quarta-feira, 13 de setembro de 2017

SER ou mudar? VIR A SER ou permanecer?

O ser e o vir a ser são discussões constantes e incessantes do nosso universo. Os gregos imortalizaram essa dinâmica nas concepções dos pré-socráticos Parmênides de Eleia e Heráclito de Éfeso. Para o primeiro o ser é eterno, imutável, perene. Já o segundo dizia que tudo flui, tudo muda, que não nos banhamos duas vezes nas águas de um mesmo rio. A conciliação desses estados de coisas será dada séculos mais tarde com Platão ao falar de mundo sensível e mundo das ideias. No mundo das ideias o ser existiria em estado de permanência e imutabilidade. 


Poucos quilômetros da Grécia os sábios falavam de dois princípios antagônicos e complementares: o Yin e o Yang. Duas polaridades opostas que movimentavam todo o cosmos, porém diferente dos gregos, eles reconheciam esses movimentos apenas como a moldura do Tao. O Tao seria o principio universal que em si mesmo comportaria a dinâmica dos contrários, ou seja, é no fluir dos contrários, é na dinâmica dos opostos que se encontra o equilíbrio.

Não muito diferente dessa abordagem, mas agora numa perspectiva um pouco mais dançante, os indianos falavam de Shiva e a sua dança de criação e destruição dos mundos. Se Shiva parar de movimentar seus braços, de bailar com suas pernas, o universo acaba.



Fato é que nas mais diversas culturas a ideia de mudança é um componente fundante tanto externa quanto internamente. Toda nossa dinâmica sensorial capta as mudanças, do dia em noite, da luz em escuridão, das estações do ano, do desenvolvimento das espécies, da morte e do cessar da existência. Culturas primitivas, mais próximas e afeitas à natureza tem outra concepção das mudanças, das transformações, do fluir da vida. Compreendem as mudanças como uma dinâmica inerente e intrínseca da vida e do viver. Viver para eles é mudar. Já nós seres de uma sociedade complexa, altamente industrializada, estéril e apartada dos movimentos e dinâmicas naturais, nós assustamos diante das mudanças. Somos uma sociedade que faz a trajetória épica de pasteurizar a vida de tal forma que ela seja eternamente-eterna. Esterilizamos a vida de tal sorte que a morte, o morrer é hoje uma forma de assombração, um espectro que recusamos a ver e a cruzar o caminho.  

Para não morrer, para perdurar uma vida que se recusa em mudar, criamos artifícios cruéis de uma eterna juventude estampada em todos os conceitos e mentes. Nada escapa a eterna tentativa de vender a vida como perene e constante e diante dela não sabemos como lidar com as dores, as frustrações, as decepções, as ilusões e desilusões de quem vê a vida, mesmo que apartada, esterilizada, pasteurizada insistir nos seus arroubos de soluço. Dráculas, vampiros, Barbies são a mostra desse nosso sonho de eternidade. Uma eternidade sem morte, consequentemente desprovida do sentido profundo da vida. A rosa que não murcha é de plástico. Artificial, como o corpo que não envelhece. Automático como a máquina programada em modo perpetuo. 
Nesse mecanicismo reducionista, como lidar com a doença? Com o envelhecimento? Com a impotência? Com a depressão? O que fazer quando as pílulas mágicas da eterna novidade não mais conseguem suplantar as dores da alma que parece querer, unicamente, alento e contato com a vida? O que fazer diante da entropia que nos desgasta? O que fazer diante das mudanças? 
Somos convidados a resistir, a iludir, a não aceitar, a não sucumbir. Instaurando uma lógica que diz mais ou menos assim:

morra, mas não adoeça. Adoeça, mas não envelheça. 
   
Nessa lógica, num sentido mais huxeliano, nada mais antinatural do que a alma e a vida. Nada mais antinatural do que o desejo da alma em gozar sem pílula, viver sem mascara, dormir sem comprimido, sofrer sem medicação, simplesmente doer e permitir que a vida rasgue a carne para libertar a alma de estranhos conceitos e ilusões como o de que o corpo é sempre jovem.



E é aqui e somente aqui que eu queria falar e escrever. Nós criamos artifícios, subterfúgios para mascarar a vida. Conseguimos em nossas operações mentais, em nossos discursos diários, em nossas lógicas existenciais nos afastarmos das mudanças, das transformações. Consumimos leite que dura seis meses, laticínios e carnes que congelados, resfriados, duram meses, enlatados que duram anos. Nada mais apodrece, estraga. Comemos frutas que antes de serem plantadas já estão sendo colhidas, nosso ritmo e nosso tempo é célere. Buscamos informações e conhecimentos que nos chegam na destreza de um bit. Um toque e milhares de informações estouram em nossa tela. É uma sociedade da pressa, da velocidade. Geradores e construtores de um ritmo, que desafia o natural. Pulamos fases, antecipamos estações, tudo já nasce pronto e como dizem muitos antropólogos é a primeira geração na face da Terra cujos conhecimentos dos mais velhos não são essenciais para a permanência da espécie, pelo contrário até; nós os atrasamos. O que aumenta a percepção de caos, angustia, dor, sofrimento, isolamento, solidão, depressão. 

Desenhamos um mundo cinza no qual somos substituídos automaticamente, mesmo com plena condição de realização e potência. Enfim, temos pressa, alteramos nosso entendimento do tempo e não conseguimos conciliar o ser e o vir a ser. Entre ejaculação precoce e a impotência vende-se a ilusão de orgasmos múltiplos constantes e eternos, altamente potentes para todos. O prazer incessante que não nos deixa o sentimento da morte, nem o tédio. Diante da fome e da ânsia infinita, um novo orgasmo ainda não é a satisfação, e outro, e mais um, e outro, múltiplos e sequenciais para que até o próprio orgasmo não se faça êxtase, calma, completude, silêncio, espera, recomeço. Morte! Goza-se pela força ejaculatória sem relação com o prazer, sem o sentido do fazer. Tudo é automático e sem automatismo pouco se faz. E em nossos afazares ocupamos todos os espaços, todas as brechas, todos os hiatos para que a mudança não adentre nossa vida.  




