quinta-feira, 24 de agosto de 2017

DEUS TE AMA MESMO ASSIM.


Esse post começa falando das reuniões mensais que realizamos, essa especificamente tratou sobre o tema do ACOLHIMENTO. A partir de um vídeo colocado por uma participante em nosso grupo de wats fizemos várias colocações até que outra participante nos pergunta se estamos, se estavámos preparados para acolhermos irmãos de outras pátrias. A interação acabou sendo a inspiração para nossa reunião, que começo falando dela e só retorno ao final, então aqueles que gostam de uma leitura mais direta leiam a introdução e vão já para a parte final. 

Os que saboreiam digressões, vão beliscar sabores acolhedores, numa tentativa que fiz em mostrar tipos ideais de dois motes de energia, uma tida como sagrada, outra como profana, mas que busco fomentar que elas são integradas, precisamos integrá-las em nós. Não sei se consigo, de todo modo, ao final comento sobre a reunião que foi o motivo de escrever todo o resto. Falar e saborear como os artistas em harmonia com os mentores espirituais nos levaram a acolher o acolhimento na gente. Boa leitura a todos e as reflexões que suscitarem e quiserem compartilhar será uma honra ler. 

Abraços iniciais.  

Em nossas reuniões mensais, basicamente, trabalhamos com dois motes de energia:

uma que eu vou reputar sacerdotal, que é mais concentrada, silenciosa, profunda, sacra. 

outra mais leve, solta, branda, descompromissada, nem por isso menos sagrada, menos profunda, menos.

Essas duas formas de energia nos acompanham em muitas atividades das nossas vidas e a nossa forma de se aproximar e lidar com elas e suas variações produzem os mais diversos desníveis em nosso existir e proceder, tanto externa quanto internamente, começamos a demarcar que uma é sagrada e a outra é profana. Os desdobramentos disso acabam por nos aproximar e nos distanciar da vida, do outro, da gente, das coisas, do mundo.



Certa vez eu li um depoimento, bem no estilo de uma crônica do Irmão X, falando de um grupo de espiritas que estavam conversando antes da reunião. Nesse momento, eles estavam rindo, se divertindo, alegres, felizes; minutos depois chega o dirigente, pontua algumas questões e dá inicio a reunião. Quando a reunião termina todos voltam para casa tristes, pesarosos, quase que infelizes. Eles chegaram alegres e estavam voltando tristes, cabisbaixos. E o autor nos pergunta algo como: qual o sentido disso? Por que a energia de alegria, de riso, de felicidade não pode fazer parte dessa energia religiosa, espiritual? Por que a gente tende a ver o espiritual como esse algo que a gente procura, vivencia, mergulha apenas nos momentos de tristeza, de angustia? Por que é quase um crime a risada dentro de um ambiente religioso?

As respostas são muitas, milhares, mas o que tenho observado é que ela nos divide, nos aparta, nos separa. Fazendo uma analogia com a luz elétrica é como se a gente dissesse conceitualmente assim: existe uma energia positiva e uma energia negativa. Até aqui ok, porém estendemos essa reflexão e começamos a estipular que existe uma energia boa e uma energia má e que a tal energia positiva não pode ligar o ar condicionado, ou o liquidificador, porque é sujo ou não trás felicidade. Tal apresentação já seria um absurdo, porém a gente não para e continua estabelecendo relações mentais, comportamentais ainda mais sofismáticas, tais como: que a energia elétrica não pode ser usada para tomarmos leite, porque é pecado. 

Nós configuramos mundos, cenários, construções nas quais o uso dessa energia é restrito e só pode funcionar em um determinado ambiente, completamente adaptado para aquilo: templos religiosos. E, a partir disso desenvolvemos a lógica de que a energia flui melhor se você der uma oferta maior, ou riscar os pontos com pemba especial. Uma crença de que no final das contas está nos dizendo que a energia elétrica, ou qualquer outra que exista só funciona se a entregarmos para um eletricista. A gente, pela gente mesmo não tem condição de usar a energia que é nossa, de acender nossa própria luz. 

Se trouxermos essa analogia para o mundo físico, a de que somente eletricistas formados podem ligar nossa própria luz, nosso próprio padrão, diríamos tratar de um absurdo e questionaríamos essa lógica. Olhando por uma explicação mais material muitos conseguem vislumbrar a ilogicidade disso. No entanto, quando a gente retira o conceito de energia elétrica e coloca energia ‘espiritual’ nós achamos a coisa mais natural do mundo acreditar que o sexo é uma energia de pecado, que o dinheiro é uma energia que não trás felicidade, que a bebida é do diabo, que a dança é de satanás, que as restrições que nos colocamos conscientemente ou não podem de alguma forma ou de alguma maneira potencializar o uso da energia.

Fazemos isso sem percebermos que a única coisa que pode potencializar a energia é a CONSCIÊNCIA que depositamos nessas práticas, as crenças que inoculamos nesses conceitos. E, os observando, acredito que a sua matriz mais profunda vem dessa percepção real e verdadeira de sentir-se impuro, despreparado para receber essa força em si mesmo. Isso parece que vem do treino culturalmente sistemático e repetitivo, além da inculcação que recebemos de não sermos dignos de honrar e receber essa energia, que somente os seres especiais possuem essa energia e podem manipulá-la. 


O que me faz lembrar uma fala de Oran (mentor espiritual) que nos ensinava a dificuldade de suportar o olhar de Krishna. Contava o amigo que todos quando se despedem do corpo físico são recebidos, acolhidos por Krishna, mas o seu olhar amoroso é tão intenso e tão doce que nós não o suportamos. Estar diante de alguém que não te recrimina, não te cobra, não te pede, apenas te AMA INCONDICIONALMENTE, gera e produz todas as formas de inferno que conhecemos, tudo devido a vergonha. A vergonha de não ter amado, servido a Krishna, servido ao outro.

