segunda-feira, 3 de março de 2025

XXV ENCONTRO NACIONAL DE FILOSOFIA CLÍNICA: Filosofia, Humanismo e Clínica.

 

 

Por anos realizei os relatos dos Encontros Mineiros e pela 1ª vez senti a necessidade de fazer do Nacional. A ideia dos relatos era dar notícia a quem não esteve presente e permitir a quem esteve re-contar o mesmo fato por uma outra lente e olhar. Por motivos que não sabia explicar eu não consegui realizar o relatório dos últimos encontros mineiros, mas a vontade voltou para realizar o nacional e o motivo parece ter sido muitas questões que ficaram abertas em mim. Questões que não encontrei espaço para a pergunta, que não senti apropriado às colocações. Na necessidade de aclarar esse diálogo interno é que o explicito.

 

O XXV Encontro Nacional aconteceu na cidade de Criciúma tendo os colegas do Centro de Estudo Sul Catarinense como anfitriões. O encontro foi realizado entre os dias 24 a 27 de outubro contando com a presença de colegas de muitos lugares do Brasil e a ausência de tantos outros também. Senti falta de colegas tanto da cidade (Jean) quanto a de figuras carimbadas Neilor, Evaldo, Francisca. Os demais já tinham dito que não iriam. A gratricíssima surpresa foi a presença de Gustavo Bertoche[1]. Não chegou no 1º dia, mas esteve conosco.

O olhar que apresentarei do Encontro é realizado sobre a lente da minha REPRESENTAÇÃO. É um destaque que pode parecer óbvio, talvez seja mesmo, mas reputo fundamental esclarecer e pontuar, sobretudo, porque outros colegas (Alonir Pedro[2]) realiza as atas dos encontros, isto é, temos outras lentes, mais precisas e ajustadas aos fatos do que as minhas.

Mas, falando em atas, isso só me ocorreu em nossa última reunião da antiga diretoria na qual não pude ficar até o fim. Acredito que as atas das reuniões da Anfic devam ser publicizadas no site para dar notícia do que foi discutido e deliberado.

Agora voltando à representação e ao encontro vou conjugar os fatos objetivos da programação com o diálogo interno que fui realizando a cada exposição, apresentação, fala. O tema é objetivo, claro, mas as discussões e os caminhos que darei é um roteirizar acompanhado de argumentações derivadas nas quais estou em ação, hipótese, conversando com os palestrantes.

Eles não tiveram o direito a réplica, mas espero que possam ter aqui ou em outros canais, formas e meios de continuarem o diálogo. O objetivo é dialogarmos.

Sobreponho ainda a essa REPRESENTAÇÃO as conversas informais nos intervalos, nos jantares, no café da manhã, nos corredores. Aqui é onde acontece a parte mais forte do congresso. Quase nunca se lembra do que foi exposto, dito, mas inequivocamente lembra-se dos bares, das piadas, dos gracejos, da confraternização. Diga-se de passagem, esse foi um argumento forte para que o Encontro Nacional permaneça sendo anual e presencial. Então deixando o roteiro:

Inicialmente, abordo o encontro por dias o que significa que a marcação mais robusta segue o tempo cronológico, não obstante, dentro da cronologia trarei o tempo subjetivo. Mais claramente, para falar da apresentação do Ponde no dia 24, posso retornar a uma 5ª feira de março e avançar para o sábado dia 26, ou domingo 27.

 

24 DE OUTUBRO

19h45 – Palestra Prof. Luiz Felipe Pondé

20h30 – Diálogo Prof. Pondé e Prof. Lúcio Packter

 

Esse foi o ponto alto do Encontro, ou melhor, todo o encontro parece ter sido construído, divulgado para esse momento, mas quando o momento chegou a sensação, nossa sensação de plateia da FC foi a de que faltou algo. Clareando:

O nome de Ponde foi cantado, decantado, troçado, destroçado desde o seu anuncio. Colegas e centros de formação viram o nome do filósofo como sendo uma afronta, um nome desnecessário. Mas, Ponde foi. Apresentou sua fala. Uma fala altamente acadêmica, erudita. Minha amiga Ana Rita acredita que ele tenha se perdido e não estabelecido a relação que se propôs a fazer. Eu acredito que ele fez a relação. A falta que senti, em parte pq fui com a expectativa de encontrar, era a do choque, o contraponto, o diálogo entre Ponde-Lúcio e a plateia e isso a direção do evento parece que achou melhor retirar.

Foi a isso que eu reputei a sensação de falta. Estavam lado a lado Lúcio, Ponde, mais de uma centena de pessoas e não teve uma única pergunta de um para o outro, do outro para o um, da plateia para um deles. Fizeram as suas falas, receberam as palmas e realizou-se um encerramento que ninguém entendeu que era o final.

Com isso reforço que foi um equivoco deixar de ter vindo por causa de um nome. Mesmo porque, Ponde é um filósofo, se mais a direita importa pouco, desde que ele esteja aberto ao diálogo. E, não o conheço a fundo, nem a raso, porém as vezes que o vi, ele dialoga. Ele conversa, ele escuta, ele contrapõe e se vale da visão dele, que dizem ser mais a direita e insisto que não importa desde que haja razoabilidade e abertura ao diálogo. Indo ao ponto.

 

Ponde fez uma fala acadêmica, típica de aula Magna. Trabalhou em paridade com dois conceitos, um maior e outro menor, subordinado que foi o eixo de discussão da sua apresentação. Primeiro ele se valeu do conceito de humanismo desde os gregos, clássicos/antiguidade passeando em direção a Renascença, depois ao Iluminismo. Estendeu o conceito a modernidade e entremeou sua fala com o conceito de perfectibilité/perfectabilidade. Ele mencionou diversas vezes o autor francofano no qual apoiou a sua exposição, mas não guardei o nome. Por consultas realizadas depois acredito ser, embora não tenha certeza, se tratar de: Benjamin CONSTANT DE REBECQUE e a sua obra “De la perfectibilité de l’espèce humain.”

O autor que Ponde nos fala desenvolve a ideia de um humanismo positivo no qual estaríamos nos aproximando de uma perfectabilidade, enquanto haveria um humanismo negativo que estaríamos desenvolvendo uma ‘corrupção’ no sentido de degeneração desse sentido. Longe de nos aproximarmos de um melhoramento enquanto humanos estaríamos nos distanciando de um ideal humano. Essa oscilação varia a partir do olhar e do entendimento de cada época, pensador. Cada geração tende a olhar para a futura como sendo o fim do processo civilizatório.

A tônica do Ponde foi basicamente essa, obviamente, contando com o brilhantismo dele. Foi uma aula magna, esplendorosa, clássica. Citou o nome do livro em francês, praticamente, apenas ele e talvez uma meia dúzia de três pessoas naquele universo de centenas de seres já ouvira falar do livro, do autor, embora todos ali, enquanto humanos, em algum momento já se dispusera a pensar o humanismo, ou a desumanidade. O tema em si não era algo de outro mundo.

Ponde no inicio da sua fala faz um recorte, deixando claro que iria falar do humanismo, da filosofia, deixando a parte clínica para o Lúcio por não ser a área dele. Eu esperava do Ponde no encontro de FC que ele justamente falasse da FC. Do humanismo e da própria Filosofia eu reputei desnecessário. Ao final da fala, ele aborda brevemente Jung, Freud, mas demarca de novo que ali seria o lugar de fala do Lúcio. Ele aponta Freud mais próximo de um humanismo desconfiado, negativo, o que em parte tem sentido e em parte não.

- A FALA DE LÚCIO.

A fala de Ponde foi acompanhada de olhares atentos, aguçados, todo mundo muito focado, para não perder uma palavra, uma ideia. Ponde apresentou as ideias com uma linearidade clássica, típica de manual. Uma estruturação de raciocínio que não permite saltos, lapsos. É aquele desenvolvimento conceitual similar a conto de João e Maria que lançam migalhas de pão e nós plateia faminta chegamos junto com ele ao destino final. Uma construção de uma arquitetura filosófica impecável, linda, um colírio para à racionalidade e estruturação de raciocínio. Conjugado a essa beleza arquitetônica pontuo que Ponde estava de social. Faltou a gravata. A roupa parece ter sido comprada na cidade. Não tinha um fisgo, uma dobra, impecável.

O contraste entre Lúcio e Ponde inicia-se na vestimenta, por isso a sublinho, juro que ganha sentido na conjunção da obra.