No consultório fico observando em mim e nos meus partilhantes a dificuldade de aceitar a mudança, ou melhor, de perceber a mudança como uma possibilidade positiva. Não a vemos assim. Mudar é um obstáculo, um desafio no qual resistimos bravamente. Lutamos, nos agarramos, nos esfolamos, para que a gente permaneça da mesma forma, do mesmo jeito. O esforço que fazemos correndo atrás do casamento que acabou, da amizade que se foi, do emprego que se perdeu, da vida que se tinha é assustadoramente insano e invariavelmente somos cooptado por esse movimento. Um movimento de imensa resistência, teimosia, obstinação em não aceitar o fim, o término. 
Ainda não encontrei quem diante das mudanças, simplesmente muda, altera, caminha, prospera com a aceitação do fluir. Os coachs que tem arrastado milhares de pessoas como casos de sucesso são os que abraçaram as mudanças da vida deles e agora ensinam as pessoas a mudarem. A grande tônica dos treinamentos é essa: mude! 

Não a mudança que os beduínos do deserto acolhem como uma deusa; o inesperado. Não a mudança que as comunidades primitivas harmonizadas com a natureza abrigam em seu interior e refletem externamente. Os coachs ensinam a mudança controlada, ordenada, planejada, planificada. É a mudança Excel, com toda preparação devida. E, embora tenha o ar de crítica a isso, quero insistir e declarar que mudar por planilha e com meta é melhor do que não mudar. Conjecturar essas mudanças como parte da vida, abrir mão de uma parte da vida, ainda que seja para tentar controlar outra é uma mudança menos apavorante do que ter a vida transformada do dia para noite. O inescrutável é que apesar de todo esforço, toda tentativa de controle a vida nos brinda com furações, vulcões, terremotos, acidentes, que tem o apelo de nos conectar ao natural, mas longe disso, vemos a natureza e consequentemente a vida como ameaças. Os fenômenos naturais nos assombram mais do que aos homens primitivos. Eles ao menos reverenciavam as chamas vulcanicas, as tempestades. Nós, não temos nem adoração, nem respeito, nem compreensão. Desejamos eliminar as transformações de nossas vidas e dessa forma geramos as tempestades que não podemos esconder, fugir, ignorar. 


O outro lado dos treinamentos é que estamos socialmente tão endurecidos que necessitamos de profissionais que nos ensinem a mudar. Isso é bem diferente e novo. Se é um avanço ou se um retrocesso não me atrevo a analisar e muito menos julgar. Considero ser algo diferente, já que anos atrás os profissionais dessas áreas auxiliavam as pessoas a lidar com a mudança. Os pajés, os xamãs ensinavam as pessoas a aceitar a mudança como uma parte natural da vida, por consequência de si mesmo. Os psicólogos e terapeutas buscavam ou buscam assinalar uma conformidade, uma adaptação entre a mudança externa e a interna. Hoje, há uma antecipação, ensina-se e prepara-se para mudar. São novos tempos e também um novo mercado, cuja lógica é para muitos a do capital. Muda-se para continuar sendo o melhor sucedido. Poucos mudam para ser feliz ou se aproximar da própria felicidade. Muda-se para se adaptar a uma sociedade cuja lógica é a conquista, a luta, a batalha, a guerra, a superação, o topo, o auge, o ápice. A sociedade sem pausa, sem descanso, sem repouso, sem alma, sem vida. A sociedade que acredita que o prazer é sentir prazer e encontrar prazeres cada vez maiores, mas nunca satisfazê-los, nunca senti-los, nunca gozá-los. 

Enfim, de modo geral, o que tenho visto e especialmente em mim é a nossa felicidade em resistir às transformações, as mudanças que a vida vem nos dar com o intuito de reatarmos nossos laços. Tenho observado que há um prazer orgástico em lutar contra a vida, ser esfolado por ela, mas ao final do dia agradecer a Deus por estar em carne viva, mas pronto para ser esfolado logo cedo. E percebam que agora estou fazendo uma leve mudança entre mudar e transformar. Algumas mudanças estão condicionadas a nossa psique. Mudamos a cor do cabelo, o corte, o penteado, a cor das unhas, de bairro, de cidade, de país- mudamos. Mudamos, mas elas tem o sentido de nos manter subservientes a lógica da adaptação do mercado. Os batedores de meta. Os lutadores top one, pica das galáxias. Já transformar é compreender que nenhuma mudança surte efeito até que se faça capaz de analisar o que internamente clama por mudança.


Sabe o marido que troca o sofá a cada traição. A esposa que troca o filho de escola a cada reprovação. O cara que muda de emprego a cada dois meses. A outra que faz uma tatuagem a cada ano. O outro que coloca o piercing, ou ainda a que entra no bisturi para esticar uma parte do corpo. Todos mudam, mas poucos fazem a transformação. 

A transformação é um ato de coragem, um ato final, muito próximo a morte. Muito próximo a essa barreira do indefinível que não se sabe o que será, nem no que vai dar. A lavra não sabe do seu processo quando entra no casulo. E se tivesse um coach, ou um personal lhe dizendo, também não serviria. O caminho da transformação é pessoal. É o encontro nosso com a gente. É aquele ato, que você sabe que tem que fazer e só você pode realizar. É a sua plenitude. É o seu estar inteiro no processo. É aquela certeza que a vida lhe dá, com a coragem que a vida não lhe dá e depende de você o passo, a decisão. Pelo menos até o momento no qual a vida escolhe e decide pela gente sem nos deixar nada, a não ser o essencial. Em outros termos, a tristeza maldita é que o processo de transformação é solitário como ser enterrado vivo. E, até em nosso processo de mudança a gente espera e busca um controle, um planejamento, um staff, uma mudança televisionada com direito a self de dentro do casulo. Perdoem-me, pelo menos no que se refere a jornada espiritual, que é a jornada da alma rumo a conquista da vida, isso não se dá dessa forma. Conquista que se faz, que se calcula, que se estipula não pela conta bancária e sim pelo índice interno de satisfação pessoal. 

E, nisso faço uma última digressão. Eu estava meio motivado com essa ideia de crescimento, expansão, quando escuto uma mulher que amo muito e respeito demais fazendo as contas na planilha, se valia a pena crescer, expandir. Olhei para ela com um olhar curioso, porque na lógica é o que todos querem: crescer, expandir. E ela destacava o preço disso. Preço não apenas no quesito econômico e sim no de valor. E, na análise dela permanecer uma empresa de pequeno porte era mais interessante. Não  lhe deram ouvidos, afinal quem escuta uma mulher, pedagoga, na vida? Num escritório de engenharia? 