O que reputo fantástico nessa história é a clareza de que não há nenhum ente transcendente, transcendental, metafísico te vigiando e te cobrando. Não há nenhum ser dessa envergadura te condenando, em absoluto. Eles nos amam. Independente de a gente ser santo, ser Aécio, ser Samarcos, nos ama igual. Acolhe-nos e nos recebe igual. Abraça-nos e nos acalenta igual; porém a nossa consciência não dá conta. Como eu posso ser amado desse jeito e não amar também? Aí a gente renasce para honrar esse ser. 

O contraponto é que nós criamos situações, baseadas numa compreensão errônea do cristianismo e da vida de Jesus, que sofrendo, eu agrado mais a esse ser. Então a gente pede para nascer e sofrer, sofrer muito, sofrer demais, sofrer pra caralho, como se nossa vida fosse uma tragédia ou a paixão mesmo de Cristo. Acreditamos que sofrendo assim, seremos mais amado por esse ser. Não seremos. Ele apenas nos ama. Ele não pode não amar. Ele ama. Rico, pobre, milionário, trilionário, miserável, preto, branco, albino, sem cor, vermelho, amarelo, hetero, homo, bi, pansexual. Ele ama! Nada pode aumentar o amor dele por você, nada pode diminuir o amor dele por você. Nosso amor pode aumentar a rede amorosa, nossa indiferença pode impossibilitar que outros conheçam em vida esse amor, mas que todos são amados incondicionalmente, não tenho dúvidas e um dia conto essa experiência maluca.



O fato é que a gente sempre acredita que para ser amado precisamos de algo, necessitamos fazer alguma coisa. Em nossa concepção não se ama de graça. Quem ama, quem sorri, está querendo alguma coisa em troca. Sempre ficamos armados, desconfiados diante do amor, afinal: por que eu? Quando a gente aceita começamos a encanar noutra onda: eu não mereço. A grande dificuldade existencial é aceitarmos que somos amados. Aceitar isso muda tudo, o universo todo e quando a gente medita, ou ora, ou vibra, ou reza, quando a gente tem uma experiência transpessoal de se elevar e aproximar-se de outras esferas, estados consciências, essa sensação, percepção de incompletude, impureza amplia. Por um lado deseja-se mais dessa percepção, por outro, se quer fugir dela, se quer lutar para ficar ‘limpo, puro’ para receber essa energia. Estou falando daqueles desdobramentos da energia ‘sagrada’ em nossa esfera psíquica.



Dessa percepção a gente cria as mais diversas loucuras para termos a sensação de que fazendo as coisas certas, de maneira séria, sem riso, sem alegria, sem contato com o mundo, eu fico limpo e me mantenho puro. Os brâmanes não cruzam com a sombra do pária, o esotérico não escuta música profana, o crente não frequenta lugares impróprios, o kardecista não vai ao motel, o carismático não senta no bar. Cada um de nós, cada religião estabelece esse seu religare e passamos a atribuir valor a amuletos, sistemas, rituais, crenças, como se a energia estivesse lá, como se esse amor que recebemos cessasse porque você se embriagou, ou fez sexo fora do casamento, ou deixou de dar o dizimo, ou... 

É importante destacar que esse ser não para de nos amar, não para de amar, ele não pode não amar. Ao mesmo tempo é preciso destacar que independente da forma que você se sente mais próximo do Divino, de como o sagrado opera e age em você, essa é a SUA forma de acolher o amor divino sem se quebrar, se dilacerar. Não significa, não implica que o ser divino só te amara se você nunca mais entrar no motel, ou parar de ir aos bares, ou nunca mais dançar. Nós não temos controle sobre esse amor que nos ama, podemos apenas ‘controlar’ esse amor que recebemos. Não o que ele nos doa.

Esse é um movimento difícil de lidarmos, primeiro porque a gente quer aceitação. Segundo, porque a aceitação humana é diferente da divina. A humana é condicionada. A divina é incondicional. Tão absurdamente incondicional que não conseguimos compreender, porque a pensamos nos moldes humanos. Se você fizer sexo fora do seu relacionamento seu parceirx pode te deixar. Se você não for ao bar com o seu amigo, talvez ele possa se magoar. Se você não estiver lá quando seu filho necessitar, ele pode traumatizar. O amor humano é condicional, condicionado, tem exigências, regras, contrato, hora marcada, período determinado. Dizem alguns que tem até preço. O divino não tem, elx nos ama. E, como nos ensinou magnificamente Martin Luther King: "amar é diferente de gostar!" Jesus ensinou a amar nossos inimigos, não a gostar. Não tem como gostar do racista que barbariza sua mulher, brutaliza seu filho, coloca o cachorro para te morder. Você não pode gostar dele, mas pode amá-lo. É o que nos ensina o pastor norte americano. Talvez o Criador não goste do que estamos fazendo, mas ele nos ama, independente do que estamos realizando.  

Então como fazer? Como lidar com o amor condicional e o incondicional? Os dois são mesmo tão diferentes? Estamos mesmo fadados a essa oposição de ficarmos cindidos entre um ou outro amor?

Acredito que não, mas por querermos aceitação, por não sabermos que somos amados incondicionalmente a gente barganha. A gente tenta controlar o amor do outro afirmando que ele deve ser só para nós. Temos tanto temor que acreditamos que se a pessoa para quem dispensamos amor, ama outra pessoa igual ou mais, ela está nos diminuindo. É assim que pensa o ciumento, o possessivo, seja ele amigo, marido, esposa, filho, irmão, nora. 
Nós cindimos a energia e nessa cisão mora e nasce as dores, os conflitos, os sofrimentos. Nasce as duas formas de relações existenciais que observamos, idealmente, em várias pessoas. 