Lúcio estava com moletom preto, camisa esporte preta, tênis e mochila. Ouviu Ponde atentamente e ao termino da fala do arquiteto clássico começou a falar. A fala de ambos, lado a lado é a medida exata da Filosofia acadêmica na qual Ponde foi genuinamente um representante maravilhoso, foi impecável; com a arquitetura de Lúcio, altamente robusta, que não quer ser estritamente racional, linear.

Ana Rita ao meu lado durante a exposição disse: “como é bom ouvir alguém com coração!” Era Lúcio falando. Ela pontuava isso nos primeiros minutos da fala do Lúcio, quando sentia-se na plateia um relaxamento. Uma troca significativa de engrenagem, uma mudança palpável captada por toda plateia. Na passagem do microfone de um para o outro algo muda, altera. A temática era a mesma (Humanismo), a estrutura era a mesma (teatro), mas tudo alterou.

Realizando o mesmo percurso que o professor Ponde, mas trazendo cada um de nós para irmos juntos. A fala de Lúcio era um tipo de abraço, de sopro, de gentileza que acolhia e abrigava todo o público fosse ele ou não da FC, conhecedor ou não da filosofia, erudito, estudioso ou não de qualquer área. O Ponde não?

Ponde também, mas a exigência acadêmica para acompanhar a construção do filosofo é a racionalidade, a estruturação de raciocínio. Os filósofos, os acadêmicos falam para esses e destes. E não há nenhum mal nisso, pelo contrário. É como se estivéssemos dizendo à Platão: “aquele que não sabe matemática, não entre.” É uma premissa. Lúcio a quebra. Então Lúcio não é racional?

Ele é, mas movimenta uma racionalidade que a academia tem dificuldade de compreender e aceitar. Uma racionalidade que não é linear e tampouco universal, única. Lúcio nos fala das filosofias aplicadas. Lúcio similar à Sócrates mostra como o escravo, como que o sujeito comum pode acompanhar as discussões do pensamento, sendo preciso apenas o adequar a linguagem. Lúcio dialogava com todos, prescindindo da obrigatoriedade da estruturação de raciocínio altamente elevada. A arquitetura conceitual de Ponde era jônica. Toda elegância saía de muita precisão matemática, muito cálculo. Para alcançar aquela beleza tinha-se que realizar muito esforço, muito folego. Lúcio ao falar sutiliza esse esforço. Sabe roldanas? Ou engrenagens que mostram que se pode fazer mais com menos esforço sem prescindir da beleza, da razão, do entendimento, da clareza?

Lúcio então falou de novela, de filmes, de livros, de pensadores. O humanismo na fala de Lúcio não era um conceito no mundo das ideias na qual é preciso abstrair racionalmente para alcançar. O humanismo que Lúcio trazia tendo a clínica como referencia era a de que cada presente enquanto humano a partir do seu experenciar poderia compreender as dificuldades do ser humano em qualquer tempo.

O acadêmico fala para o universal, o abstrato. Pouco importa se ele está diante de anjos, de deuses, de vacas, de humanos; ele fala. O diálogo que por vezes o acadêmico estabelece é entre ele e o autor. O mundo pode estar acabando, nada importa, ele destrincha o conceito, levanta, vai embora. É o que a academia nos ensina. É o que achamos maravilhoso e brilhante.

Lúcio falando de filmes e novelas contrapõe a nossa temporalidade (medrosa, aflita, ansiosa) a temporalidade dos medievais, da antiguidade e pontua como essas migrações são perigosas. Como estamos vendo filmes medievais, antigos trazendo a mesma agitação, celeridade, ansiedade. É inconcebível, rsrs.

Na História da Ciência a gente discute isso como anacronismos, buscar em outras épocas o que encontramos ou não nas nossas. Foi nessa toada que Lúcio nos fala do Moises malhado da novela, do outro personagem bíblico representado com aflição, ansiedade, coisas muito de nosso tempo. Lúcio vai mostrando como nosso tempo vê o tempo passado e retoma a idade média, injustamente caracterizada de idade das trevas, pelo olhar iluminista, positivista que passa a acreditar numa racionalidade esterilizada de emoções, de fé, de crenças.

Lúcio nos deixa encantando. Jandira ficou nos contando sobre o olhar de Ponde para Lúcio. Um olhar de admiração, em certa medida acredito que de surpresa. Tenho para mim que Ponde não falou sobre FC, porque não achou que fosse um saber digno do seu tempo. Ele aproveitaria mais o tempo lendo sobre humanismo, sobre perfectabilidade em Rousseau, depois em Constant de Rebeque e talvez até em Luc Ferry. Para quer ler Lúcio Packter?

E, quando Lúcio fala desfilando clássicos, não enquanto pensadores embalsamados, mas enquanto ideias que auxiliam a pensar o nosso próprio pensamento, nosso próprio fazer, ser, existir. Quando Lúcio faz isso, Ponde fica admirado, acredito eu, ao constatar que o fato de se fazer aplicação filosófica não significa que ela seja menos importante, menos profunda, menos significativa.

Quem é professor no ensino médio, no ensino fundamental, especialmente de Filosofia e Matemática compreende o olhar de desprezo que acadêmicos tem sobre a licenciatura e sobretudo a licenciatura fora da universidade, o castelo de cristal da cultura. Lúcio de uma forma linda, elegante, precisa mostrou que a Filosofia está ao alcance de todos. Tivesse mais tempo, ou tivessem deixado que perguntassem para ele, talvez ele captasse dezenas de empresas, fomentasse a curiosidade para a aproximação de dezenas de alunos à FC. No entanto, apostamos na erudição. Apostamos que um nome de vulto, de peso nacional fosse capaz de atrair o público e a mídia para o evento (e de fato foi). No entanto, depois que esse público foi atraído, o que fazer com ele?

A organização achou melhor dispensá-los para fotos. Todos os que conversei da FC disseram que esperavam algo depois da fala do Lúcio. A plateia ficou esperando esse algo depois. Sabe aquele momento que o artista canta a última música e a plateia continua no seu lugar batendo palma e pedindo mais um? Não tiveram os pedidos, mas todos permaneceram nos lugares. Todos. Qdo a organização sobe ao palco pensei que fosse para mediar pergunta um para o outro, o outro para o um, nós (plateia) para eles. Não teve. Nunca mais teremos aquele momento de volta e ele aos olhos da plateia foi subestimado.

Isso me levou a pensar outras coisas, nada contra o que Ponde falou. Foi magistral. Acredito que anunciar Lúcio Packter e outro colega da FC não lote um teatro daquele porte e estrutura. Nessa parte a contribuição, o retorno, a publicidade se paga. Não obstante, internamente, dentro da comunidade da FC não fez diferença.

Respeitosamente, Lúcio é mais relevante do que Ponde, academicamente analisando. Gláucia Tittanegro, Marcio Andrade, Gustavo Bertoche em titulação e publicação não ficam muito atrás do Ponde. Will Goya, Cláudio, Rosemiro S, Jamil poderiam amarrar melhor o diálogo com a cidade e com a visada do Centro anfitrião que construiu e constrói uma expertise no mundo empresarial.

Poderíamos ter pensando FC e trabalho. FC e Empresas. FC e 3º setor e chamar colegas nossos do Brasil todo para trocar e sobretudo aprender com o Centro Sul catarinense que está muito a nossa frente nisso.

Os Centros de Formação embora tratem de FC cada um vai tendo sua singularidade e isso pode ser o mote de abrigar um encontro nacional, como o também auxiliar na construção de uma referencia a ser consultada e alargada Brasil, mundo a fora. O Centro Sul Catarinense oferecendo um curso presencial, hibrido, online na ANFIC sobre FC e mundo empresarial. Santinha lá no Maranhão com Gilberto em Chapeco nos falando de FC e 3º setor. O Centro de Florianopolis e o Recanto nos falando de FC e formação sem obrigatoriedade de se tornar Filcli.

Isso para apontar que podemos crescer de dentro pra fora e também podemos crescer de fora para dentro. Temos caminhos e alternativas que perpassam o diálogo, a construção, a independência. Falarei dela um pouco a frente.


25 DE OUTUBRO

08h00 – Assembleia Anfic + eleição da nova diretoria

A Assembleia ocorreu sem maiores problemas e/ou questões. Tivemos a aclamação da nova diretoria e do conselho. Houve apenas eleição para a composição do CNAA pois tinha 4 candidatos para três vagas. Foi sugerido abrir a vaga de suplência para os conselhos tal qual já existe para os cargos de diretoria, mas tal mudança implica alteração no estatuto.