Porém, esse ensinamento suscitou uma pergunta que acho pertinente e relevante por vários outros ensinamentos recebidos ao longo da vida: até onde eu vou? Qual é o ponto que estabelecerei como limite? 51 milhões numa mala? Três helicópteros, um jatinho particular e dois iates? Um milhão de reais? Dez seguidores no instagram? Trinta amigos no face? Um show para cem pessoas? Um show para um estádio lotado? Onde eu paro para não me perder?   
Parece ser importante saber isso para não nos perdermos, não nos desviarmos da nossa essência. Não desejarmos ultrapassar o intransponível. Não nos cegarmos e aquilo que era a nossa forma de prazer se tornar em nosso martírio.    



Observo algumas poucas, raras pessoas que aceitaram as mudanças, mudaram e nessa relação a vida as abraçou e as conduziu onde elas queriam estar. O marido que após ter aceitado o termino do casamento, ter partido para outra relação, acabou se tornando amante da ex-esposa. O desempregado que depois de ficar de porta em porta esperando uma oportunidade criou um negócio e não ganha o que recebia, trabalha mais do que antes, porém está mil vezes mais FELIZ.

Todos eles indicam que não temos escapatória a não ser aceitar a vida, o que implica em permitir que a mudança nos traga transformação, nos conduza para lugares, estados, nos quais nosso coração deseja estar e se isso representar o afastamento de quem estamos perto, que assim seja. Se significar o reencontro de quem um dia já foi, que assim seja!
O fato é que ainda não vi ninguém que na luta contra a vida a tenha derrotado. Talvez o exemplo da ressurreição, seja o de que é fundamental morrer para que se renasça e a recusa nessa transformação é a impossibilidade de vir a ser aquele que se é. Não se encontra, não encontramos a vida em sua plenitude sem aceitarmos a morte. Não podemos compreender a vida sem esse horizonte primordial- morremos.



E diante dela tudo, absolutamente, a não ser o que se faz intrinsecamente essencial é desnecessário. E aceitar esse confronto de ter a vida em sua inteireza e naturalidade como parceira é de fundamental importância em oposição a uma lógica que nem dor de cabeça nos permitimos sentir, o que dizer da angustia da morte. Se apartamos de nosso convívio todos os que sentem, como permitiremos que os portadores de sofrimento mental venha nos lembrar, sem medicação, que estamos adoecidos. Nossa lógica existencial não resiste ‘ao contato furioso da existência’, quiçá consegue suportar as mãos de uma criança.

Finalizo, nos chamando para a baforada da existência. Viver é perigoso e não se pode tirar esse perigo da travessia, se não a vida se faz anti-vida, uma proteção ao existir que gera conforto, bem estar, civilidade, civilização, mas também frustração, vazio e dor- INAUTENTICIDADE. Vá viver! O que implica dizer: dê as mãos para vida e deixa ela te conduzir. Vá com ela que ela não trai, não abandona, não conduz para nenhum lugar no qual não nos seja essencial.



Viver é abraçar a mudança para que ela nos transforme no que temos e somos de melhor. E, quem acredita que pode resistir a isso, ainda não entendeu o fluir dos contrários, a perene segurança do Tao diante do caos das transformações. E não estou falando de mudar para transformar. Estou falando de transformar para que talvez não seja preciso mais nenhuma outra mudança.
Entende a diferença?

Como salientamos, muitos mudam de cabelo, de bairro, de casa, de amante, de amigo, de bar, de cerveja, de time para não realizar a transformação que é necessária. Acreditam que mudando sem  metamorfosear, enganam a vida, o viver. E está na sua sarça ardente apenas acompanha até que lança seu bafo que chega aos homens em forma de sofrimento, de agonia e morte. É esse aguilhão que desperta o transmorfo da sua laicidade. É esse aguilhão que acorda o ser para o encontro com o seu ser (vir a ser). 
Parece que antes da dor ninguém se põe autenticamente ao caminho e a caminhar. Parece que antes da finitude, poucos situam que o inevitável não avisa, apenas chega e altera. Nada mais será como antes e não há ponto de restauração no sistema. A vida formata nossas lógicas radicalmente. Continuamos utilizando o mesmo corpo, a mesma máquina, mas as operações terão que ser outras, ressignificadas, reeditadas, configuradas para uma nova realidade. 

Mu-dadas.
                 Trans-forma-das. 





                     Vividas aberta às mudanças.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

DEUS TE AMA MESMO ASSIM.


Esse post começa falando das reuniões mensais que realizamos, essa especificamente tratou sobre o tema do ACOLHIMENTO. A partir de um vídeo colocado por uma participante em nosso grupo de wats fizemos várias colocações até que outra participante nos pergunta se estamos, se estavámos preparados para acolhermos irmãos de outras pátrias. A interação acabou sendo a inspiração para nossa reunião, que começo falando dela e só retorno ao final, então aqueles que gostam de uma leitura mais direta leiam a introdução e vão já para a parte final. 

Os que saboreiam digressões, vão beliscar sabores acolhedores, numa tentativa que fiz em mostrar tipos ideais de dois motes de energia, uma tida como sagrada, outra como profana, mas que busco fomentar que elas são integradas, precisamos integrá-las em nós. Não sei se consigo, de todo modo, ao final comento sobre a reunião que foi o motivo de escrever todo o resto. Falar e saborear como os artistas em harmonia com os mentores espirituais nos levaram a acolher o acolhimento na gente. Boa leitura a todos e as reflexões que suscitarem e quiserem compartilhar será uma honra ler. 

Abraços iniciais.  

Em nossas reuniões mensais, basicamente, trabalhamos com dois motes de energia:

uma que eu vou reputar sacerdotal, que é mais concentrada, silenciosa, profunda, sacra. 

outra mais leve, solta, branda, descompromissada, nem por isso menos sagrada, menos profunda, menos.