De um lado há a nossa tentativa de aproximar desse amor divino e consequentemente se afastar do mundo e em certa medida das demais pessoas. De outro o distanciar desse amor divino, porque se deseja o amor do outro, do mundo. Nós dois há sofrência, há carência, há dor. No primeiro, porque essa tentativa de purificação, sacralização, de esterilização da vida é chato. A gente não percebe a chatura, porque em nome do divino a gente acomoda e compreende as coisas mais bizarras. Mas, imaginem o cara que anda com lenço umedecido, álcool em gel, mascara bucal, corpo todo coberto, só entra em casa descalço e pelado para que as impurezas da rua não adentrem o recinto; é chato. Esse cara sofre, porque a relação dele com o divino o priva do contato com o outro, com o mundo. Ele no seu asceticismo higiênico e purificador estabelece uma relação excelsa consigo mesmo, privando-se até das partes mais 'impuras', dele. Em geral, os 'dadivosos' não tem sombras e consequentemente uma dificuldade em compreender as mazelas do outro. Mesmo quando eles fazem ações caridosas, eles tentam ser caridosos e bondosos, eles fazem um esforço divino para serem bons. Mesmo quando tentam com toda sinceridade, aqueles que recebem algo deles visualiza o abismo que os separa e os distingue. Eles estão lá distribuindo o sopão, eles estão lá orando junto ao enfermo, eles estão lá levando a palavra para o presidiário, mas, quando olhamos o olhar do outro refletindo a face deles, ou o inverso, o que enxergamos é a distância. Enxergamos o pensamento silencioso dizendo: “eu não sou vocês! Eu tenho pureza e vocês não!” Mesmo eles estando lá, batendo na porta das mansões, ele não consegue nem um biscoito como doação. Mesmo ele estando diante de solitários que gostariam que um cachorro latisse no quarto, os enfermos preferem a solidão. Eles ficam bem quando estão sozinhos, com eles mesmos, entre eles, falando do altíssimo e dando glórias e aleluia.

O outro é o oposto, o inverso. Ele lambe o escarro do chão, ele deita em cima do vomito, ele lambe a boca do cachorro, ele abraça o outro com pus e come a miséria do mundo. Ele as vezes está na prisão, se identifica tanto com a desgraça que para no presidio e liberta a alma de muitas pessoas. Ele mesmo não consegue sair, se livrar, mas ele faz isso com as pessoas que o cerca. Na campanha do quilo, ele pede para um mendigo uma bolacha e o mesmo lhe dá. Nos hospitais, ele promove a cura da ala que ele se encontra. Ele é bom sem esforço. Ele não sabe, não acredita, porque ele não reza, ele não ora, ele não vibra, ele não vai a nenhum templo religioso, ele não entende nada do que a gente fala, escreve, ele apenas vive, abraça, acolhe. A todos, menos a si mesmo. Na crença dele, ele não tem salvação. Ele não se aproxima do divino por se achar sujo. Ele não entra no que se demarcou como ambiente sagrado: templos, igrejas. Ele é órfão desse contato, dessa relação, porque ele se proíbe de senti-la, de expressá-la. E é preciso vivenciarmos o meio termo e de certa maneira é o que temos buscado em nossos encontros e agora falo dele. 

Um ser que ilustra bem esse tipo de personagem é aquele centurião que ouvirá falar de Jesus. Ele se aproxima então do mestre com muita humildade, ele era um centurião, um cidadão romano, poderia se achar, mas ele é humilde independente do posto que ele ocupa. E, ao aproximar de Jesus, ele pede a cura de um ente querido, porém ele não queria incomodar. Ele não se achava digno de incomodar um ser como aquele então ele explica que mesmo sendo oficial quando recebe ordens ele as cumpre e quando dá ordens aos seus subordinados, eles também as cumpre. Sendo assim, bastaria Jesus dar a ordem e o seu escravo seria curado. 
Esse moço tinha fé, acreditava no poder de Jesus, mas não se sentia digno. 


Como ele há vários e para cada um deles há os apóstolos que não entenderam nada e os escribas e fariseus que tem certeza que são puros e representantes de Deus na Terra. Poderia falar da mulher que toca a túnica do mestre em meio a multidão e sente-se curada, mas é desnecessário. Creio ter ficado claro o que desejamos dizer.   



Nossos encontros tem sido marcado por esses dois movimentos. Um sacerdotal que nos leva em direção ao silêncio, a reflexão, a essa sacralidade da energia, a essa densidade para compreender e localizar o tamanho, a beleza e amorosidade desses seres, dessa energia, do Criador. E outra que depois que chegamos nesse ponto, nesse lugar, busca tirar o peso, subverter a experiência, aproximá-la do cotidiano; ‘profaná-la’, no intuito de ninguém ficar se achando, ficar podendo. No intuito de integrarmos essas polaridades em nós. 

Esclarecendo que o termo sagrado e profano é mesmo para situar conceitualmente essa experiência que na cosmovisão, tanto dos sacerdotes, quanto dos artistas é a mesma energia. Porém estes buscam nos dar consciência desse movimento apelando para o lado estético, fugindo, escapando, das concepções morais que damos. Eles tentam nos movimentar, ampliando a nossa reflexão sem que a gente se condene, se julgue, se inferiorize, se perca nessa moralidade rasteira, superficial, de quem não entrou e não compreendeu a essência da coisa.

A santidade não é uma briga contra algo, ainda que se escolha um ADVERSÁRIO, termo aramaico para Satanás. Escolher um adversário é um processo psíquico de aglutinar forças, concentrar energia, visualizar seus demônios (diabulus, disputas) internos. Assim, não é que as mulheres são a tentação e a perdição e você deve lutar contra elas. Ou que o vinho é a ilusão e o desencanto e você deve lutar contra ele. Nessa luta condenar todas as mulheres e todos os que bebem como sendo malditos e amaldiçoados. É que no seu processo interno de dor, de angustia, de fuga, mas também de conexão, elaboração com o melhor de você mesmo lhe ficou claro que as mulheres, ou o vinho, ou os dois podem te levar a perdição de si mesmo. A meditação te mostrou que o símbolo da carne (mulheres), ou o excesso da vida (vinho) te embriagam, te distrai, lhe remetem ao desassossego. Assim, quando se busca e se acolhe o celibato, o voto de pobreza, ou o voto de castidade, não está se desejando, menos ainda condenando, a união carnal, o casamento, o sexo, a riqueza, o caminho que outros escolheram trilhar, mas sim deixando claro para si mesmo e isso é PARA SI MESMO(A), a forma, cor, sobriedade a sua pedra de tropeço. A restrição é para sua alma naquele momento e não para todos os seres para sempre.