Dilvane eleita a nova presidente(a) da ANFIC propôs que o Encontro Nacional seja realizado a cada dois anos dando assim mais espaço para os regionais. Pontuei que considerava a proposta interessante, com o adendo que um ano faríamos no formato virtual e no outro presencial.

Jandira pontuou sobre a necessidade do presencial enfatizando as trocas, os afetos, os abraços, a sensorialidade que o Encontro promove e que poderíamos criar condições mais facilitadas para colegas participarem.

O amigo Cláudio, daquela forma sempre direta, apoiada por Will, disse que isso não era mote da discussão da Assembleia, que poderia ser uma decisão de diretoria e o importante era a votação da eleição.

Teve um grupo grande, que se manteve silencioso, que disse posteriormente que Assembleia ao ser convocada segue as pautas apresentadas e todo e qualquer outro assunto diferente do pautado deve ser levado para outra assembleia. Eles tinham razão também. De modo que ficou pendente o novo formato do encontro nacional de FC, mesmo porque nenhum centro se apresentou para 2025. Mais tarde os amigos do México abriram as portas para hospedar e sediar um encontro nacional. Uma ideia muito boa que realizada com tempo e programação possibilita levar um grande número de colegas.

10h30 – Anfic-Exposição: DE REPENTE 30

A exposição foi linda. Muito rica em todos os dados de semiose e sensorialidade: táctil, auditiva, visual. Todas evocando uma memória afetiva.

No campo táctil e não apenas, Clísia trouxe as mais diversas publicações da FC, praticamente, a biblioteca particular dela. E, acreditem se quiser, não nos deixou trazer nenhum pra casa, rsrsrs.

No campo visual criaram um mural de fotos coletado com a ajuda dos mais diversos colegas. Um mural belo. Pena que não peguei nenhuma foto. Tinham fotos lindas de colegas conhecidos, outros que passaram pela FC e seguiram outros rumos, outros que já não estão mais fisicamente entre nós, alguns que não puderam estar conosco fisicamente. Falando das fotos me lembrou um trabalho conduzida por Liliane Moreira no campo do patrimônio imaterial, que se valia de fotos, imagens e como isso nos remetia ao passado. Em outro momento a gente pode explorar essas fotos para trazer lembranças, imagens, causos e prosas. É mesmo só deixar as pessoas em contato com as imagens e abrir para ‘escutatória’ que elas vem.

No campo auditivo tinha um registro sonoro das gravações das sessões, ainda em K7. Dava para imaginar a dificuldade das transcrições e porque tantos colegas desistiam dessa parte prática. Os áudios em comparação com os atuais eram muito precários. Os ruídos, os chiados, os estalos são quase inerentes a gravação. Soma-se a isso a captura da fala dos partilhantes, com a pausa, o recuo para transcrever. Sem dúvida muito trabalhoso. Atualmente a transcrição continua chata, mas se tem várias ferramentas automáticas que auxiliam no processo. Particularmente, reputo a transcrição importantíssima, porque o ato de ouvir a própria voz e escrever produz os deslocamentos fundamentais para os encaixes do Filcli. As demais transcrições talvez sejam desnecessárias, mas a da clínica didática, reputo fundamental.

Tivemos ainda reportagens de jornal, entrevistas históricas, máquina de escrever, sofá retro e uma mediação da Clísia contando toda a história da FC. Uma história que continua ser escrita, mas que já tem muitas páginas, livros, obras escritas.

Aqui publicizo algo que disse a Clísia e não senti necessidade de dizer publicamente, então escrevo.

Clísia foi a presidente da ANFIC que aplicou os ensinamentos da FC na administração da associação. Pode parecer simples, mas foi algo que fez toda a diferença. Fiquei extremamente aborrecido com toda a diretoria e parte do conselho quando descobri (por último) que nenhum delxs estavam saindo como candidatxs. Meses antes eu tinha perguntado a elxs o que estavam pensando para reeleição. Acharam até que eu estava querendo ser presidente e eu disse que não, haviam dezenas de nomes antes do meu e eu tinha que prestar muito serviço até esse momento chegar. Fiquei surpreendido ao saber que não tinham inscrito. Meu nome era o Caetano, mas ele carinhosamente refutou na hora dizendo que preferia o lugar jurídico. Posição extremamente acertada e mostra pq o tenho como meu presidente. Olhei para Jandira, Márcio e jurava que elxs fariam uma articulação entre eles, Clísia não podia mais.

Mas, enfim por motivos pessoais todos declinaram e então agradecemos os serviços prestados.

 

13h30 – Instituto Sendtko de Ensino Superior

Demorou um pouco para solucionarmos os problemas técnicos. Clísia tinha aberto um link no meet para Gilberto e outro para a palestra do professor Gasperin em seguida. O primeiro não foi tranquilo acessar. Outro problema veio do áudio que não ajustava nem ao note e nem ao projetor. Acabou ficando com um chiado, um ruído que dificultou a escuta de muitos em especial uma colega que tem misofonia. Ela praticamente não ouviu a palestra.

Ajustado esse problema, com relativo atraso, Gilberto fez a apresentação do Instituto Sendtko e da Fundação Hospitalar Vale do Rio Uruguai.

Gilberto trouxe uma historicidade da Fundação, desde as turmas formadas pelo Lúcio nas quais contavam com a participação de diversos colegas, sendo que duas estavam conosco no Encontro: Jandira e Dilvane. Passando pelas turmas formadas pelo professor Adilson Zardo de 2011 a 2018 e depois trouxe o dado divisório de 2018 aos dias atuais focando seu relato nas turmas formadas, nas dificuldades da formação, nas tentativas encontradas para superar estes obstáculos e outros que remontava toda a história do centro.

Falou da experiência do Instituto em trazer professores de outros centros para darem aula e como isso tem contribuído para uma visão mais plural por parte dos alunos da FC. Gilberto focou na experiencia dele ao promover os cursos em Ead, inicialmente só ofertado pelo Instituto Packter. Uma das coisas que Gilberto percebeu como problema e foi buscando alterar é como que a atmosfera do Ead é fria, distante, solipsista. Essa atmosfera se faz dificuldade para muitas pessoas prosseguirem no curso, por mais que haja o tutor para tirar dúvidas. Pensando uma alternativa para esse problema, Gilberto chamou a mim e ao professor Miguel Caruso para darmos aulas quinzenais em algumas das suas turmas. Brincava e brinco dizendo que os dois ensinavam e eu ‘desinsinava’. Mais tarde, outros professores vieram somar- Carlos Eduardo, Ana Cristina- e atualmente Fernando Fontoura e Márcio Jose.


No tocante a um outro problema da aprendizagem de FC, que contava com as aulas dos professores e os Cadernos, Gilberto desenvolveu uma plataforma muito robusta, consolidada que auxilia demais na consistência da aprendizagem. Ele reuniu aulas do Lúcio em vídeo, gravações, as categorizou por assuntos, concomitantemente gravou aulas, reuniu textos tudo isso para ampliar o material de consulta e os dados de semiose dessa aprendizagem. Esse processo está no estágio no qual ele realizou a contratação de professores de outros centros para diminuir o solipsismo cartesiano do estudo da Filosofia e do Ead. Dentro disso realizou mais uma guinada que foi alterar o formato das aulas.

As aulas que começaram para ser apenas um suporte, um tirar dúvidas acabaram se transformando em mais uma aula do mesmo assunto que já tinha na plataforma. A ideia inicial era eles verem os vídeos do Gilberto, as gravações do Lúcio, os textos de alguns colegas. Deveriam ir a aula com o Miguel para um aprofundamento e depois comigo para realizarmos uma roda de conversa, um bate papo sobre possíveis dúvidas. Acabou que boa parte tinha dificuldade em acessar o conteúdo e tanto eu quanto Miguel montávamos aulas. O mesmo passou a acontecer com Ana e Cadu. Para dirimir isso, Gilberto abriu uma turma que tem o professor Fernando Fontoura e ele como carro chefe na qual eles trabalham aspectos práticos.

No que tange ao problema inicial do solipsismo acredito que as aulas ao vivo dos professores alcançaram seus objetivos. Turmas foram criadas e amizades foram construídas aproximando muito do formato presencial. Mas, ainda não resolvendo o problema do gargalo: por que tantos entram e tão poucos obtém a certificação A?