Essas duas formas de energia nos acompanham em muitas atividades das nossas vidas e a nossa forma de se aproximar e lidar com elas e suas variações produzem os mais diversos desníveis em nosso existir e proceder, tanto externa quanto internamente, começamos a demarcar que uma é sagrada e a outra é profana. Os desdobramentos disso acabam por nos aproximar e nos distanciar da vida, do outro, da gente, das coisas, do mundo.



Certa vez eu li um depoimento, bem no estilo de uma crônica do Irmão X, falando de um grupo de espiritas que estavam conversando antes da reunião. Nesse momento, eles estavam rindo, se divertindo, alegres, felizes; minutos depois chega o dirigente, pontua algumas questões e dá inicio a reunião. Quando a reunião termina todos voltam para casa tristes, pesarosos, quase que infelizes. Eles chegaram alegres e estavam voltando tristes, cabisbaixos. E o autor nos pergunta algo como: qual o sentido disso? Por que a energia de alegria, de riso, de felicidade não pode fazer parte dessa energia religiosa, espiritual? Por que a gente tende a ver o espiritual como esse algo que a gente procura, vivencia, mergulha apenas nos momentos de tristeza, de angustia? Por que é quase um crime a risada dentro de um ambiente religioso?

As respostas são muitas, milhares, mas o que tenho observado é que ela nos divide, nos aparta, nos separa. Fazendo uma analogia com a luz elétrica é como se a gente dissesse conceitualmente assim: existe uma energia positiva e uma energia negativa. Até aqui ok, porém estendemos essa reflexão e começamos a estipular que existe uma energia boa e uma energia má e que a tal energia positiva não pode ligar o ar condicionado, ou o liquidificador, porque é sujo ou não trás felicidade. Tal apresentação já seria um absurdo, porém a gente não para e continua estabelecendo relações mentais, comportamentais ainda mais sofismáticas, tais como: que a energia elétrica não pode ser usada para tomarmos leite, porque é pecado. 

Nós configuramos mundos, cenários, construções nas quais o uso dessa energia é restrito e só pode funcionar em um determinado ambiente, completamente adaptado para aquilo: templos religiosos. E, a partir disso desenvolvemos a lógica de que a energia flui melhor se você der uma oferta maior, ou riscar os pontos com pemba especial. Uma crença de que no final das contas está nos dizendo que a energia elétrica, ou qualquer outra que exista só funciona se a entregarmos para um eletricista. A gente, pela gente mesmo não tem condição de usar a energia que é nossa, de acender nossa própria luz. 

Se trouxermos essa analogia para o mundo físico, a de que somente eletricistas formados podem ligar nossa própria luz, nosso próprio padrão, diríamos tratar de um absurdo e questionaríamos essa lógica. Olhando por uma explicação mais material muitos conseguem vislumbrar a ilogicidade disso. No entanto, quando a gente retira o conceito de energia elétrica e coloca energia ‘espiritual’ nós achamos a coisa mais natural do mundo acreditar que o sexo é uma energia de pecado, que o dinheiro é uma energia que não trás felicidade, que a bebida é do diabo, que a dança é de satanás, que as restrições que nos colocamos conscientemente ou não podem de alguma forma ou de alguma maneira potencializar o uso da energia.

Fazemos isso sem percebermos que a única coisa que pode potencializar a energia é a CONSCIÊNCIA que depositamos nessas práticas, as crenças que inoculamos nesses conceitos. E, os observando, acredito que a sua matriz mais profunda vem dessa percepção real e verdadeira de sentir-se impuro, despreparado para receber essa força em si mesmo. Isso parece que vem do treino culturalmente sistemático e repetitivo, além da inculcação que recebemos de não sermos dignos de honrar e receber essa energia, que somente os seres especiais possuem essa energia e podem manipulá-la. 


O que me faz lembrar uma fala de Oran (mentor espiritual) que nos ensinava a dificuldade de suportar o olhar de Krishna. Contava o amigo que todos quando se despedem do corpo físico são recebidos, acolhidos por Krishna, mas o seu olhar amoroso é tão intenso e tão doce que nós não o suportamos. Estar diante de alguém que não te recrimina, não te cobra, não te pede, apenas te AMA INCONDICIONALMENTE, gera e produz todas as formas de inferno que conhecemos, tudo devido a vergonha. A vergonha de não ter amado, servido a Krishna, servido ao outro.

O que reputo fantástico nessa história é a clareza de que não há nenhum ente transcendente, transcendental, metafísico te vigiando e te cobrando. Não há nenhum ser dessa envergadura te condenando, em absoluto. Eles nos amam. Independente de a gente ser santo, ser Aécio, ser Samarcos, nos ama igual. Acolhe-nos e nos recebe igual. Abraça-nos e nos acalenta igual; porém a nossa consciência não dá conta. Como eu posso ser amado desse jeito e não amar também? Aí a gente renasce para honrar esse ser. 

O contraponto é que nós criamos situações, baseadas numa compreensão errônea do cristianismo e da vida de Jesus, que sofrendo, eu agrado mais a esse ser. Então a gente pede para nascer e sofrer, sofrer muito, sofrer demais, sofrer pra caralho, como se nossa vida fosse uma tragédia ou a paixão mesmo de Cristo. Acreditamos que sofrendo assim, seremos mais amado por esse ser. Não seremos. Ele apenas nos ama. Ele não pode não amar. Ele ama. Rico, pobre, milionário, trilionário, miserável, preto, branco, albino, sem cor, vermelho, amarelo, hetero, homo, bi, pansexual. Ele ama! Nada pode aumentar o amor dele por você, nada pode diminuir o amor dele por você. Nosso amor pode aumentar a rede amorosa, nossa indiferença pode impossibilitar que outros conheçam em vida esse amor, mas que todos são amados incondicionalmente, não tenho dúvidas e um dia conto essa experiência maluca.



O fato é que a gente sempre acredita que para ser amado precisamos de algo, necessitamos fazer alguma coisa. Em nossa concepção não se ama de graça. Quem ama, quem sorri, está querendo alguma coisa em troca. Sempre ficamos armados, desconfiados diante do amor, afinal: por que eu? Quando a gente aceita começamos a encanar noutra onda: eu não mereço. A grande dificuldade existencial é aceitarmos que somos amados. Aceitar isso muda tudo, o universo todo e quando a gente medita, ou ora, ou vibra, ou reza, quando a gente tem uma experiência transpessoal de se elevar e aproximar-se de outras esferas, estados consciências, essa sensação, percepção de incompletude, impureza amplia. Por um lado deseja-se mais dessa percepção, por outro, se quer fugir dela, se quer lutar para ficar ‘limpo, puro’ para receber essa energia. Estou falando daqueles desdobramentos da energia ‘sagrada’ em nossa esfera psíquica.