Os padres do deserto tinham isso mais claro. Porém, o uso indiscriminado das práticas restritas e místicas deles possibilitou os delírios, as alucinações, as estultícies conceituais de quem não entendeu nada e universalizou, santificou processos que feitos fora de um contexto é o afastamento tanto do humano, quanto do divino. O que observamos por séculos foram pessoas apartadas tanto do seu divino, quanto do seu humano. Elas não são e não eram santas, puras, castas. Elas eram e são pessoas que imitam passos, seguem caminhos nas pegadas de outros e o desfecho disso é a ruína espiritual, é a mortificação divina, é a ingratidão à vida.

Essa ruptura criada entre o humano e o divino foi o ardil mais poderoso que o Adversário fez para nos tirar do caminho divino. Caminho divino que no melhor exemplo de Jesus se dá e se faz também na Terra, no corpo, no beijo, no barro, na alegria, na comunhão, na celebração. Isso não se dá como quiseram muitos na crucificação. Não é ela a representação de Jesus, o símbolo da cristandade. A analogia da cruz é a integração do tempo e do espaço, do horizonte e do profundo, do corpo e do espirito, do humano e do divino. A cruz não é dor, ou sofrimento. A cruz é vida e viver é integrar o viver. Integrá-lo na beleza, tornando a vida bela, leve, digna de ser vivida. O símbolo da cruz é a medida do humano que aceitou o amor e retribuiu esse amar aos outros. Nisso não há uma universalidade a ser seguida, pelo contrário, é um caminho, uma vereda linda, frondosa, mas que deve ser agradável ao seus passos. Trilhar o caminho de alguém é diferente de calçar o mesmos sapatos.



Mas, porque escrevo tudo isso? Para falar do acolhimento e da nossa reunião. Nós fomos conduzidos a esse espaço de silêncio pelos sacerdotes, mas saímos dele por intermédio dos artistas que nos pediram para escolhermos um de três movimentos e retratá-lo como é em nós essa energia do acolhimento. 

Deveríamos escolher por gesto; por ilustração; por conceito.

Três das participantes retrataram em gesto. Uma em ilustração, embora não a tenha desenhado. Outra em conceito. 

O que nos interessava daquilo tudo era o entendimento primário de como a gente cria, desloca, movimenta, dá sentido a essa energia que se diz sem falar. Essa energia que nos atinge, nos chega, nos ilumina e em desdobramento, como é que depois de ter captado, sentido, apreendido a energia a gente a expressa para nós, para o outro, para o mundo? 

E é bonito ver como que o gesto, a ilustração já dizem tudo, mas a gente 'precisa' das palavras. Não as palavras em si e sim de uma elaboração que nos afasta desse primário. A gente acredita mesmo que é essencial ser aceito pelo outro. Mas, esse outro não está nos pedindo, ou nos cobrando uma elaboração, porém a imagem que temos e fazemos dele nos exige isso. E, nessa exigência a gente muda de tom, por vezes perde-se a si mesma. 

Mais claramente, quando, imediatamente após a recepção desse e outros exercícios a buscadora simplesmente gesticula, ou desenha, ou escreve, ela está muito perto dela mesma, da sua maneira de se expressar, de se movimentar, de se conduzir. 

Quando, após esse movimento, ela fala, estabelece-se um processo de racionalização, no qual, essa expressividade primária, já não está mais lá. Ou melhor, elabora-se toda uma teoria, toda uma existência apenas para rebuscar um traço, um gesto, uma ideia. 'Rebusca-se o existir para de certa maneira mostrar que a gente vale apena ser amado. Uma aceitação que pode nos colocar em direção ao outro, a uma acolhida do outro, mas que tenho observado em clínica que desaloja a pessoa de si mesma. Na ânsia de agradar o outro, acaba-se se desagradando ao ponto de se adoecer. 

E com isso eu finalizo rememorando a presença do poeta português que desvela o que fizemos. Ele nos mostra que os sacerdotes imbuídos que são de muitos atributos (amor, felicidade, sensibilidade, acolhimento, outros) nos dão meios de entrar nessa energia. Na esteticidade deles, esses atributos são SERES. Eles existem em estado e princípio concreto e alguns seres os portam, os distribuem, os fomentam. 

Assim, ele nos pede para visualizarmos a palavra ACOLHIMENTO no meio da sala. E nos pede para entrarmos dentro da Palavra/Ser/Atributo e depois quando saímos dela trazemos nós mesmos e o que é esse ser para nós.

O exercício foi antes de tudo uma proposta de nos acolher e ao sermos acolhidos, compreendermos que esse mesmo ser, esse mesmo atributo pode ser e é compreendido de forma diferente pelo outro.

Eles nos conduziram à percepção de como que acolhemos? Como que expressemos essa acolhida e acolhemos os outros? Cada uma das buscadoras relatou seu processo de forma linda e registro o meu, pois na hora não o relatei. 

Não fiz todo o processo, mas uma rosa desabrochou perante meu corpo. Seu caule saia da altura dos testículos e a flor mantinha-se semi-aberta na altura da minha boca, similar a um microfone.

Como eu expressaria essa energia?

Eu a expressei falando, dizendo. Como que deixando claro que o meu acolher, pelo menos naquele momento, passa pela fala. Uma fala que é um processo, um cultivar, um desabrochar, algo orgânico.

Mas, perceba que todo esse explicar é um desnível desse fazer. Dessa relação correlata e simultânea entre ser-a-colher. É isso que os artistas tentam nos dar, capturar esse instante no qual não está ‘pensando’, elaborando. Sermos capazes de lidarmos com esse movimento criativo, intuitivo, espontâneo no qual o sentir-expressar-ser é o sentido. E seguindo esse movimento, eles nos ensinaram a entrar nesses atributos e trazê-los à vida, a existência, ao cotidiano. 

Estavam querendo mostrar que o uso disso é prático e não conceitual. Que essa energia divina precisa ser usada fisicamente e ao usá-la a tornamos divina numa relação intrínseca com o mundo material. Está imbricando dentro do que eles nos ensinam ser co-criação: a capacidade de embelezar a vida. 