A cada turma Gilberto traçava estratégias de atrair uma persona (público alvo) mais afeita ao formato que ele objetivava, pessoas que quisessem atuar profissionalmente com a FC. Foi nesse foco que a maioria das turmas não tem o certificado B de especialista, apenas o A. Ele falou da quantidade de alunos que estão em busca da Certificação A, assim como a nova turma aberta em Angola e Moçambique. Falou do projeto de Mestrado e abriu as portas para a minha fala.

 

Gilberto foi convidado por Rosemiro para fazer apresentação das pesquisas desenvolvidas no Instituto. Foi essa ideia que nos fora apresentada em reunião da Anfic com o Instituto Sul Catarinense. Gilberto meses depois me estendeu o convite pedindo que eu falasse da experiência do mestrado institucional.

Inocentemente, comecei a fala a partir dessa deixa do Gilberto e relembrei a reunião solicitada pelo Gilberto que tivemos com a ANFIC na figura da presidente e da à época uma dos membros do CNAA. Eu enfatizei como fui contrário a reunião, não entendia o motivo de Gilberto buscar dar satisfação a ANFIC e tive uma grata surpresa ao ouvir Clísia e a falecida Rose. Esse foi o inicio que ao final provocou um revertério que Gilberto me mandou mensagem a noite querendo entender o que foi aquilo e eu junto peças, mas não enraizei para saber. Chegarei a esse ponto.

Falei da experiencia do Mestrado. Falei da Metodologia que iria utilizar na apresentação que dialogava com a que nos valemos no Mestrado, que é a mesma da FC. O famoso tripé que tem base categorial, Estrutura de Pensamento (EP) e Submodos (SM). A partir desse mote sobrepus a metodologia acadêmica de Introdução, Desenvolvimento, Conclusão, ou mais precisamente, Problema (Historicidade), Justificativa (Base categorial + EP), resultados (SM).

Antes de iniciar mencionei que tinha escrito sobre isso na revista Partilhas que será publicada em novembro e destaquei um artigo que escrevi para a Sapere Aude revista da Puc Minas na qual discorro sobre que humanismo estamos falando e da Filosofia Packteriana como uma filosofia decolonial e capaz de ensejar um novo humanismo. Fiz isso em uma discussão interna, silenciosa com a noite anterior na qual vimos Ponde tracejando o humanismo positivo/negativo e Lúcio nos chamando atenção para as muitas formas de Humanismo. A ideia de Lúcio é mais afeita a desenvolvida por mim no artigo.

Epa, pera lá, muita calma, ladrão/
Cadê o espírito imortal do Capão?/
Lave o rosto nas águas sagradas da pia,/ Nada como um dia após o outro dia” (Jesus Chorou, Racionais MC).

Posto isto iniciei a experiencia do mestrado contando os problemas. Mencionei a semelhança da identificação dos problemas entre mim e Gilberto, mas as formas muito diferentes que temos para responde-los. Mencionei uma classificação que utilizei na tese que pego emprestado da História da Ciência que era: internalistas, externalistas e ecléticos.

Internalistas falam da ciência de dentro do laboratório. Externalistas falam da ciência de fora do laboratório. Retomando ao pós guerra, externalistas são historiadores, filósofos, sociólogos que olham para os físicos, matemáticos, químicos, biólogos (internalistas) e dizem: vcs são alienados. Produziram uma bomba atômica sem saberem que estavam sendo manipulados. Não adentro a querela, mas pinço a classificação para trazer à FC.

Internalistas seriam os colegas que estão no consultório, atendendo. Não escrevem livros, não tem publicações, não são convidados para palestras. Externalistas são os caras que não tem clínica, falam da FC numa perspectiva mais teórica, mais idealizada, estão em todas as palestras, publicam livros. Quando esses dois grupos se encontram o que se ouve/ouvia era: “fulano não tem clínica.”

E, muito dos escritos da FC saíram dos externalistas e os internalistas viram e dizem: na prática isso não é assim! Não funciona assim. Eu classifico a mim e a outros como ecléticos, pessoas que tem escrito e clinicado e também formado. Estamos pisando em três campos e precisamos discutir, conversar, prosear mais para minimizarmos problemas tido como incomensuráveis a partir de determinado lugar.

Essa parte auxiliou na extensão de uma pergunta que Caetano fez para o Gilberto referente a formação empobrecida dos filósofos, da nossa dificuldade mesmo em acesso a livros, recursos, conhecimento, mesmo tendo cursado Filosofia. Essa é uma ideia que Lúcio apresenta nos Cadernos. Tinha muito sentido, mas tem diminuído. Era um tempo que Filosofia não era opção de ninguém. Hoje é.

Gilberto argumentou que por incrível que pareça não tem relação direta entre a Filosofia e a FC e aqui na minha fala busquei essa distinção, trazendo justamente os ‘cabeções’ e a dificuldade deles em fazerem FC. Primeiro, porque eles buscam uma fundamentação e segundo e principalmente, porque eles acreditam que para falar em FC precisa saber Filosofia e não é disso que se trata. Isso é comum nas Filosofias Aplicadas nas quais realmente um consulente procura um filósofo para discutir sobre a Felicidade a partir de Aristóteles, mas não é o que vivenciamos no Brasil em nossos atendimentos. Por mais que a angustia esteja instalada no sujeito, não vamos falar de Heidegger, nem do Dasein, nem do existencialismo. A Filosofia ocupa outro lugar.

Interessante que hoje (novembro de 2024) pela manhã conversava com o colega Paulo Alves do Rio de Janeiro e ele falou de uma forma tão bonita como Lúcio pinça um conceito de um autor e o coloca para dialogar com um conceito de outro autor rival. Academicamente é uma impossibilidade e sempre recorro ao tópico 3- sensorial e abstrato (que Monica Aiub destrinchou tão bem). É academicamente um escândalo um empirista e um idealista juntos. Mas, na malha intelectiva isso é real. Isso existe. Convive de mãos dadas e corações siameses muitas vezes. Um cabeção não consegue aceitar isso. Nem sabe como lidar com isso. Ele abandona o curso, ele não chega à clínica, pelo menos não a da FC.

Uma clínica que é filosófica e klinique, isto é, parte médica. Tem uma parte da clínica que é dedutiva, especulativa, mas que a gente pede ao estudante que ele faça suspensão desse a priori. Uma suspensão que o clínico realiza. A clínica só começa depois do toque, da sensorialidade, do olhar, do sentir o outro diante de mim. O filósofo na melhor tradição geômetra do pensamento prescinde de qualquer ser, qualquer ente, qualquer sujeito. O filosofo precisa apenas da mente dele para realizar o seu constructo. Isso é lindo. Isso é uma tradição, mas isso não é FC, isso não é Filosofia no sentido desta se propor a responder as indagações dos seres comuns, ordinários, atento à vida ordinária, banal de cada um de nós.

Os cabeções tem dificuldade em aprender isso. Então não falta Filosofia aos filósofos, por vezes, falta clínica. Ir à prática, ir ao mundo do outro, deixar as próprias ideias, a própria visão de mundo em suspensão para aprender com o outro.

Falei dos professores que compuseram o Mestrado e seus trabalhos: Ana Cristina da Conceição, Carlos Eduardo Nascimento (Cadu), Gilberto Sendkho, este que vos escreve, Marcelo Pertussatti o arquiteto metodológico, regimental do nosso mestrado. Eu tive a honra e felicidade de orientar Josue Julien e Lulia. Cadu orientou Élcio Pastório e Marcelo Pertussati orientou Taís Fiscina e Mauricio Sant Ana.

  

16h00 – Filosofía Clínica en México: El caso licorne (videoconferência)


Os professores do México contaram a história da chegada deles a FC. Uma história que envolve uma provocação de uma colega de universidade e que culmina na busca do Rafael na internet quando depara com uma tal de FC. Se encanta, busca maiores informações, troca diálogo com Lúcio, vem ao Brasil.

Na vinda deles ao Brasil há uma imersão nos mais diversos centros do país, especialmente os do sul. Começando pelo Instituto Packter, foram recebidos por outros colegas em seus centros: Jandira em Chapeco, Dilvane em Pinhalzinho, Bruno em Florianópolis, Josiane em Curitiba, Will em Goiânia.

Retornam ao México deixando muitas saudades, aprendizados que os colegas falam com muito encanto e carinho. A esposa de Bruno nos contava como que Lupita sabia mais da história, lendas e magias de Florianópolis do que ela e os demais moradores. Jandira também reforçou o nível de aprofundamento que os colegas mergulhavam e levavam as aulas, os aprendizados.

