quarta-feira, 3 de março de 2021

O GOSTO DO DESEJO.

 

Uma moça sedenta, dessas que sussurram enquanto fala, me contava sobre o gosto do desejo. Algo mais ou menos assim:

PRIMEIRO a salivação que antecede a mordida.

DEPOIS a explosão esfuziante e alegre da dentada,

Quase CONCOMITANTEMENTE a dentada advém o possível arrependimento de que o gosto imaginado tenda a ser melhor que o gosto degustado. A tensão de que o prazer do desejo ser maior do que o do ato. E essa reflexão acompanhar a próxima salivação- morder ou não morder? Poderia só lamber, mas de todos esses gostos, na concepção dela, nenhum se compara com a amargura de não ter provado o desejo, nem que seja para acariciar o arrependimento de ter ousado tanto.

A fala da moça é bela. A fala dela me remeteu a muitos mundos, a vários lugares e passeios. Fui até Eva e a imaginei diante da maça. Aos meus olhos todo desejo evoca uma maça. Toda tentação se veste de vermelho, usa salto alto, tem batom e um fogo inadiável. Um fogo a ser consumido para ontem. E nessas imagens saltam a mente como a tentação nos remete as mulheres, que nos remetem a sedução, que nos remetem a tentação, que nos liga ao pecado, que nos gera a culpa, o ressentimento e a castração de todo feminino. Acredito que esse caminho não seja uma exclusividade minha, tampouco uma marcação apenas dos homens.

Nada é tão feminino quanto o desejo. E nada é tão combatido, tão proibido quanto a mulher que QUER. A mulher disposta a provar do fruto proibido do querer, do não poder querer. Esse também é um obstáculo sempre presente, por vezes e muitas vezes as mulheres podem querer, há uma licença para isso. Um passaporte e um salvo conduto. O intrigante, o chocante é quando as mulheres desafiam o que elas não podem querer, por exemplo: a igualdade. Não só a igualdade de gênero, mas a igualdade subjetiva do desejo. Não somente o desejo do papel social, profissional. O desejo do desejar subjetivo. Daqueles campos, lugares, espaços que sempre estiveram destinados aos homens, aos heteros, aos brancos, aos que professam a religião oficial do Estado.

As mulheres que adentram esse espaço subjetivo, que os subvertem, nós as admiramos e as amaldiçoamos. Paga-se por elas, fortunas, mas as expulsamos de casa. Nunca encontramos o equilíbrio entre essa mulher que é desejo, que é querer, que queremos, mas não queremos. As desejamos, mas não como filhas, esposas, mães.

Todo machismo, todo patriarcalismo é essa busca de domínio do desejo da mulher, da fêmea. É a tentativa trôpega, sofrível de converter o desejo da mulher para um único foco, lugar- seu marido, seus filhos, sua casa, seu lar.

E aquelas que desejam desejar nós as queimamos. As que desejam para além dos limites do seu corpo, nós apedrejamos. E a questão toda é: os desejos cabem no mundo? Até quando vamos tratar os desejos como sujos? Impuros? Pecaminosos?

 


Recordo de uma falando-me da sensação de ser tocada por um primo mais velho. De outra que falava da sensação de poder ao seduzir um homem mais jovem. De outra falando do seu estado de gravidez e da plenitude da sua barriga. Da outra contando do transbordamento de ser devorada por dois homens ao mesmo tempo. Da outra falando da liberdade em trair o marido e a culpa de voltar para casa, porque ele é um homem bom. Em todas a boca enchia de água, mas o coração se afogava em culpa. Uma culpa que não existe no desejo masculino. A não ser quando adentra a esfera do ser tocado por outro homem. Esse talvez seja o único desejo com misto de vergonha que homens heteros sintam. Matar mulheres não causa. Debochar e espancar homo e trans também não causa. Somente ser descoberto que transou com uma trans, que transou com outro homem. Roubar, matar, corromper, ser corrompido, nenhuma vergonha, quiçá culpa.

Por outro enfoque, mas a mesma moeda. Vejo as pessoas trabalhando o feminino. Inúmeros e belos trabalhos sobre o liberar o feminino (que necessitamos demais), porém que feminino é esse que estamos libertando? Ouvindo os relatos tanto dos trabalhos ‘místicos’ quanto dos trabalhos políticos e relacionados a militância, a minha questão é: como estão acolhendo o gosto que chega a boca e provoca salivação? Como estão lidando com os olhares que devoram?


E aqui é o paradoxo, a maioria está lidando de forma altamente masculina. No caso, significa, mercantilizada, fetichizada no que tange a transformar o outro em mero objeto desse desejo. Em acreditar que o poder econômico dá conta de saciá-lo, de satisfazê-lo. Uma lógica altamente masculinizada de pagar por. De acreditar que por se estar pagando tem o controle, o domínio, o desejo do outro. E se tem algo nessa história toda incorruptível é o desejo.

 

O que eu espero, sonho e desejo é que sejamos capazes de fazer o movimento que Eva fez- chamar Adão para provarem juntos da maça. Mas, não aceitar após a dentada, nenhuma reprimenda pela mordida. E Adão diante dos amigos, dos parças, do Pai, afirme: comemos juntos e nos deliciamos. Querem experimentar também?


Talvez, essa seja a parceria que todos tem buscado e se frustrado ao não encontrar. Observando relacionamentos, por incrível que possa parecer, os casais mais afinados são aqueles nos quais os desejos de ambos são acolhidos. Os desejos de ambos são colocados a mesa e nenhum fica privado de desejar. Há uma aceitação nesse gosto que pode ou não ser feito em conjunto. A clareza dessa fala é libertadora para a relação.

 

Cada casal precisa criar seu próprio jardim. É só assim que qualquer lugar da Terra será paraíso. Ao que tudo indica, inferno é o lugar no qual escondemos nossos desejos e eles nos devoram de dentro pra fora. Vai devorando tudo até queimar, matar, agredir negros, mulheres, gays, trans. Tudo o que é diferente de nós, tudo o que encontra um prazer que nos privamos de sentir.

Qual é o gosto do seu desejo?