhe causar dor. O lado interno do ciúme é essa dor incessante, constante, permanente a martelar na mente do ciumento.
Mas, por que estou falando disso?



É que o ciúme são muitos. E, pessoas como o meu amigo que não sentem ciúmes desestabilizam os parceiros nas relações. Há algo na parceria que se não pede o ciúmes, exige o cuidado, a atenção. Há algo nas relações que se espera do outro um sentimento mínimo de importância, um aceno de mãos, um sorriso, um agrado, uma proteção. Há algo no ciúmes que roda junto com a nossa concepção trágica de amor. E acho que precisamos começar a escrever e a inventar novos roteiros, nem que para isso seja necessário a criação de novos atores e atrizes.

De modo geral, o não ciumento não compreende essa necessidade trágica das relações, essa forma mais doentia de sentir-se amado(a) e isso acaba provocando medidas cada vez mais ousadas e desesperadas da outra pessoa. As medidas passam por um flerte, por um ato falho, por uma troca de olhar, por uma troca de email, por um nudez pelo Messenger, até o ato em si. Tudo isso, toda essa escalada tem o intuito de despertar no outro atenção, cuidado, ciúmes, um sentimento de pertença. Um misero olhar de ciúmes.







Dá para entender isso?











Sair de si mesmo(a) para tentar chegar ao outro? Machucar a si mesma(o) para conseguir de alguma forma tocar o outro, tirar uma expressão do outro, nem que seja de fúria e de dor? Porque o ciúme depois que se espreme é só fúria e dor.

Esse universo tenso entre frustrações, expectativas internas, dores, relacionamentos e decepções externas me parece o segredo da tragédia, me parece o cerne da dramaturgia do maior de todos os dramaturgos da língua portuguesa, Nélson Rodrigues. Que, nessa obsessão em decifrar esse universo maldito dos sentimentos profanos, disse: 


Trair um amor é uma impossibilidade. Mesmo com outra mulher, é o ser amado que estamos possuindo”.

Muitas mulheres jamais compreendem que uma transa pode não ter significado nada. Que o parceiro transou e continua amando, talvez até mais e em alguns casos, o vazio interno do sujeito o levará a transar com muitas mulheres apenas porque ele não pode ter uma, ou tem e não consegue fazer com essa uma, o que lhe dá prazer fazendo com todas. De como essa obsessão pelo ente amado, por essa falta o coloca tragicamente longe e distante de quem ele ama. E, porque ele não ama de outra forma? Por que ela não consegue amar de outro jeito? Talvez por ser trágico.  




Deveria falar mais desse universo tenso, dessas observações que ele desenhou tão bem, mas prefiro ir com Otelo. Mas, um dia retornarei a essa frase.



II OTELO "Acautelai-vos senhor, do ciúme; é um monstro de olhos verdes, que zomba do alimento de que vive”



 Não se conheceu na dramaturgia ser mais ciumento do que Otelo. Mas, a grande questão é que Otelo é mais do que um personagem de ficção. Otelo é um lado nosso, guardado em alguns, a mostra em outros, mas um tipo que se encontra em cada paixão. Onde tem uma paixão há um Otelo em potencial. Foi mais ou menos isso que vi pelo buraco da fechadura.

Quando lemos, vemos a peça de Shakespeare somos conduzidos a ver Iago como um crápula, um ambicioso desvairado, um invejoso e rancoroso. Mas buscando uma interpretação mais psíquica, o que percebo agora é que Iago pode ser compreendido como uma voz interna do próprio Otelo. Iago não teria tanto poder não houvesse tamanho vazio, medo em Otelo.

E aqui é o curioso. Otelo é um vencedor. Otelo é um conquistador. Otelo é temido pela sua bravura, pela sua fúria, mas Otelo tem uma vulnerabilidade que foi explorada por um falso amigo. Uma fragilidade que o levou a ruína.