O casal fala do livro "Puentes Existenciales" nas quais creio que fazem a 1ª obra de FC em espanhol. Temos a Escuta e Silêncio em edição bilingue (português e inglês), mas creio que em espanhol seja a 1ª, embora tenhamos a Semana de Estudos de Sevilha de 2014. Enfim, a obra do casal aprofunda o estudo, a pesquisa sobre a FC da historicidade aos submodos.

Nesse nível de pesquisa o casal rememora a participação no Encontro Nacional falando da pesquisa deles de Singularidade. Pesquisa que teve a participação dos filhos deles também. Um belo trabalho de família. Vale o registro do Fascículo sobre o mesmo tema que Rafael escreveu para Mikelis. Valeria muito a pena uma nova edição reformulada trazendo as considerações que eles pontuaram no Encontro Nacional.

Importante também destacar a influencia que o conceito de Hospitalidade apresentado por Rafael se esparramou entre muitos colegas e centros. Conceito que foi apresentado no livro Lúcio Packter e a Filosofia Clínica no Brasil com o artigo do casal: “La Cordial Hospitalidad.”

Tiveram tempo ainda para mostrarem fotos da turma de Filcli no México. Uma nova turma aberta a partir da mediação do Lúcio, um colombiano procurando pela formação em FC e Lúcio passou o contato dos colegas do México. Encorajados abriram uma turma de FC na América Latina. Uma coisa linda e dentro dessa belezura se propuseram a sediar um Encontro Nacional no México. Uma proposta que acredito que com tempo de preparação é possível para muitos colegas irem ao México ou quem sabe a Colômbia, meio do caminho.

Os colegas falaram também do Licorne (Unicórnio) que simboliza de maneira muito bela, mágica, as relações singulares que promovem e estão trazendo para o campo da FC.

 

19h30 – Beto Colombo: Fenomenologia do Espírito e o Caminho de Santiago de Compostela: Filosofia e vida (no Hotel Tri-Premium)

 

Beto Colombo se valeu da dialética hegeliana como uma tradução do seu caminho de Santiago. Um caminho tido como marcante, transformador, revolucionário, mágico como escreveu Paulo Coelho no seu diário dos anos 90.

Beto para explorar a magia do caminho fala da tradição peripatética na Filosofia não apenas grega, como na de Jesus, na dos sábios asiáticos. Todas caminhavam. Mas, é um caminhar na maioria das vezes silencioso. O peregrino, seus passos, seus pensamentos-sentimentos encaixando, organizando a cada caminhada. É um processo similar ao da corrida seja de 3, 5, 10, 18, 21, 42 Km. Tem pouco a ver com a distância externa e sim com os processos de seguir com mais um passo quando a mente disse que é longe, que é impossível, que vai doer, que se está com sede, que tem conta pra pagar, que tem que voltar para ir para o trabalho. No correr, no caminhar, na atividade física feita com atenção a distinção entre corpo e mente se faz muito presente até que se cria uma comunicação muito refinada entre corpo e mente na qual um responde ao outro de maneira automática, quase que sem intervalo. E é aqui que se abre uma transversalidade que parece que o caminho de São Tiago e outros caminhos sagrados proporcionam: a conexão com a alma.

A alma parece que dialoga com maior facilidade quando não é travada pela mente e/ou não percebida pelo corpo. A alma parece ser a conexão exata desse diálogo. E a diferença do peregrino para o esportista parece ser a atenção, a abertura para permitir que a alma chegue. Recordo duas cenas.

A 1ª é o Airton Sena falando de uma volta perfeita na qual ele não sentia mais a diferença entre ele e o carro. Tudo era uma coisa só. Uma conexão, um fluir. A 2ª é um apache contando em sua biografia que em determinado momento da sua trajetória, ele sentou-se no caminho e perguntando o pq, ele disse que estava esperando a sua alma chegar.

Ele correu tanto que deixou a alma dele pra trás. E agora esperava ela encontra-lo. Muitos homens e mulheres poderosos tem corrido de forma acelerada, ganhando fortunas, fazendo milhões, se preparando para grandes fusões, grandes desafios, mas desconectados, porque a alma ficou perdida em algum ponto da estrada. Beto está dialogando com algumas dessas pessoas. Dialoga levando um rebuscamento que sem ele, essas pessoas não chegam, não vão, não acreditam, não caminham. Eu sempre torço para todos os irmãos de caminhada que a gente não se perca, não se iluda. As tentações do caminho são muitas. E a coisa mais bonita da caminhada é o entendimento de que todxs são peregrinos.

Dirigindo Brasil afora. Belo Horizonte Chapeco, Belo Horizonte Eunapolis me veio o entendimento de que o Evangelho só ganha sentido em movimento. Algumas passagens ganham outro sentido quando alguém na faixa contrária te pisca o farol, outro alguém na sua faixa te abre passagem, um alguém te fecha, outro alguém te ultrapassa e está tudo certo. Cada um segue o seu curso, sua viagem, seu destino, sua lenda pessoal como disse o bruxo. O Evangelho dialoga com um movimento que a esteticidade não compreende. É pensando em Jesus como peregrino, os apóstolos como peregrinos que alguns ensinamentos ganham um movimento de encaixe, compreensão.

Beto estava nos contando a sua lenda pessoal e trazendo para conta-la: “Igreja, Carisma e Poder” do Frei Beto. Trouxe Hegel aquele que a gente não leva pra lugar nenhum. Aquele que a gente sempre faz questão de esquecer, mas na caminhada ele nos chama. Pelo menos naqueles que desejam caminhar para fora dos dogmatismos, das polaridades contrárias. Quem deseja caminhar mais próximo da verdade leva não Hegel, ou Marx consigo e sim a dialética. Esse movimento que sabe da importância da contradição. Que compreende como que é a partir do outro, do contrário, da resistência, que se caminha. A imagem de Kant aludindo a ilusão do pássaro que acredita numa liberdade tão imensa e perfeita que poderia prescindir do ar, quando se sabe que é o ar, tanto o seu obstáculo quanto a sua condição de voo. Precisamos caminhar mais próximo a dialética e foi isso que Beto trouxe nos contextualizando Hegel e depois o simplificando para que ele coubesse na caminhada.

Beto dividiu a fala, a caminhada em etapas, mas não as anotei. Em parte isso parece estar no seu livro: “Todo Caminho é Sagrado”. Dialogando com o caminho e com a Filosofia, ele nos fala da dialética do Senhor x do Escravo. Do ser para si x ser para o outro.

Fala de uma das máximas do caminho: “Se tem põe, se não tem tira.” Falando das pessoas que comercializam produtos com essa lógica, com essa máxima, longe da lógica do lucro, da ganancia, do acumulo. É apenas o necessário para o hoje e amanhã Deus proverá. Não enquanto discurso vazio e sim enquanto fé de peregrino. Ninguém fica desamparado no meio da estrada. Todo peregrino se reconhece no outro e sacraliza os seus passos na honra e respeito de cada peregrino. Não tem sentido alguém no frio, com sede, com fome, porque não tem dinheiro, porque é de outra nacionalidade, tem outra religião, gosta de pessoas do mesmo sexo. Nada disso importa, interessa, não faz sentido.

Estamos vivendo em um mundo no qual pessoas programaram algoritmos para explorarem mais as visões polarizadas. A burrice do algoritmo é que ela reproduz a lógica tacanha, mesquinha, reduzida dos seus programadores. Pessoas que poderiam avançar para outros sistemas lógicos, que abandonassem o 3º excluído, que saíssem do maniqueísmo, que se abrissem às diferenças, ao inusitado, ao imponderável, ao novo, ao outro como extensão da gente mesmo. Que retomasse a lógica não binária de Jesus, ou de qualquer peregrino. Mas, estamos sendo estimulados a adentrar uma lógica de acumulo, de posse, de bolha, de nós contra eles. Todo outro é inimigo. Tudo que não é eu deve ser morto, exterminado, eliminado.

É importante aventarmos que há outras lógicas e possibilidades e a sua maneira e jeito, Beto está realizando junto aos seus.

 

26 DE OUTUBRO

08h00 – Instituto Sul Catarinense-Palestra Pe. Vander + diálogo Prof. Rosemiro

 

Professor Rosemiro dividiu a sua palestra em dois momentos: um- que ele chamou de VIDA INTERIOR e dois- que ele situou no campo do TRABALHO. As duas foram bastante ilustrativas, interativas.