Porém, nós não nos contentamos com isso. Acreditamos que arte é uma atividade fora do mundo da vida, que os mentores fugiram do mundo para ser quem são e eles tentam nos mostrar que não. Tentam nos mostrar que o que e quem eles são, eles o são em relação com a vida, a existência material que tiveram. 

Voltando ao exercício como espelho, a gente se agarra a imagem, ao desenho, a definição de outra pessoa e perdemos a nossa. Seguimos caminhos que nos perdem e nessa falta de rumo perdemos a única coisa fundamental a ser portada: nós mesmos, o SI MESMO. 



Por medo de não sermos amados nos falseamos e é pelo amor e a coragem de ser quem somos que podemos ser felizes. Parece que não importa o que façamos esse é o único caminho de volta. Ninguém chega sem si mesmo. Ninguém encontra sem si mesmo. Ninguém ama e sente-se verdadeiro amado sem si mesmo. 

E as religiões roubaram isso de nós. Precisamos recuperar com amor, ternura, coragem. 





Abraços finas. 


terça-feira, 25 de julho de 2017

CARTA COMO SOPRO INSPIRATIVO.

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No final de mês de maio surgiram para mim duas pessoas atravessando a dificuldade de compreender o desencarne de um ente querido. Uma havia perdido a filha a mais de vinte anos e outra havia perdido a mãe a menos tempo. As ouvi, conversei e essas conversas deixam claro que não há nada mais importante na mediunidade do que servir de ponte entre essas saudades.  


Tendemos a considerar mediunidade o contato estabelecido pelo médium (encarnado) com o plano dos desencarnados. Somater, irmão sideral, foi um dos primeiros a nos alertar para o estreitamento desse conceito e alargar as suas possibilidades e entendimento para toda e qualquer prática na qual nos colocamos como intermediário entre dois planos, dois seres, duas dimensões. Mediunidade assim ganha concepções menos estáticas e abstratas para se fazer no uso e no contato dos seres e entre os seres. O motorista que transporta seus passageiros, os educadores que deslocam mentalmente os seus estudantes, o faxineiro que limpa a sujeira de uma casa/cidade; a médica que promove a cura do paciente, a terapeuta que acolhe e recepciona a dor do seu partilhante. Mediunidade, intermediários entre eles e um outro, uma coisa, um estado, uma ideia, um principio. Um alargamento mental que miniminiza a mediunidade enquanto encontro semanal de uma hora e a expande para um fazer diário de no minimo 16 horas por dia.  


Um dos sentidos, talvez o sentido de ser sensitivo, médium, seja o de fazer ponte, estabelecer contatos e intercessões entre os planos. Pensando mediunicamente, receber notícias de um ente desencarnado, em outra dimensão afaga, alivia, emociona tal qual receber carta de um amigo distante. Nessa reunião que realizamos nosso intuito era proporcionar as pessoas uma escrita. Escrever uma carta para alguém. Os desdobramentos dessa atividade me levaram a pensar em muitas outras coisas, em moldes parecido a pergunta que Waldo Vieira fez ao se dedicar mais as projeções astrais do que às psicografias. A reflexão do médico questionador foi algo como: 'se as pessoas podem conversar com os espíritos conscientemente fora do corpo, porque fico emprestando o meu para receber cartas, transmitir abraços que elas poderiam estar recebendo diretamente?'

Na concepção dele, essa lógica alimentava um estado de coisas que ele não queria fazer parte. Considerou melhor ensinar uma técnica de saída do corpo que permitisse a qualquer um estreitar e conhecer o mundo espiritual por si mesmo. Esse pensamento crítico me veio depois do resultado, quando vi as pessoas lendo as suas cartas e nelas cada um dialogava com as dores do outro. Se não podemos chamar as cartas produzidas de psicografias podemos afirmar sem dúvida que foram cartas inspiradas que consolou cada uma daquelas pessoas que lá estavam, sem que eu e outros médiuns tivéssemos que transmitir o que os amigos espirituais ditavam. Pelo contrário, ao invés de um, ou dois médiuns psicografando tivemos seis pessoas sensíveis que se conectaram e nessa conexão consigo mesmas, captaram o outro, o ambiente. 




O que fizemos de diferente foi novamente caminhar nas pegadas da sensibilidade Consciencial, da estética existencial que os artistas nos apontaram. Apostamos na arte e no que os artistas chamam de INSPIRAÇÃO. 

Nietzsche filósofo alemão nos pergunta se havia alguém no século XIX que soubesse o que é inspiração? E a partir dessa linda pergunta escreve falando como é e o que era escrever para ele. 


Essa escrita como tive a oportunidade de expor, timidamente, no 2° Coloquio Internacional de Metafísica, rememora muito a psicografia. Mas, será a inspiração uma psicografia? Seriam os artistas médiuns? 

Eles dizem que sim e eles dizem que não. Dizem que sim ao afirmarem que o processo de inspiração é uma conexão, um acesso diferenciado as mais diversas localidades subjetivas, que cruzam, parametrizam com estados intersubjetivos e realidades objetivas do outro. Dizem que não, porque não há nenhum espírito soprando, dizendo o que deve ser feito e como fazer. É um estado de sensibilidade, uma consciência que se abre e é capaz de assimilar do seu jeito, no seu estilo, na sua essência o como é para ele. E nessa imersão, consegue-se dialogar, tocar outros universos, outras consciências, independente do tempo e do espaço. 

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O que realizamos foi proporcionar uma 'oficina' na qual esse outro entrava no universo da inspiração e de lá retirava, trazia, aquilo que tinha em abundância no seu balde de alma. Mas, quem tratou com mais naturalidade essa parte foi o poeta português que nos brindou com sua presença e sua inspiração. Falando em seu nome e dos artistas nos deu uma explicação e nos remeteu a uma prática muito suave do que nos levaram a fazer. Uma explicação mais clara de como seria a atividade/oficina a ser realizada. Vou chamar a Oficina de Sopro Inspirativo. 