Como alguém iria supor que por trás de tanta bravura há uma profunda insegurança? Como acreditar que no mais fundo de si mesmo, Otelo desconfiava de tudo o que era, de tudo o que conquistou, especialmente da mulher que lhe ama. Como alguém saberia que quando Otelo se olhava no espelho ele não via o homem temido e respeitado que os outros viam e sim um saltimbanco qualquer, quase um vira-lata do reino? Quem iria supor que por trás de toda auto afirmação de Otelo havia uma inferioridade?

Esse é o trágico, ele também não sabia. Esse é o divertimento dos poetas: nos ensinar a ver de forma enviesada, invertida, aquilo que não veríamos. Rindo da estultice de Otelo ou se enervando com sua sandice, podemos olhar para nós e reconhecer num primeiro momento nosso ciúme.

No entanto, os poetas querem que descubramos, em nós, aquilo que existe em nossa alma, que se alimentada, é capaz de colocar tudo a perder; absolutamente tudo. E, não descobrimos isso vendo Otelo, apenas vivenciando essa personagem, essa tragédia. Mas, para que viver esse enredo até o fim? Por que não alteramos o final?  




Iago sem querer, meio que por acaso, acha uma vulnerabilidade entre aquele ser invencível e imbatível. A voz de Iago consegue alcançar espaços que nenhuma flecha, lança e espada conseguiria.

O assustador é que todos temos essa voz e basta um sopro, um cochicho para que elas comecem a gritar dentro da nossa cabeça de forma incessante- “ela te trai!!! Ele mente!! Está com outra!!!” Alguns vão controlar essa voz. Não darão crédito a elas. Já em outros(as) essas vozes vão se apoderar da mente, do corpo, dos atos, da vontade, dos desejos. Essas vozes irão enlouquecer a pessoa e quem está perto. Para os poetas e as Moiras, Iago é um fantasma que ronda nossos destinos. Uma voz que grita as razões e os motivos de não confiarmos no fato que o outro nos ama. 

Yago foi esse sopro, essa voz externa que alimentou o fogo corrosivo e putrefato que Otelo já tinha. Mas, de onde vem essa energia? Pelo menos no caso da relação entre Otelo e Desdemona? De onde vem a energia do ciúme? 


Se de alguma forma falamos da energia do ciúme, como é a energia do ciumento?

O ciúme é uma energia que ronda as relações, paira no ar. Já o ciumento é aquele que incorpora a energia do ciúme. Ele(a), os dois, dão a ela contornos, formas, relações que temperam, apimentam, azedam, borram de sangue várias vidas. É essa relação do ciumento e da vítima do ciúme que tocaremos abaixo, porque esse é o trágico. Um circulo vicioso, viciante, que ao ficar doentio coloca tudo a perder, inclusive a Si mesmo. 



III- DENTRO DO TRÁGICO

Da mesma forma que não se viu ser mais ciumento que Otelo, também não se viu alguém tão fácil de ser manipulado. Talvez pelo ciúme ser o mais veemente dos instintos, ele favoreça tanto a manipulação por um terceiro que capta esse medo, essa angústia, essa paranoia de ser preterido, de ser trocado, de ser esquecido; ser traído.


Em verdade, ciúme, medo de abandono, o pavor de ser traído, trocado, zombado, passado para trás, não se desassociam. O ciúme é tão doentio e tão feio, porque ele na verdade são muitos instintos e sensações juntas. A maioria delas tão primárias, tão irascíveis que dominam os seres, apoderam deles, os torna um bicho, uma fera. O ciumento está aquém da razão. Está um passo fora da humanidade na medida em que caminha para violência e não consegue desenhar nenhuma possibilidade fora dela. O ciumento é toda barbárie em si mesmo. Ele trás toda a horda em si. Toda vontade de acabar com o que sente, extinguindo o outro. Todo desejo de controle, de posse, de domínio.

O ciumento deseja um desejo que o transcende e a falta do mesmo o alija, o deixa tão vazio, que o outro não é alteridade, é parte dele amputada, mutilada. O ciúme envenena a alma.