Dessa percepção a gente cria as mais diversas loucuras para termos a sensação de que fazendo as coisas certas, de maneira séria, sem riso, sem alegria, sem contato com o mundo, eu fico limpo e me mantenho puro. Os brâmanes não cruzam com a sombra do pária, o esotérico não escuta música profana, o crente não frequenta lugares impróprios, o kardecista não vai ao motel, o carismático não senta no bar. Cada um de nós, cada religião estabelece esse seu religare e passamos a atribuir valor a amuletos, sistemas, rituais, crenças, como se a energia estivesse lá, como se esse amor que recebemos cessasse porque você se embriagou, ou fez sexo fora do casamento, ou deixou de dar o dizimo, ou... 

É importante destacar que esse ser não para de nos amar, não para de amar, ele não pode não amar. Ao mesmo tempo é preciso destacar que independente da forma que você se sente mais próximo do Divino, de como o sagrado opera e age em você, essa é a SUA forma de acolher o amor divino sem se quebrar, se dilacerar. Não significa, não implica que o ser divino só te amara se você nunca mais entrar no motel, ou parar de ir aos bares, ou nunca mais dançar. Nós não temos controle sobre esse amor que nos ama, podemos apenas ‘controlar’ esse amor que recebemos. Não o que ele nos doa.

Esse é um movimento difícil de lidarmos, primeiro porque a gente quer aceitação. Segundo, porque a aceitação humana é diferente da divina. A humana é condicionada. A divina é incondicional. Tão absurdamente incondicional que não conseguimos compreender, porque a pensamos nos moldes humanos. Se você fizer sexo fora do seu relacionamento seu parceirx pode te deixar. Se você não for ao bar com o seu amigo, talvez ele possa se magoar. Se você não estiver lá quando seu filho necessitar, ele pode traumatizar. O amor humano é condicional, condicionado, tem exigências, regras, contrato, hora marcada, período determinado. Dizem alguns que tem até preço. O divino não tem, elx nos ama. E, como nos ensinou magnificamente Martin Luther King: "amar é diferente de gostar!" Jesus ensinou a amar nossos inimigos, não a gostar. Não tem como gostar do racista que barbariza sua mulher, brutaliza seu filho, coloca o cachorro para te morder. Você não pode gostar dele, mas pode amá-lo. É o que nos ensina o pastor norte americano. Talvez o Criador não goste do que estamos fazendo, mas ele nos ama, independente do que estamos realizando.  

Então como fazer? Como lidar com o amor condicional e o incondicional? Os dois são mesmo tão diferentes? Estamos mesmo fadados a essa oposição de ficarmos cindidos entre um ou outro amor?

Acredito que não, mas por querermos aceitação, por não sabermos que somos amados incondicionalmente a gente barganha. A gente tenta controlar o amor do outro afirmando que ele deve ser só para nós. Temos tanto temor que acreditamos que se a pessoa para quem dispensamos amor, ama outra pessoa igual ou mais, ela está nos diminuindo. É assim que pensa o ciumento, o possessivo, seja ele amigo, marido, esposa, filho, irmão, nora. 
Nós cindimos a energia e nessa cisão mora e nasce as dores, os conflitos, os sofrimentos. Nasce as duas formas de relações existenciais que observamos, idealmente, em várias pessoas. 


De um lado há a nossa tentativa de aproximar desse amor divino e consequentemente se afastar do mundo e em certa medida das demais pessoas. De outro o distanciar desse amor divino, porque se deseja o amor do outro, do mundo. Nós dois há sofrência, há carência, há dor. No primeiro, porque essa tentativa de purificação, sacralização, de esterilização da vida é chato. A gente não percebe a chatura, porque em nome do divino a gente acomoda e compreende as coisas mais bizarras. Mas, imaginem o cara que anda com lenço umedecido, álcool em gel, mascara bucal, corpo todo coberto, só entra em casa descalço e pelado para que as impurezas da rua não adentrem o recinto; é chato. Esse cara sofre, porque a relação dele com o divino o priva do contato com o outro, com o mundo. Ele no seu asceticismo higiênico e purificador estabelece uma relação excelsa consigo mesmo, privando-se até das partes mais 'impuras', dele. Em geral, os 'dadivosos' não tem sombras e consequentemente uma dificuldade em compreender as mazelas do outro. Mesmo quando eles fazem ações caridosas, eles tentam ser caridosos e bondosos, eles fazem um esforço divino para serem bons. Mesmo quando tentam com toda sinceridade, aqueles que recebem algo deles visualiza o abismo que os separa e os distingue. Eles estão lá distribuindo o sopão, eles estão lá orando junto ao enfermo, eles estão lá levando a palavra para o presidiário, mas, quando olhamos o olhar do outro refletindo a face deles, ou o inverso, o que enxergamos é a distância. Enxergamos o pensamento silencioso dizendo: “eu não sou vocês! Eu tenho pureza e vocês não!” Mesmo eles estando lá, batendo na porta das mansões, ele não consegue nem um biscoito como doação. Mesmo ele estando diante de solitários que gostariam que um cachorro latisse no quarto, os enfermos preferem a solidão. Eles ficam bem quando estão sozinhos, com eles mesmos, entre eles, falando do altíssimo e dando glórias e aleluia.

O outro é o oposto, o inverso. Ele lambe o escarro do chão, ele deita em cima do vomito, ele lambe a boca do cachorro, ele abraça o outro com pus e come a miséria do mundo. Ele as vezes está na prisão, se identifica tanto com a desgraça que para no presidio e liberta a alma de muitas pessoas. Ele mesmo não consegue sair, se livrar, mas ele faz isso com as pessoas que o cerca. Na campanha do quilo, ele pede para um mendigo uma bolacha e o mesmo lhe dá. Nos hospitais, ele promove a cura da ala que ele se encontra. Ele é bom sem esforço. Ele não sabe, não acredita, porque ele não reza, ele não ora, ele não vibra, ele não vai a nenhum templo religioso, ele não entende nada do que a gente fala, escreve, ele apenas vive, abraça, acolhe. A todos, menos a si mesmo. Na crença dele, ele não tem salvação. Ele não se aproxima do divino por se achar sujo. Ele não entra no que se demarcou como ambiente sagrado: templos, igrejas. Ele é órfão desse contato, dessa relação, porque ele se proíbe de senti-la, de expressá-la. E é preciso vivenciarmos o meio termo e de certa maneira é o que temos buscado em nossos encontros e agora falo dele. 