Um processo de abertura para deixar a inspiração entrar e o hálito criativo sair produzindo uma interação, uma ponte, uma construção, um diálogo entre o eu e o mundo. Uma interação na qual o eu mergulha em si mesmo e retoma trazendo o que encontrou em suas paisagens internas. Nesse encontro, pedimos para cada uma fechar os olhos, respirar, sentir. Minutos depois com o estado vibracional mais elevado, interconectados e conectados aos seus tempos e espaços internos, lhes demos papel e lápis/caneta para escreverem, enviarem uma carta para... tal qual o sujeito esperançoso joga uma mensagem no mar dentro de uma garrafa, na confiança de que o infinito vai lhe dar o leitor correto, o destino certo.
Elas escreveram e depois do término da primeira buscadora, poucos segundos se passaram para o término da última. De uma maneira bem ritmada terminaram duas a duas. E iniciamos o processo de leitura.

Cada uma lia como se estivesse escrito para si e de si mesma. Liam sem saberem que o sentido oculto do exercício era perceber em qual nível, até em que ponto, conseguiram tocar o outro. 
Resultado de imagem para pessoa escrevendo cartaO estranhamento começa quando uma amiga diz clara e em bom tom: “escrevi pensando na sua dor” se dirigindo a outra amiga que perdera o segundo filho por morte matada. Após a leitura eu interrompo e esclareço que toda dinâmica do processo não era apenas a escrita para si mesma, o diálogo consigo. O sentido consistia na percepção e entendimento de como ao acessar seu próprio universo, o outro surge, desvela. Como que nosso discurso toca e chega ao outro.

Prosseguiram as leituras até que novamente na última carta, a leitura de L proporciona choro em C que não tem dúvidas em afirmar que a carta era para ela. Uma carta que falava para a dor de uma amiga que havia perdido um companheiro. Um choro bom é derramado e uma emoção visita a todos nós. O sopro da inspiração se harmoniza na mesma direção da psicografia. E aquela moça, medrosa e resistente quanto a sua sensibilidade, amedrontada e fragilizada pelo seu momento, simboliza como todas as outras, a capacidade de intermediar e se fazer alento, balsamo a quem dói, sofre e busca resposta. 




Eu gostei muito do resultado, porque proporcionou a pessoas sensíveis uma maneira de conectarem-se com elas mesmas. Nessa conexão, elas perceberem que o alcance pode ser maior do que elas mesmas, inclusive, se permitindo acessar, sentir a presença de seres que não estão no corpo físico, mas continuam existindo. Essa percepção amplifica mais os trabalhadores, distribui as responsabilidades que temos em gestarmos e proporcionarmos um ambiente melhor para cada um de nós e todos.  

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terça-feira, 23 de maio de 2017

TRÊS DIMENSÕES DE SILÊNCIO


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Para falar do silêncio eu deveria não escrever; simplesmente, deixar que as paginas em branco, ou até as imagens espelhassem aquilo que o silêncio encerra. Mas, a linguagem essa feiticeira nos seduz, nos ilude e nos acreditar que somos capazes de apreender a coisa só porque ela nomeou, ela disse. E é com essa ousadia e estultície que vou escrever sobre o silêncio. Minhas primeiras palavras é que eu queria escrever objetivamente, como uma linha reta que atinge o outro ponto no mesmo instante que o visualiza, mas a minha escrita é curva, obliqua, foge, escamoteia, só se diz depois de ter percorrido longos caminhos e vistos muitas paisagens e muitas vezes os leitores com sede, com fome, não entendem mais para onde estão indo... Vou lembrá-los (caminhamos para o silêncio, mesmo que pelo caminho vou apontando paisagens, panoramas) então tenham paciência e vamos juntos.

O tema de nossa reunião desse mês foi silêncio e a grande discussão, como não poderia deixar de ser diferente, nasceu de uma inquietude de uma colega que não conseguia silenciar-se e de uma indagação da linda que amo, que nos pergunta: o que é o silêncio?




Essa é o tipo de pergunta que se responde com cocegas e beijo na boca. Responde-se a uma pergunta dessa olhando admirado, fixamente, até explodir de encanto por conhecer quem pensa essas coisas diferentes. Mas, já dialoguei com essa pergunta, falei dos erros interpretativos, falei do zen budismo, falei da plasticidade da natureza, falei de João Gilberto, agora eu vou falar de como foi nossa reunião no 2º sábado do mês.



Às quatro da manhã Somater me ‘acorda’ e me passa o roteiro da reunião, iriamos trabalhar com três níveis de silêncio. Um primeiro relativo ao Grande mistério, a grande noite. Um segundo relativo à Grande Mãe e ao útero. Um terceiro interno- nosso. Gostei das ideias, das relações, fui preencher o dia com minhas falas existenciais e às 18:00/18:30 iniciamos a nossa reunião. Estiveram presentes duas lindas mulheres e cinco homens.

Assim, demos início. Respirando profundamente ficamos em silêncio, ou melhor, ficamos com a boca fechada. Raras vezes percebera tanta agitação e inquietação interna como aquele dia. Eu de olhos fechados, tentando iniciar a reunião era tentado com pensamentos variados, percorrendo lugares distantes, todos fora e longe de mim. Todos me arremessando para fora de mim mesmo. Todos me mostrando o tão distante eu estava de mim, o quanto que percorria passos emocionais de outra pessoa. Ia percebendo espaços lacunares, por hora superficiais, outra hora abissais, nos quais podia-se encontrar meus medos, meus temores, meus receios, meus conflitos e eu querendo a todo custo e de toda forma dizer para mim mesmo que ali era um lugar de concentração. Em vão, meu coração e minha mente não me obedeciam e caminhavam por lugares que eu não tinha controle. Essa agitação conflitiva durou muito tempo. 


Resultado de imagem para silencioO tempo de uma vergonha de estar em uma reunião, com amigos esperando assertivas e eu 'entrenhado' nos meus próprios dilemas. Centenas de pessoas a espera de ajuda e eu sem conseguir silenciar-me. Cada vez que essa reflexão vinha à tona mais agitado eu ficava, querendo forçar o silêncio. Igual quem grita, igual quem estapeia pedindo paz e tranquilidade. Não tinha saída, eu precisava aceitar minha inquietação e foi com essa aceitação que algo perto de um silêncio começou a ser gerado. 