Rosemiro nos fala da máxima de Protágoras que arregimenta boa parte da construção da FC, a lembrar: “O homem é a medida de todas as coisas.” E vai encaminhando uma fala que trabalha a FC como método. Um método que ele desdobra da Historicidade, passando para as bases categorias, estrutura de pensamento e submodos.

Um método que ele foi demonstrando como que nunca apresenta respostas prontas antes da colheita da historicidade. Sempre caminha com: “Depende. Não sei! Tem que ver na historicidade!” Um caminhar que se faz meticuloso, gradativo, processual e que Rosemiro foi nos envolvendo com perguntas sobre cada um deles, contando com a ajuda da plateia e dos professores nessas interações.   

Rosemiro pontuou muito a sua fala na construção intencional da própria história, focando na autoria existencial.

No segundo momento Rosemiro nos falou do Trabalho, da FC nas Empresas. Nos apresentou uma visão empresarial, um fazer empresarial da FC. Uma discussão na qual eles são pioneiros e toca pontos de profissionalização que contrasta com a visão mais messiânica que muitos tem da Filosofia e da FC. Acredito que podemos aprender mais, trocar mais quanto a isso.

 

        10h30 – Instituto Packter – Professora convidada Jandira Bordin

 

Jandira faz algumas pontuações em diálogo com falas anteriores, mas vou destacar o ponto que chamou muito a minha atenção.

Vou trazer um acontecimento que dialoga com a apresentação dela. Tive o prazer e a honra de estar na hora da apresentação sentado ao lado de um colega em formação, quando Jandira de Chapeco falava da sua trajetória epistemológica, existencial.

O colega em formação fez uma leitura linda, precisa, fabulosa do que a Jandira dizia, mas toda essa leitura que ele fez num esquematismo organizacional encaixotava tudo o que ela estava expressando. O colega não errou em suas considerações, pelo contrário, ele foi preciso. Se valeu do modelo organizacional para compreender o que estava sendo dito, porém o que estava sendo dito, estava além do modelo organizacional. Era ainda FC, mas uma FC que se aplicada metodologicamente como muitos defendem, alardeiam e acreditam (com razão) estaria mutilando a pessoa.

A problematização que irei enfatizar que cometeria a mutilação alicerçada no procedimento meticuloso, rigoroso, correto do método. Tudo estaria certo, mas tudo estaria completamente equivocado.

Jandira estava nos falando de matemática simbólica, transversalidades, sinonímias da vida dela. Estava mto, mais muito, mais muito, mais distante e além de um entendimento organizacional. Estava numa construção lexical que aproxima da poesia. Trazia leveza e desencaixes causais e temporais na sua articulação. Uma análise a partir de uma estruturação de raciocínio poderia concluir se tratar de desestruturações, de erros, de equívocos. Não obstante, estava tudo correto na relação dela com o mundo. Não tinha nada a ser curado, consertado, corrigido, mas para aceitar isso é fundamental outro olhar, outro paradigma. Mesmo o olhar da FC se utilizado num paradigma que vou denominar cartesiano tende a mutilar sensibilidades e interioridades e existencialidade das pessoas.

Para complexificar ainda mais, volto a defesa do colega e esclareço que o entendimento dele estava certo. O colega em formação não cometeu um equívoco na análise. Ele aplicou magistralmente tudo o que ele estava aprendendo e eu como professor digo que ele aprendeu bem. Mas, errava miseravelmente, como isso é possível?

Na física uma dimensão auxilia o entendimento mais elegante de determinadas leis. Kaluza-Klein ao matematizarem a 5ª dimensão afirmaram que a teoria da relatividade fica mais elegante. O eletromagnetismo e a própria relatividade funcionam bem na 4ª dimensão, mas a possibilidade de outra, auxilia muitíssimo no entendimento e percepção. O universo micro tem leis nas quais é possível derivar a mecânica newtoniana, não obstante, as observações dos fenômenos sobre a lente da mecânica quântica ficam mais elegantes.

Filosofia Clínica sem a mensuração das bases categoriais parece que fixa, rotula, classifica, observa o outro de maneira equivocada. Mais claramente, se a gente não conseguir localizar o outro existencialmente e aqui estou falando de uma localização autogênica (não que haja diferença) a gente perde a clínica. O discurso, a narrativa, a representação de mundo pode ser a mesma, se não localizarmos minimamente da onde esse outro nos fala, erramos.

Pensemos no assunto imediato/último de transtorno, depressão, bouderlaine que o partilhante esteja trazendo. Todos diagnosticados a partir de sintomas claros, objetivos, diretos que para as pessoas tendem ser até irrefutáveis, todavia em clínica a gente enraíza e singulariza descobrindo que os sintomas, podem ser sim a mesma coisa catalogada universalmente, mas pode ser outra.

Exemplificando mais, depressão em A é tristeza por uma perda. Em B é por culpa. Em C é pela perda da mãe. Em A é pela perda da cachorrinha. Em B está relacionado a categoria tempo. Em E a categoria lugar. Todos foram rigorosamente diagnosticados como depressivos. Mas, as alternativas, soluções ofertadas a um(a) são diferente das ofertadas a outra(o). Isso para nós é claro, no entanto se não situarmos esse outro existencialmente, nós caminhamos dez passos para cairmos no mesmo lugar. E, se for para ficar no mesmo lugar, talvez seja melhor pouparmos essa caminhada.

Isso para ressaltar que até na FC que traz um olhar muito avançado podemos incorrer em reducionismos como acusamos colegas de outras áreas de fazerem. Meu colega em formação iria pedir para a Jandira ir se tratar com um psiquiatra. Se ele fosse psiquiatra, ele a internaria. E, ali era uma outra coisa, uma outra ordem de sintomas, de causas, que ele não tinha olhar ainda para compreender. O modelo pelo qual ele olhava a questão enclausuraria a colega.

Como é possível ver para além do que vemos? Como é possível ver o mundo por outra representação? Como a gente altera paradigmas? Fico treinando, observando, dialogando, ensinando essas tentativas. Não é fácil. Minha atual insistência é que se não quebrarmos o paradigma cartesiano a gente não compreende a FC de Lúcio. A gente faz FC, mas não sei se a gente a compreende.

O T19 nos auxilia demais a buscarmos situar esse outro, mas em relação aos outros tópicos como a gente acolhe? É tranquilo perceber como uma singularidade existencial uma pessoa que levita, que tem ouvido absoluto, que ouve música nas cores, até aqui de modo geral vamos bem. Mas quando a pessoa tem comportamentos e funções que não entendemos? Tem emoções que não temos nome? Tem valores que não sabemos nem em qual escala a gente colocaria? Atualmente, para cada combinação dessas incompreensões temos um CID, um DSM, um rol de pecados, uma série de cancelamentos. E, está tudo certo também. Só precisamos tomar cuidado para ao ouvirmos algo diferente não colocarmos nossa lente teórica como sendo uma gaiola.

Há pessoas e elas são cada vez mais numerosas que nossos enquadramentos, por mais belos e acolhedores que sejam, não confortam, não comportam. Acabam por alijar voos, vidas, mentes, existências ricas, suaves, belas como Jandira nos contava numa aproximação poética (vice-conceito) com as borboletas da sua infância. Que ainda não passou e em alguns seres não passam nunca.

 

´  13:30 – Instituto Stefanuto de Filosofia Clínica

 

Jamil e Marlí fizeram uma apresentação que contou com a elegância conceitual habitual de ambos. Jamil aprofundou algumas falas, comentários, posicionamentos das apresentações anteriores. Se valendo de pequenos encartes alinhavaram a fala e construção da apresentação. Insisto e registro que somente o Instituto Sendkho e os colegas do México falaram do que estão produzindo em seus centros. Os demais deram aulas bonitas, contrapuseram visões e percepções da FC que parece ter incomodado, mas apresentaram pouco dos feitos realizados em seus centros. Deram belas aulas de FC.

Jamil e Marli exploraram vários dados de semiose: leitura, vídeo, música. Começando por um texto bonito e sensível de Rubem Alves “Complicada Arte de Ver” falando do despertar poético da visão. É um texto muito belo que invariavelmente usávamos no ensino médio para dialogarmos com o conceito de Thauma e uma definição de Merleau-Ponty de que “a verdadeira filosofia é reaprender olhar o mundo.” O casal do interior paulista nos trouxe o texto na voz da Marlí e nos comentários sensíveis e profundos de Jamil servindo como ponte para falar de representação de mundo, de beleza e encantamento também num diálogo aberto com as colocações de Jandira.