Um ser que ilustra bem esse tipo de personagem é aquele centurião que ouvirá falar de Jesus. Ele se aproxima então do mestre com muita humildade, ele era um centurião, um cidadão romano, poderia se achar, mas ele é humilde independente do posto que ele ocupa. E, ao aproximar de Jesus, ele pede a cura de um ente querido, porém ele não queria incomodar. Ele não se achava digno de incomodar um ser como aquele então ele explica que mesmo sendo oficial quando recebe ordens ele as cumpre e quando dá ordens aos seus subordinados, eles também as cumpre. Sendo assim, bastaria Jesus dar a ordem e o seu escravo seria curado. 
Esse moço tinha fé, acreditava no poder de Jesus, mas não se sentia digno. 


Como ele há vários e para cada um deles há os apóstolos que não entenderam nada e os escribas e fariseus que tem certeza que são puros e representantes de Deus na Terra. Poderia falar da mulher que toca a túnica do mestre em meio a multidão e sente-se curada, mas é desnecessário. Creio ter ficado claro o que desejamos dizer.   



Nossos encontros tem sido marcado por esses dois movimentos. Um sacerdotal que nos leva em direção ao silêncio, a reflexão, a essa sacralidade da energia, a essa densidade para compreender e localizar o tamanho, a beleza e amorosidade desses seres, dessa energia, do Criador. E outra que depois que chegamos nesse ponto, nesse lugar, busca tirar o peso, subverter a experiência, aproximá-la do cotidiano; ‘profaná-la’, no intuito de ninguém ficar se achando, ficar podendo. No intuito de integrarmos essas polaridades em nós. 

Esclarecendo que o termo sagrado e profano é mesmo para situar conceitualmente essa experiência que na cosmovisão, tanto dos sacerdotes, quanto dos artistas é a mesma energia. Porém estes buscam nos dar consciência desse movimento apelando para o lado estético, fugindo, escapando, das concepções morais que damos. Eles tentam nos movimentar, ampliando a nossa reflexão sem que a gente se condene, se julgue, se inferiorize, se perca nessa moralidade rasteira, superficial, de quem não entrou e não compreendeu a essência da coisa.

A santidade não é uma briga contra algo, ainda que se escolha um ADVERSÁRIO, termo aramaico para Satanás. Escolher um adversário é um processo psíquico de aglutinar forças, concentrar energia, visualizar seus demônios (diabulus, disputas) internos. Assim, não é que as mulheres são a tentação e a perdição e você deve lutar contra elas. Ou que o vinho é a ilusão e o desencanto e você deve lutar contra ele. Nessa luta condenar todas as mulheres e todos os que bebem como sendo malditos e amaldiçoados. É que no seu processo interno de dor, de angustia, de fuga, mas também de conexão, elaboração com o melhor de você mesmo lhe ficou claro que as mulheres, ou o vinho, ou os dois podem te levar a perdição de si mesmo. A meditação te mostrou que o símbolo da carne (mulheres), ou o excesso da vida (vinho) te embriagam, te distrai, lhe remetem ao desassossego. Assim, quando se busca e se acolhe o celibato, o voto de pobreza, ou o voto de castidade, não está se desejando, menos ainda condenando, a união carnal, o casamento, o sexo, a riqueza, o caminho que outros escolheram trilhar, mas sim deixando claro para si mesmo e isso é PARA SI MESMO(A), a forma, cor, sobriedade a sua pedra de tropeço. A restrição é para sua alma naquele momento e não para todos os seres para sempre.


Os padres do deserto tinham isso mais claro. Porém, o uso indiscriminado das práticas restritas e místicas deles possibilitou os delírios, as alucinações, as estultícies conceituais de quem não entendeu nada e universalizou, santificou processos que feitos fora de um contexto é o afastamento tanto do humano, quanto do divino. O que observamos por séculos foram pessoas apartadas tanto do seu divino, quanto do seu humano. Elas não são e não eram santas, puras, castas. Elas eram e são pessoas que imitam passos, seguem caminhos nas pegadas de outros e o desfecho disso é a ruína espiritual, é a mortificação divina, é a ingratidão à vida.

Essa ruptura criada entre o humano e o divino foi o ardil mais poderoso que o Adversário fez para nos tirar do caminho divino. Caminho divino que no melhor exemplo de Jesus se dá e se faz também na Terra, no corpo, no beijo, no barro, na alegria, na comunhão, na celebração. Isso não se dá como quiseram muitos na crucificação. Não é ela a representação de Jesus, o símbolo da cristandade. A analogia da cruz é a integração do tempo e do espaço, do horizonte e do profundo, do corpo e do espirito, do humano e do divino. A cruz não é dor, ou sofrimento. A cruz é vida e viver é integrar o viver. Integrá-lo na beleza, tornando a vida bela, leve, digna de ser vivida. O símbolo da cruz é a medida do humano que aceitou o amor e retribuiu esse amar aos outros. Nisso não há uma universalidade a ser seguida, pelo contrário, é um caminho, uma vereda linda, frondosa, mas que deve ser agradável ao seus passos. Trilhar o caminho de alguém é diferente de calçar o mesmos sapatos.



Mas, porque escrevo tudo isso? Para falar do acolhimento e da nossa reunião. Nós fomos conduzidos a esse espaço de silêncio pelos sacerdotes, mas saímos dele por intermédio dos artistas que nos pediram para escolhermos um de três movimentos e retratá-lo como é em nós essa energia do acolhimento. 

Deveríamos escolher por gesto; por ilustração; por conceito.

Três das participantes retrataram em gesto. Uma em ilustração, embora não a tenha desenhado. Outra em conceito. 