No entanto, foi quando abriram a porta que saímos todos desse dentro de nós. Um dentro barulhento, as vezes selvagem, ruidoso, mas, nós. Um nós que não deveríamos nos envergonhar e tão pouco correr, e sim, abraçar. Foi ao falar desse momento de silêncio que percebemos que nunca falamos tanto. É somente na falta que a presença se manifesta, tomamos consciência. Há pessoas que quase não comem carne, quase não transam, praticamente, não bebem; basta dizer a elas que estão por três dias de preceito que elas salivam por carne, se excitam vendo cotovelos, sentem vontade imensa de tomar cerveja. A atenção na falta desperta estados internos adormecidos, o silenciar-se não é diferente.  

Não entramos no mérito, mas transmitimos a mensagem de que durante aquele período de silêncio, nós ouvimos e nos atemos ao que nos prende, sejam situações, pessoas, que estamos ligados, por vezes presos, por horas vinculados. Cada qual compreendeu isso e caminhamos para outra dimensão do silêncio.


Apagamos as luzes! Todas. Pedimos para imaginar a floresta, a mata, a natureza, a clareira e o céu aberto, o avistar as estrelas. Era nesse lugar que homens e mulheres introspectavam o silêncio. O engolia em forma de medo parindo respeito e compreensão, abraço e sentimento de totalidade e pertencimento. Imerso na noite escura, ouvindo passos, sons da natureza falante, da sinfonia da natureza é que desenvolvemos as potencialidades dos xamas e dos guerreiros. É ali imerso pela natureza que as árvores, flores, matas, folhas, chão, terra, estrelas, animais, insetos comunicam, que se aprende a linguagem de todas as coisas, que se aprende a dialogar consigo mesmo sem temer as dores, dissabores que nos atormentam. É ouvindo aquele silêncio que a gente aprende a falar com o outro, com o mundo.
Pois bem, estávamos longe demais dessa imersão. As luzes e as telas azuis nos tiram a sacralidade e o respeito pela noite, consequentemente pela vida, pelo dia, pela luz. Mas, fizemos o exercício. Fomos conduzidos à percepção mais sagrada da noite, da lua, da magia e nesse instante seres misteriosos apareceram ao lado de cada um dos presentes. 

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A sua maioria em forma indígena, um com o cachimbo da paz, outra sentada de pernas cruzadas, no alto de um platô realizando o ritual do sinal de fumaça. Outra catando folhas num ritual de pajelança, outro realizando movimentos com as mãos e ostentando um coca que quase tocava o chão, outro apenas observando, enquanto que junto a mim, um grande amigo batia no peito como quem toca tambor marcando o ritmo do coração. Marcando a pulsação da Terra, acelerando para que cada coração dos presentes se tornassem um único coração, alcançassem o mesmo compasso, a mesma vibração e essa pulsação inicialmente ia unindo os corações, depois os pés, as mãos e de repente estávamos emaranhados em uma única rede e teia de energia. Não apenas os seres em nosso plano como seres de outros planos e níveis. 

Minimizando as batidas até que as silenciasse, as parassem e deixando cada um viajando por si mesmos, dentro de si mesmos, conectando-se a uma forma de silêncio que nasce do medo, da solidão, do vazio, da angústia, do desamparo. Um silêncio que vai ganhando voz, sentido, conexão até que se explode e reconhece a diversidade de vozes que compõem o universo, as florestas, as matas, nós mesmos. 




Aos poucos foram voltando e fomos conversando sobre as lembranças, as percepções de cada um. Uns falando que só recordava de um vento, do escuro bem espesso o recobrindo e de uma nevoa. Outra relatava que via uma grande luz no centro da sala. Uma luz tão forte que a ofuscava mesmo com os olhos fechados. Outra dizia que não tinha visto escuridão, que em nenhum momento tinha sentido a escuridão. Outros relatando as sensações corporais de frio, calor. Tentava eu, como éramos poucos, descortinar coisas que foram feitas, níveis que tínhamos chegado, mas era a fala de cada um deles, que me abria para as percepções internas. Por exemplo, eu sempre acreditei que o ritual da fumaça tivesse o sentido e o propósito de se comunicar com tribos distantes, mas a moça que executava aqueles movimentos, ela se comunicava, com uma linguagem muito clara, com seres do espaço. Aquela fumaça subia aos céus e as preces, desejos, anseios eram atendidos. Não deu para vasculhar e nem adentrar muito. 

A outra que catava folhas era uma índia, uma pajé da região da amazônia, brasileira, tinha e possuía conhecimentos das ervas. Interessante é como que a moça que jogava fumaça para o ar, para o céu, em verdade, buscava um consolo, uma resposta, um aconchego uma tentativa de retorno para casa. Ela tinha uma saudade que esses rituais ajudavam a aplacar, a diminuir, embora a saudade permaneça ainda nessa vida. No entanto, a conexão ficava clara e era esse o sentido de adentrar esse silêncio, compreender a nossa conexão com o universo.
Um dos sentidos do exercício era o de salientar que cada um de nós tem uma forma de conexão, de integração, de harmonização e aqui chamou, novamente, a minha atenção o uso do cachimbo da paz e a tão polêmica questão das drogas de forma geral e da maconha em especial. 







O uso da canabis fazia parte de um ritual, hoje decantado, perdido, cindido que talvez proporcione mais angustia do que conforto, mais vazio do que preenchimento, no entanto, dentro daquela cultura, o seu uso tinha um aporte de transcendência que podemos encontrar nas almas ainda hoje. Esse é um assunto que merece um texto a parte, a saber, as drogas enquanto energia de medo, terror, violência e a droga como forma marginal de se colapsar uma sociedade de consumo egoísta, perversa. Porém o fato é que se nos anos de 1960/1970 a maconha, o LSD tinham o aporte de criar uma abertura consciencial diferenciados, fora dos padrões bélicos, de manipulação e domínio sobre os outros, hoje as drogas são a representação mais literal de um sistema que ela tentou derrubar. As drogas hoje representam o recrudescimento de tudo o que há de mais perverso e 'doentio' no mundo. Elas representam justamente a mesma energia que um dia utilizou-se para combater. Enfim... assunto para outro post. Mas, se as drogas um dia produziram silêncio e abertura para espaços profundos, hoje ela produz barulho e a reprodução frenética de uma sociedade acelerada sem saber para onde caminha, porque não tem tempo nem de parar para refletir. 