Em seguida, nos brindaram com um vídeo que fala da robotização, automação, IA e os impactos disso nas relações humanas. Um diálogo muito oportuno com a temática do Humanismo do encontro. Aprofundou essa temática apresentando questões, problemas.

Finalizaram explorando uma música, causo na voz de Rolando Bodrim- DOCE DE CIDRA. 

Num diálogo aberto conosco, Jamil foi nos percepcionando, produzindo deslocamentos, ativações da memória, tema tácito que o colega explorou nos seus apelos mais intimistas em oposição aos seus apelos mais mecânicos- celulares, Alexa e outros. 

Dos muitos ensinamentos deixados, transmitido ficou o exemplo de reciproca, que ele dá a partir da alegoria de Mia Couto sobre o macaco e o peixe. Na simplicidade e humildade dos exemplos, Jamil explora e ilustra sentidos profundos. 


Uma lição singela da necessidade de irmos ao mundo do outro e como que as vezes, com as melhores intenções de ajuda, podemos machucar. 

 ´  16h00 – Lúcio Packter -encerramento

Fomos a Nova Veneza. Uma cidadezinha super aconchegante, acolhedora próxima a Criciúma, que a turma curtiu muito. Cantaram, dançaram, beberam se divertiram na melhor identificação da FC. 
Foi praticamente um coroamento, um congraçamento. 

A noite fomos a um restaurante e no dia seguinte, os colegas que ficaram foram até o Morro dos Conventos. Lugar histórico para a FC. 

 

 


 



[1] Tive a honra e o prazer de receber o livro do amigo- PAX AETERNA: ensaio sobre o sujeito atômico. Um ensaio muito bom, trazendo discussões profundas, mas sobretudo um olhar muito interessante do eu cartesiano e do sujeito liberal de Locke. Duas perspectivas que se mesclam e sobrepõem a quem estamos sendo na contemporaneidade, ou pós modernidade. 

[2] Autor do livro Odisseia da Educação: a dura jornada para tornar o homem bom.  

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

É ASSIM QUE ACABA: Colocando fim para se chegar a novos inícios.

 

           

O filme tem muitos contornos, pontos de entrada e chaves de leitura. Eu vou explorar apenas dois: o amor e o abuso.

Ao abordar o amor e o abuso estarei discutindo o ciúme, a posse, a confiança, a entrega e a dificuldade de tudo isso nas relações sejam elas tóxicas ou não. De modo geral, renuncia-se muito do que se deseja, do que se é para estar em uma relação, para estar na sociedade. 

Hoje, mais cedo, sondava uma Moça Bonita sobre o ciúme. A sondava para que ela me trouxesse um pouco do olhar dela para a questão e sobretudo da leveza com que realizou o seu processo, a sua travessia do ciúme até o (si) acolher. Estabeleci o diálogo com ela tendo como pano de fundo  duas partilhantes que tenho a honra de atender. Uma que vivencia a pressão e a opressão que o ciúme coloca sobre ela mesma. Outrx que vivencia o poliamor e uma forma bem soltx de lidar com o outrx e as relações. 

Na prosa, Moça Bonita nos trouxe o ciúme como sendo aquilo no qual nos apegamos, nos prendemos, mas quase nunca é a coisa mesma. Tende a ser mais a representação de uma falta, de um buraco, de uma coisa, um verniz que camufla a coisa mesma.  Enfim...



“É ASSIM QUE ACABA” é um filme despretensioso, corajoso, sensível, que toca o ciclo e reprodução da violência nas direções e múltiplas camadas dxs abusadxs e dxs abusadorxs.

O filme consegue tocar as questões sem culpabilizar vítimas e/ou desumanizar abusadores. Sim, abusadores são humanos, alguns desenvolvem uma forma trágica, torpe de desumanizarem a outra pessoa para sentirem prazer, controle, poder. Mas, reputo importante tratarmos isso dentro da ordem do humano. Sem criarmos subterfúgios e alegações de estarem possuídos, de serem demoníacos; não- eles são humanos, demasiadamente humanos, parafraseando o filósofo. 

O filme de uma maneira muito sensível aponta para a complexidade do problema. 

E, qual é o problema?

O ciúme? A posse? O abuso? A ligação tóxica que esses vínculos estabelecem? Os padrões que são reproduzidos ‘anatematizadamente’ sem percepção dos envolvidos? Tudo isso junto? Afinal, qual é o problema? 

II

 

O filme apresenta como personagem principal uma jovem bela e sensível. Certo dia, essa jovem percebe um rapaz que vive em uma casa abandonada em frente à sua janela. Ele é colega de escola dela e senta algumas poltronas atrás no transporte escolar. Ao vê-lo revirando o lixo em busca de restos, ela, de forma quase despretensiosa, pega comida de sua própria casa, coloca em duas sacolas e as deixa onde ele possa pegar sem ser notada.

Na manhã seguinte, eles trocam algumas palavras, e a distância entre os assentos no ônibus começa a diminuir. A amizade entre eles se fortalece. O rapaz compartilha que sua mãe, vítima de violência doméstica, o expulsou de casa após ele tentar defendê-la. Em uma cena posterior, os dois conversam sobre as agressões que a mãe da jovem também sofria do pai. Eles se abraçam, e o vínculo entre eles aprofunda-se.

O tempo passa. Anos depois, a jovem, agora em Boston, está sentada em uma varanda quando escuta um homem chutando cadeiras. Ao perceber sua presença, ele se acalma. Eles conversam, flertam, quase se beijam, mas ele é chamado para uma cirurgia de emergência.

No denrolar do filme, ela se apaixona. Eles se apaixonam. Declaram que si amam. O cara é legal, interessante, apaixonável. (Não tem nada nele que o desabone, pelo contrário. É a parte de humanização dos personagens. Meio "Somos quem podemos ser!"). E, então quando ambos estão enamorados um pelo outro, ela reencontra o seu 1º amor. E aqui temos os primeiros volteios, que uso para trazer algumas digressões.

III

Tenho atendido um partilhante que vivencia o poliamor. Em uma das nossas conversas, ele mostrava como que todo o drama que a literatura, o cinema explora e se sustenta perde a densidade quando se tira a questão da monogamia, rsrsrs. Nunca tinha pensando na questão tendo a monogamia como foco, mas nunca deixei de pensar nestas questões no que tange a liberdade. Afinal: por que alguém não pode amar duas pessoas ao mesmo tempo? Por que pressionamos a pessoa para escolher apenas uma? Por que não podemos conviver com a possibilidade de a pessoa viver com os dois amores ao mesmo tempo? Por que temos que dar ao amor essa carga de tensão, sofrimento, dor e renúncia?

O filme não explora essa dimensão, nem carece. Aqui são devaneios filosóficos existenciais. No entanto, o filme explora com maestria os padrões de repetição de agressão, de violência, de desculpas, mas sobretudo de interrupção do padrão. E isso amplia a beleza do filme. Volto a ele.  

IV

O filme consegue tocar um tema muito sensível que é o da violência contra a mulher, mas aborda sem condenações e julgamentos. Aborda mostrando o horror e a paralisia da mulher que viu a cena acontecendo com a mãe e jurou que jamais permitiria que acontecesse com ela. Até ela se encontrar naquela situação. Qual situação?

Ela escolheu um cara amoroso, bonito, apaixonado, sincero. Como ela não viu? 

O cara a ama; a ama mesmo, de verdade, sem ilusão e sem mascara. Todavia, esse amor a agride, a machuca, a manipula, a diminui, a desencanta. E, por qual motivo, ela simplesmente não vai embora? Não sai fora? 

Simplesmente, pq isso não é claro e evidente quando estamos dentro. Quando estamos vivenciando. O diretor consegue nos manipular nessa distorção, ilusão do olhar da atriz e da manipulação do moço. Achamos que todas agressões de fato fora acidente. Somente o antigo namorado dela sabe o que está acontecendo, nos alerta, mas a gente o vê como um destemperado, por agredir o marido dela assim. Interpretamos como sendo uma cena de ciúmes, de rivalidade. Poderíamos colocar atenção ao pedido do marido a esposa: com qualquer um menos com ele! Mas, no contexto apresentado a frase também ganha a dimensão amorosa.  