O que nos interessava daquilo tudo era o entendimento primário de como a gente cria, desloca, movimenta, dá sentido a essa energia que se diz sem falar. Essa energia que nos atinge, nos chega, nos ilumina e em desdobramento, como é que depois de ter captado, sentido, apreendido a energia a gente a expressa para nós, para o outro, para o mundo? 

E é bonito ver como que o gesto, a ilustração já dizem tudo, mas a gente 'precisa' das palavras. Não as palavras em si e sim de uma elaboração que nos afasta desse primário. A gente acredita mesmo que é essencial ser aceito pelo outro. Mas, esse outro não está nos pedindo, ou nos cobrando uma elaboração, porém a imagem que temos e fazemos dele nos exige isso. E, nessa exigência a gente muda de tom, por vezes perde-se a si mesma. 

Mais claramente, quando, imediatamente após a recepção desse e outros exercícios a buscadora simplesmente gesticula, ou desenha, ou escreve, ela está muito perto dela mesma, da sua maneira de se expressar, de se movimentar, de se conduzir. 

Quando, após esse movimento, ela fala, estabelece-se um processo de racionalização, no qual, essa expressividade primária, já não está mais lá. Ou melhor, elabora-se toda uma teoria, toda uma existência apenas para rebuscar um traço, um gesto, uma ideia. 'Rebusca-se o existir para de certa maneira mostrar que a gente vale apena ser amado. Uma aceitação que pode nos colocar em direção ao outro, a uma acolhida do outro, mas que tenho observado em clínica que desaloja a pessoa de si mesma. Na ânsia de agradar o outro, acaba-se se desagradando ao ponto de se adoecer. 

E com isso eu finalizo rememorando a presença do poeta português que desvela o que fizemos. Ele nos mostra que os sacerdotes imbuídos que são de muitos atributos (amor, felicidade, sensibilidade, acolhimento, outros) nos dão meios de entrar nessa energia. Na esteticidade deles, esses atributos são SERES. Eles existem em estado e princípio concreto e alguns seres os portam, os distribuem, os fomentam. 

Assim, ele nos pede para visualizarmos a palavra ACOLHIMENTO no meio da sala. E nos pede para entrarmos dentro da Palavra/Ser/Atributo e depois quando saímos dela trazemos nós mesmos e o que é esse ser para nós.

O exercício foi antes de tudo uma proposta de nos acolher e ao sermos acolhidos, compreendermos que esse mesmo ser, esse mesmo atributo pode ser e é compreendido de forma diferente pelo outro.

Eles nos conduziram à percepção de como que acolhemos? Como que expressemos essa acolhida e acolhemos os outros? Cada uma das buscadoras relatou seu processo de forma linda e registro o meu, pois na hora não o relatei. 

Não fiz todo o processo, mas uma rosa desabrochou perante meu corpo. Seu caule saia da altura dos testículos e a flor mantinha-se semi-aberta na altura da minha boca, similar a um microfone.

Como eu expressaria essa energia?

Eu a expressei falando, dizendo. Como que deixando claro que o meu acolher, pelo menos naquele momento, passa pela fala. Uma fala que é um processo, um cultivar, um desabrochar, algo orgânico.

Mas, perceba que todo esse explicar é um desnível desse fazer. Dessa relação correlata e simultânea entre ser-a-colher. É isso que os artistas tentam nos dar, capturar esse instante no qual não está ‘pensando’, elaborando. Sermos capazes de lidarmos com esse movimento criativo, intuitivo, espontâneo no qual o sentir-expressar-ser é o sentido. E seguindo esse movimento, eles nos ensinaram a entrar nesses atributos e trazê-los à vida, a existência, ao cotidiano. 

Estavam querendo mostrar que o uso disso é prático e não conceitual. Que essa energia divina precisa ser usada fisicamente e ao usá-la a tornamos divina numa relação intrínseca com o mundo material. Está imbricando dentro do que eles nos ensinam ser co-criação: a capacidade de embelezar a vida. 

Porém, nós não nos contentamos com isso. Acreditamos que arte é uma atividade fora do mundo da vida, que os mentores fugiram do mundo para ser quem são e eles tentam nos mostrar que não. Tentam nos mostrar que o que e quem eles são, eles o são em relação com a vida, a existência material que tiveram. 

Voltando ao exercício como espelho, a gente se agarra a imagem, ao desenho, a definição de outra pessoa e perdemos a nossa. Seguimos caminhos que nos perdem e nessa falta de rumo perdemos a única coisa fundamental a ser portada: nós mesmos, o SI MESMO. 



Por medo de não sermos amados nos falseamos e é pelo amor e a coragem de ser quem somos que podemos ser felizes. Parece que não importa o que façamos esse é o único caminho de volta. Ninguém chega sem si mesmo. Ninguém encontra sem si mesmo. Ninguém ama e sente-se verdadeiro amado sem si mesmo. 

E as religiões roubaram isso de nós. Precisamos recuperar com amor, ternura, coragem. 





Abraços finas. 


terça-feira, 25 de julho de 2017

CARTA COMO SOPRO INSPIRATIVO.

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No final de mês de maio surgiram para mim duas pessoas atravessando a dificuldade de compreender o desencarne de um ente querido. Uma havia perdido a filha a mais de vinte anos e outra havia perdido a mãe a menos tempo. As ouvi, conversei e essas conversas deixam claro que não há nada mais importante na mediunidade do que servir de ponte entre essas saudades.  


Tendemos a considerar mediunidade o contato estabelecido pelo médium (encarnado) com o plano dos desencarnados. Somater, irmão sideral, foi um dos primeiros a nos alertar para o estreitamento desse conceito e alargar as suas possibilidades e entendimento para toda e qualquer prática na qual nos colocamos como intermediário entre dois planos, dois seres, duas dimensões. Mediunidade assim ganha concepções menos estáticas e abstratas para se fazer no uso e no contato dos seres e entre os seres. O motorista que transporta seus passageiros, os educadores que deslocam mentalmente os seus estudantes, o faxineiro que limpa a sujeira de uma casa/cidade; a médica que promove a cura do paciente, a terapeuta que acolhe e recepciona a dor do seu partilhante. Mediunidade, intermediários entre eles e um outro, uma coisa, um estado, uma ideia, um principio. Um alargamento mental que miniminiza a mediunidade enquanto encontro semanal de uma hora e a expande para um fazer diário de no minimo 16 horas por dia.  