Findo os diálogos, as reflexões, as inferências, fomos para o terceiro silêncio que segundo a exposição de Somater seria o primeiro.





Fomos convidados a sentir a Terra, a respeitar o chão. Falaram das diversas tradições nas quais as mulheres eram adoradas como deusas, falaram da Terra como Gaia, da Terra como Grande Mãe. Falaram dessa força que abriga e desenvolve dentro de si as mais diversas formas de vida e espera que elas convivam como irmãos, compreendendo a harmonia que os rege e os guia. Falamos, falamos, até que fomos remetidos ao útero. Ao silêncio do útero. Ao silêncio capaz de capturar nossos sentidos, de nos conectar ao outro e nos perdemos nesse outro, nos fazermos um. No lutarmos para sermos um. É mágico e estranho como esse silêncio metaforiza os outros dois. Como que o silêncio do ser que é gestado dentro de outro ser são iguais e diferentes, mas ambos se confundem e se transformam. A mãe tem ciência que abriga em si outro ser e que este ser se desenvolve dentro dela. O ser abrigado não tem essa ciência. 
Tal qual a semente não tem muita consciência de que é abrigada e acolhida pela terra. Porém o desabrochar da semente, a evolução do ser vai modificando a terra e a mãe. Como que se a mãe, assim como a terra fosse um tornar-se. Não se nasce mãe, não se nasce Terra. É nesse contato direto com o outro dentro de si mesmo, é abrigando e acolhendo em si uma semente do universo, do Grande Mistério que a mulher se torna mãe, a terra se faz Gaia, ambas se fazem DEUSAS e as sementes e frutos ganham consciência e individualidade para ao longo do processo re-criem tudo de novo, nesse ciclo de tornar-se.  

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Assim, ali no útero, temos ao mesmo tempo o aconchego, o acolhimento e a necessidade de mais espaço. Em parte era esse silêncio que nos voltava, o silêncio da briga interna, do conflito interno: para onde ir? O que fazer? Está bom, mas está ruim, rsrs! E nessa dis-puta a gente perde e encontra nossa voz. Foge do acolhimento, do aconchego, do abraço, da ternura, do encanto ao mesmo tempo em que se deseja encontrar com isso em tudo o que se faz e se realiza. Esse silêncio enquanto falta, enquanto vazio precisa ser significado pela força do viver e vivendo compreender que toda Gaia é útero e toda criação é uma fraternidade, independente do reino. Mas, espelhar esse silêncio implica uma visão diferenciada com a natureza, uma percepção dela como parte de nós mesmos, continuidade. É preciso reconhecer em nosso medo, outras vozes que nos acalma, nos abranda, nos transborda, nos irmana, nos diferencia e justamente por isso, nos complementa. 


Fico aqui nas minhas ficções imaginárias acreditando que cada ser nasce em todos os reinos de forma conjunta e num único parto. Quando fostes parida humana seu cordão umbilical fostes cortado pelo ser angelical que és, acompanhado de uma sereia que nadava no liquido aminótico de vossa mãe, que é a Terra, és Gaia. E, por ser, um ser do reino mineral, outros do vegetal, outros do animal, sem contar de outros sem corpos físicos todos respiraram com você e acompanham sua caminhada, a espera de um abraço, de um olá que só pode ser dito, no silêncio da noite. 

E nesse silêncio eu fiquei me perguntando de onde vem a fúria humana por conquista e colonização? De onde vem a nossa fúria por dominação e subjugação? Essa fúria não está na natureza. A natureza vive suas regras, suas leis, mas elas se fazem harmonicamente, mata-se para que outra especie continue vivendo e essa morte cumpre uma sacralidade na qual presa e predator honram Gaia e a vida. O humano não compreende essa sacralidade da natureza. Isso nunca foi a lei do mais forte e sim a regra da cooperação. Quando perdemos essa capacidade interpretativa, a natureza, as mulheres, as crianças, os velhos, os diferentes vão se tornando ameaças e ameaçadores, porque não sabemos lidar e conviver com as perdas, a morte, a angústia, o desamparo, o abandono. Sensações que toda criatura tende a sentir se não for acolhida pelo útero, pela proteção do pai, pela fala de que esse silêncio engole, mas nos devolve melhores e ao sermos engolido por eles nos fazemos humusanidade.  

Essa fúria tem intoxicado o útero feminino com pressa, com dores, com medos, com desesperos, com despreparos e assim retirado dos seres o silêncio, aquela calma de se acalmar ouvindo outro coração, ao escutar uma cantiga de ninar. 


Caminhando para o final, 

Foi realizado junto as duas mulheres presentes um processo de ativação pelo qual elas irrigassem, adubassem, frutificassem todos a sua volta com a energia delas. Foi uma coisa linda, especialmente, porque esse processo de ativação se deu e se faz pelo abraço. Um abraço no qual a mulher se faz conectora, chave de interconexão com o todo. Uma viu nesse abraço, um vórtice de luz que ia ligando todos os presentes como havia percebido no momento que batia 'tambor'. Eu digo que essas ‘fibras óticas’ vão ligando e interligando cada um dos seres, suavizando caminhos, quando eles são para ser suavizados, enraizando e ancorando pessoas. As mulheres são parte do livro sagrado da natureza, parte essencial para que desvelemos o sentido da criação. A conexão delas passa pelo útero e é uma pena que para muitas isso tem a função apenas reprodutiva.


Sem dúvida que essa função é tão gloriosa, maravilhosa, quanto gestar um filho de Gaia dentro de si mesma, porém por isso mesmo essa força é ainda maior e pode ser melhor explorada.

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Basicamente foi isso que fizemos e espero repetir no formato de um curso no qual trabalhos esses três silêncios num ambiente mais apropriado.


Bjs em todos!!