As narrativas, os relatos diante de provas, evidências e acontecimentos ganham outros endereçamentos. Só sabemos o que acontece pela ótica dela e na ótica dela nenhuma agressão, violência está acontecendo. É a complexidade do existir que o filme adentra com muita elegância, com muita finesse, com muita sutileza na violência domestica. Uma violência que a vítima demora a perceber, compreender, nomear e mais tempo ainda para posicionar, procurar ajuda. E, mais tempo ainda para romper, separar, terminar. 

De modo que o diretor toca a questão com uma sutileza tão profunda que nos permite abordar o tema sem construir a visão do monstro. Possibilita ela olhar para o pai, um agressor e entender que o amou e o odiou. Possibilita ela olhar para mãe e pergunta-la, pq vc ficou com ele? E em mais uma verdade nua e crua, ela dar a resposta. Ela amava o pai dela e não tinha condições econômicas, financeiras, estruturais para romper. 

A resposta da mãe possibilita sobretudo, ela grávida, se afastar do marido agressor, ir aos poucos reestabelecendo contato, falar para a cunhada, sua melhor amiga o que estava vivenciando na relação e NINGUÉM sabia. Essa é a parte mais ferrada da agressão e ganha ares de toxidade.


A toxicidade não está na agressão física em si, porque essa é vista, percebida, pela própria pessoa. Fica registrada no corpo de delito. A perversidade vem quando o agressor convence a vítima de que não houve a agressão mesmo, ou que dói mais nele do que nela, ou que o que aconteceu, não está acontecendo, ela é louca, doida, está inventando, criando, fantasiando e isso sim é motivo para ela ser novamente agredida. É no ferrar o psicológico dx outrx que reside a crueldade da violência. E, estamos quase chegando ao problema. Mas, antes um outro mergulho. 

 

Uma cena impactante se dá no parto. A moça faz a maior homenagem que o agressor já recebeu na vida. Dá o nome da filha deles do irmão que ele matou em um disparo acidental na infância. É diante dessa emoção dupla, o nascimento e o nome da filha, que a personagem principal, consegue realizar um processo de compreensão, impossível até então. Uma compreensão que ela provoca, justamente após pedir o divórcio. 

O agressor tomado por uma emoção, com a filha nos braços, fala que vai protegê-la. Mas, é uma proteção raivosa, furiosa. Uma proteção mutiladora, castradora similar a que o pai dela fez com ela. Ela reconheceu a fala, o olhar. Ela não poderia permitir que isso perpetuasse. 

E a beleza do filme está em explorar essas reproduções sem desumanizar o outro. Sem re-criar padrões. Seguindo o estereótipo vinculado e utilizado o violento, o abusador deveria ser o cara que levava surra dos namorados da mãe, mas ele pelo contrário, faz de tudo para não ocupar esse lugar. 

O abusador vem de uma família na qual esse tipo de padrão não estava lá. De um cara que é apaixonado pela irmã 11 meses mais nova. Esse cara que nunca conseguiu estabelecer vinculo duradouro com nenhuma mulher. Vem do cara que não sabe o que fazer na possibilidade de perder a pessoa que ama. Aqui a trama nos leva a camadas e ligações insinuantes, interessantes, mas que não temos como saber sem investigar. Faço a ligação de forma tosca e superficial, embora parece evidente que o ciúme doentio do marido relaciona-se ao temor de perder o ser que ama tal qual aconteceu com a morte do seu irmão. Em algum lugar parece que houve uma sobreposição entre amor-perda que o transfigura, o remodela, desperta nele um lado que ele não conhecia, não  tinha e se manifesta nas pessoas que ele mais ama: a esposa e a filha. 

A filha recém nascida, a separação, o amor, cura a relação. Cura ambos. Horas de vida e a criança está promovendo um processo de cura em toda ancestralidade. A do pai que tendo tirado uma vida, concebe outra que honra a memória do seu irmão. A da mãe que consegue listar características positivas do pai e apresentar a neta, ainda que fosse na sepultura do pai. Consegue sobretudo levar o agressor a responder o que ele faria caso a filha se apaixonasse por um homem que a agredisse? 

 Ele responde que pediria distância, mas ele mentiu. Ele mataria o cara. Não teria nenhuma possibilidade fora da morte. Mas, então, pq ele fazia isso com a filha de alguém? 

Ele não consegue explicar, nem controlar, nem parar. Na ameaça da perda, ele agrediria, mataria. Na lógica do ciúme é melhor matar do que dividir. Mesmo porque a separação, a existência longe delx já é uma morte. 



É assim que acaba tem camadas de términos, de fins que são difíceis de lidarmos. Denotam tempos que não passam, que não terminam, que permanecem. 

Vários fins e reinícios brotam do filme, num ciclo natural, similar ao das plantas, ao da vida, ao dos jardins. 

A relação da personagem central com o garoto da casa abandonada parece que termina, mas tem reencontros, reviravoltas. O filme brinca com as situações nas quais parece que tudo está bem até que irrompe a percepção do inusitado, do que não temos controle. 

Um dia depois de uma transa, o pai da moça, os surpreendem na cama. Ele surra o garoto. Ele sai da casa dela na ambulância. Aparentemente nunca mais se veem. ACABOU? 

Não! Ela se muda para Boston, cidade natal do garoto espancado pelos namorados da mãe e agora espancado pelo pai da namorada. Um dia num terraço encontra aquele que se tornaria o seu primeiro marido. E, o casal numa visita da mãe a cidade jantam num restaurante cujo proprietário é justamente o ex namorado que nunca mais se viram. ACABOU? 

Aparentemente sim, mas ainda não é o fim.


Numa revista que escolhe os melhores points da cidade, o marido descobre que a tatuagem na parte do corpo da esposa que ele mais amava, era o símbolo de um carvalho que o namorado da juventude havia talhado para ela. A parte mais bela dela, era justamente a parte que ela tinha tatuado, esculpido o outro em si mesma. Como não odiar? Como não enfurecer? Ou revisitando: por que odiamos o amor? Por que nos enfurecemos em saber que alguém que amamos ama outrx? Nós precisamos sair desse paradoxo. Parece que essa raiva, essa negação, essa cegueira ao amor nos deixa menores, mais feios. Desperta o pior em cada um e de cada um. 

É tomado por uma fúria, um ódio, um ciúme o marido dela quase a estupra e ela apavorada corre, foge. Ela numa sobreposição fica paralisada. Relembra o pai fazendo o mesmo com a mãe também no sofá. Só que daquela feita, ela estava vendo a cena de fora, meio que por sobre ambos que se encontravam deitados. Dessa vez, ela estava deitada, impotente, sob um corpo raivoso, furioso, que só encontrava alívio para sua dor, agredindo. Infligindo dor a pessoa que ele mais ama. Ele a morde no lugar exato da tatuagem. Como querendo arrancar o outro de dentro dela. 


A insanidade da cena. É que ela ama os dois. Mas, essa divisão para o agressor era intolerável, insuportável. Era preferido matá-la a dividi-la. E, aqui respondemos diretamente ao problema. 

Nossa forma de amar é possessiva demais. E, é preciso um tônus de liberdade, autonomia para quebrarmos os padrões, ciclos, repetições de agressões, violências, abusos. É necessário flertarmos com a liberdade para que cada uma, cada um consiga se movimentar para longe da fúria possessiva do outrx. Precisamos ampliar a liberdade para acolhermos o amor. Construir outras relações nas quais o amor não fique restrito e reduzido a posse, ao medo, a perda, ao abandono. Amor pode estar mais perto da autonomia, da liberdade, da escolha, da vontade de ser e estar consigo, com outrx, com outrxs. 

A personagem central escolheu estar consigo mesma, com a filha, num ato de amor que traz a liberdade, a emancipação, as possibilidades como pano de fundo. 

Parece que é assim que acaba, mas ainda não é.

Acaba da forma mais linda e bela. Acaba com ela pegando a filha no braço, pedindo a separação, reconhecendo o amor que sente pelo agressor, reconhecendo que a filha é deles, mas sobretudo colocando fim a um ciclo de abusos, de violência, de agressões. 

O fim é um novo ciclo, uma nova poda, um novo recomeço. O fim é o surgimento de uma narrativa que para além de crucificar mocinhas e bandidos quebra o ciclo de repetições, padronizações. 

Se tornou quase filme obrigatório para pensarmos ciclos de violência sem revitimizar a pessoa.