Um dos sentidos, talvez o sentido de ser sensitivo, médium, seja o de fazer ponte, estabelecer contatos e intercessões entre os planos. Pensando mediunicamente, receber notícias de um ente desencarnado, em outra dimensão afaga, alivia, emociona tal qual receber carta de um amigo distante. Nessa reunião que realizamos nosso intuito era proporcionar as pessoas uma escrita. Escrever uma carta para alguém. Os desdobramentos dessa atividade me levaram a pensar em muitas outras coisas, em moldes parecido a pergunta que Waldo Vieira fez ao se dedicar mais as projeções astrais do que às psicografias. A reflexão do médico questionador foi algo como: 'se as pessoas podem conversar com os espíritos conscientemente fora do corpo, porque fico emprestando o meu para receber cartas, transmitir abraços que elas poderiam estar recebendo diretamente?'

Na concepção dele, essa lógica alimentava um estado de coisas que ele não queria fazer parte. Considerou melhor ensinar uma técnica de saída do corpo que permitisse a qualquer um estreitar e conhecer o mundo espiritual por si mesmo. Esse pensamento crítico me veio depois do resultado, quando vi as pessoas lendo as suas cartas e nelas cada um dialogava com as dores do outro. Se não podemos chamar as cartas produzidas de psicografias podemos afirmar sem dúvida que foram cartas inspiradas que consolou cada uma daquelas pessoas que lá estavam, sem que eu e outros médiuns tivéssemos que transmitir o que os amigos espirituais ditavam. Pelo contrário, ao invés de um, ou dois médiuns psicografando tivemos seis pessoas sensíveis que se conectaram e nessa conexão consigo mesmas, captaram o outro, o ambiente. 




O que fizemos de diferente foi novamente caminhar nas pegadas da sensibilidade Consciencial, da estética existencial que os artistas nos apontaram. Apostamos na arte e no que os artistas chamam de INSPIRAÇÃO. 

Nietzsche filósofo alemão nos pergunta se havia alguém no século XIX que soubesse o que é inspiração? E a partir dessa linda pergunta escreve falando como é e o que era escrever para ele. 


Essa escrita como tive a oportunidade de expor, timidamente, no 2° Coloquio Internacional de Metafísica, rememora muito a psicografia. Mas, será a inspiração uma psicografia? Seriam os artistas médiuns? 

Eles dizem que sim e eles dizem que não. Dizem que sim ao afirmarem que o processo de inspiração é uma conexão, um acesso diferenciado as mais diversas localidades subjetivas, que cruzam, parametrizam com estados intersubjetivos e realidades objetivas do outro. Dizem que não, porque não há nenhum espírito soprando, dizendo o que deve ser feito e como fazer. É um estado de sensibilidade, uma consciência que se abre e é capaz de assimilar do seu jeito, no seu estilo, na sua essência o como é para ele. E nessa imersão, consegue-se dialogar, tocar outros universos, outras consciências, independente do tempo e do espaço. 

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O que realizamos foi proporcionar uma 'oficina' na qual esse outro entrava no universo da inspiração e de lá retirava, trazia, aquilo que tinha em abundância no seu balde de alma. Mas, quem tratou com mais naturalidade essa parte foi o poeta português que nos brindou com sua presença e sua inspiração. Falando em seu nome e dos artistas nos deu uma explicação e nos remeteu a uma prática muito suave do que nos levaram a fazer. Uma explicação mais clara de como seria a atividade/oficina a ser realizada. Vou chamar a Oficina de Sopro Inspirativo. 


Um processo de abertura para deixar a inspiração entrar e o hálito criativo sair produzindo uma interação, uma ponte, uma construção, um diálogo entre o eu e o mundo. Uma interação na qual o eu mergulha em si mesmo e retoma trazendo o que encontrou em suas paisagens internas. Nesse encontro, pedimos para cada uma fechar os olhos, respirar, sentir. Minutos depois com o estado vibracional mais elevado, interconectados e conectados aos seus tempos e espaços internos, lhes demos papel e lápis/caneta para escreverem, enviarem uma carta para... tal qual o sujeito esperançoso joga uma mensagem no mar dentro de uma garrafa, na confiança de que o infinito vai lhe dar o leitor correto, o destino certo.
Elas escreveram e depois do término da primeira buscadora, poucos segundos se passaram para o término da última. De uma maneira bem ritmada terminaram duas a duas. E iniciamos o processo de leitura.

Cada uma lia como se estivesse escrito para si e de si mesma. Liam sem saberem que o sentido oculto do exercício era perceber em qual nível, até em que ponto, conseguiram tocar o outro. 
Resultado de imagem para pessoa escrevendo cartaO estranhamento começa quando uma amiga diz clara e em bom tom: “escrevi pensando na sua dor” se dirigindo a outra amiga que perdera o segundo filho por morte matada. Após a leitura eu interrompo e esclareço que toda dinâmica do processo não era apenas a escrita para si mesma, o diálogo consigo. O sentido consistia na percepção e entendimento de como ao acessar seu próprio universo, o outro surge, desvela. Como que nosso discurso toca e chega ao outro.

Prosseguiram as leituras até que novamente na última carta, a leitura de L proporciona choro em C que não tem dúvidas em afirmar que a carta era para ela. Uma carta que falava para a dor de uma amiga que havia perdido um companheiro. Um choro bom é derramado e uma emoção visita a todos nós. O sopro da inspiração se harmoniza na mesma direção da psicografia. E aquela moça, medrosa e resistente quanto a sua sensibilidade, amedrontada e fragilizada pelo seu momento, simboliza como todas as outras, a capacidade de intermediar e se fazer alento, balsamo a quem dói, sofre e busca resposta. 




Eu gostei muito do resultado, porque proporcionou a pessoas sensíveis uma maneira de conectarem-se com elas mesmas. Nessa conexão, elas perceberem que o alcance pode ser maior do que elas mesmas, inclusive, se permitindo acessar, sentir a presença de seres que não estão no corpo físico, mas continuam existindo. Essa percepção amplifica mais os trabalhadores, distribui as responsabilidades que temos em gestarmos e proporcionarmos um ambiente melhor para cada um de nós e todos.  

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