No seu nível primário o ciúme atrela-se a posse, a propriedade, consequentemente ao apego. O outro é tido como uma extensão dele, e a aproximação, a tentativa de recusa desse outro lhe dói na alma. Quando o ser amado diz não, para o ciumento é similar a parte do corpo dele que não mais lhe obedece. 




Imagina sua mão com vida própria? Como conviver com isso? Como tolerar isso?

Assim, entramos num segundo nível dessa energia, a perda, o abandono. O ciumento, a ciumenta tem medo da perda, desse vazio insuportável do abandono. Afinal, como que o outro, ainda que por amor, aceita renunciar-se? Uma coisa é a sua mão direita que faz parte do seu corpo, outra é a mão direita de outra pessoa que pertence a outro corpo. O ciumento num processo de identificação passa a acreditar que não apenas a mão do outro(a) é dele, como também os desejos, as vontades, os sonhos dessa mão e sobre essa mão. E, sim, o ciumento tenta se apoderar de tudo, porque ele deseja um controle. 

O terceiro nível, como não poderia deixar de ser diferente é a conjunção de ambos: a necessidade de controle, que configura a neura que sai do espaço mental, das vozes internas que assombram os medos internos para ganhar ações desmedidas, descabidas, incontroláveis no mundo externo.

Falo da transformação do outro em mero objeto. O outro, a outra é transformada em uma parte decorativa dessas vozes, desses fantasmas que não sabem lidar com a rejeição, com o abandono, com o vazio. O outro some, desaparece já que está incorporado a ele. Não há outro e sim parte dele que teima em ter vida própria, existência própria, até que não tenha. Até que não vendo possibilidade nenhuma de incorporar esse ser dentro de si mesmo, a não ser provocando a submissão absoluta, a negação absoluta do si mesmo (a), que existe no outro; mata-se.

Em resumo, o ciumento sofre e faz sofrer, porque transforma o outro em sua propriedade, em uma projeção dos seus espaços mentais nos quais nenhum outro(a) deveria entrar e ocupar. 

Nenhum ser foi criado para ter sua existência tragada, absorvida e devorada pelo ser de outra pessoa.

Sei que isso é o que buscam os poetas: criação de seres que existem apenas em suas cabeças, com o intuito de fazer o que desejam e esperam. Mas, a vida não é uma ficção. Ou é?




Otelo envenenado pela própria mente era levado por Yago a cometer os atos mais impensados, a ter as piores inclinações. Ele não enxergava mais Desdemona, ele não conseguia vê-la. Diante dele estava a imagem da dor, do seu tormento. Mas, a questão que me ocorre é: por que continuamos a escrever, atuar, criar esse roteiro? Por que acreditamos que o amor é drama e tragédia?

ATO FINAL

Todos nós temos casos, ouvimos casos que sabemos como acaba. Não há uma virgula nova, não há um sorriso novo, mas afinal, por que continuamos acreditando que o amor é a maior tragédia que possa nos acometer? Pode-se escolher amar? Teríamos em nós essa capacidade de amar somente a quem nos ama? Algo como um botão de liga e desliga? É o amor de fato um destino? Podemos não amar? Rir do Cupido e das suas flechadas? 

Talvez não. Nem deveríamos cogitar fugir dessas perguntas, numa tentativa inaudita de se fugir da nossa predestinação: nascemos para amar. Cônscios desse nascimento, deveríamos receber o amor e acolhe-lo como o grande presente e o grande sentido. Acolher o amor como um ser que nos leva a transcender a nós mesmos e por vezes o além de nós. 




O que precisamos é iniciar um movimento interno no qual o amor guarde o lugar de algo que nos remeta à Felicidade, nos remeta mais ao autoconhecimento do que a posse do outro, mais a satisfação intersubjetiva do que ao vazio da perda. 

Penso que está na hora de criarmos outros roteiros nos quais os amores são possíveis sem drama, sem tragédia. Roteiros nos quais cada dois compreenda sua forma de dizer eu te amo e esteja disposto(a) a falar outras tantas. E no roçar de línguas, criem novas linguagens, que falam de novos amores, de novos heróis, de novas musas e heroínas. Amores possíveis como um beijo na boca.