sábado, 30 de maio de 2020

NOSSAS PANDEMIAS SÃO OUTRAS


A pandemia trouxe muitas coisas, muitas questões e cada um de nós, na medida de suas possibilidades, está se conectando com formas possíveis de ajudar, auxiliar. A minha tem sido com a escrita, com os atendimentos, até mesmo a gravação de áudios que tenho disponibilizado a algumas pessoas e comecei a subir com alguns. E, agora a trazer para cá também. São formas de tentar auxiliar. De tentar ajudar a minha maneira. 


Num desses diálogos, 14/4/2020, Brother apareceu. Brother é um amigo que flertamos desde 2001/02. O conheci na Cidade dos Meninos e de lá para cá realizamos trabalhos conjuntos. Ele veio nos passar uma visão de como estava, seria a chegada do vírus na periferia. Foi esse o recado, o salve, que ele nos deixa no áudio que disponibilizo ao final do texto. 



Ele chegava nas reuniões sem dar nome, nos dizia que quando encarnado, ninguém nunca se importou, ligou, quis saber o nome dele quando vivo, depois de morto, isso não fazia o menor sentido. Dizia que ele é qualquer jovem da periferia, qualquer jovem preto assassinado, traficando, estudando. Ele é Pedro, João, Alexandre, Gutemberg, Maria, Verônica, ele é qualquer um. 


Um amigo do teatro, familirializado com a quebrada, o batizou de Brother. E esse virou o nome que lhe denominamos. Poderia ser X, ou sem nome. Mas, ele é essa voz do rap, dos que tem muito a dizer, mas o preconceito, o racismo, a indiferença silenciam. 


No dia 14/4/2020, ele veio nos falar da Pandemia numa perspectiva e num lugar que parte do pessoal que flerto não chega, não acessa. E é essa a nossa parceria: “ eu te levo onde você não pode chegar. Vc me leva onde eu não poderia entrar!” 


É assim que trabalhamos há quase duas décadas. Escutem, pensem, questionem, enfim...


domingo, 17 de maio de 2020

Pandemia, Surto, Realidade: quando a ficha cai.





Hoje (19/4/2020) vi esse post falando das fichas caindo e fora a nostalgia, algumas caíram na minha caixola também.

Ontem (domingo) teve carreata pelo Brasil afora. Essas duas coisas me deram um estalo sobre algo que tenho escrito, falado, tentado escrever, mas sempre acontece algo e não posto. Passaram quase um mês e estou a volta aqui com esse texto de novo. Nesse intervalo de um mês tudo o que disse daqui para baixo se intensificou. A realidade vai se esvanecendo diante de nossos olhos.  



O que eu gostei no vídeo foi a hipótese de que nada, depois da Pandemia voltara a ser como antes. Excetuo a escola. A escola não muda, ela permanece a mesma, a de sempre. A escola guarda um lugar da tradição, que acaba por ser a incubadora do conservadorismo. Esse é um momento para que nós, educadores pensemos sobre qual humanidade desejamos? Que humanos queremos formar? Essas respostas ainda não temos, brigam em nós uma dualidade entre saúde e economia que era desnecessária. Ainda não nos vemos como pertencentes a uma teia, a um sistema. 

Mas, um mês depois, vendo as aulas digitais ampliando, talvez a escola mude. Mudar a escola significa alterar uma rede de aprendizagem, de sentido cujos efeitos são quase imediatos. Talvez essa mudança será o movimento de uma transformação. Vou me deter um pouco mais aqui porque é emblemático.

Se a escola avança, a sociedade caminha, mas quem impede os avanços da sociedade? Os conservadores. Estes desejam um mundo, um lugar de permanência, de constância, de estabilidade. Não sei se encontraremos. Esse momento é tão diferente, ou apresenta uma dialética tão esdrúxula que vanguardistas acabam guardando lugar de conservadores. Conservadores ganham o lugar de vanguardistas. Pensemos no caso de pais enlouquecidos com seus filhos em casa, ressignificando o papel de professores e da escola, mais daqueles do que desta. Na reflexão que eles fazem, eles trazem um lugar de avanço, de movimento. Por outro lado, as dificuldades enfrentadas por inúmeros professorxs sobre a criação de aulas virtuais, os colocam numa posição tradicionalista, que uma boa parte, nunca teve. Vejo colegas, inovadores, fazendo críticas severas (com razão) a essa forma e modalidade de ensino. No entanto, não deixa de ser curioso e sintomático desses lugares que vão se deslocando.

No Brasil que se tornou o palco desse pandemônio, temos um governo de extrema direita, realizando a maior distribuição de renda da nossa história. E, eles veem nessa prática uma vergonha, um ato comunista, socialista, que eles estão fazendo de tudo para dificultar. Por outro lado, a esquerda tem apoiado com grande ênfase medidas de restrição as liberdades individuais. Muitas bem mais próximas de uma liberdade econômica do que civil, todavia nos tornamos (esquerda) apoiadores de um Estado de restrição.
O mundo está de pernas para o ar. A movimentação do mundo desloca as pessoas para posições que eram contrárias, dias antes. 


Mas, o ponto que eu desejo colocar atenção é sobre as pessoas que protestam pedindo a retomada do comércio. Na verdade, elas desejam um mundo que não existe mais. Defendem um mundo que elas recusam a aceitar que mudou. Negam cada vez mais insistentemente, com menos argumentos críveis a factualidade da existência. E são esses idílios, essas imagens mentais, que várias teorias e sistemas conseguem dialogar, mas que farei uso da Astrologia. 


Saturno é o senhor da realidade. Apresenta a vida como ela é. Saturno gruda nosso olhar em um objetivo, mensura cada buraco do caminho, detalha cada efeito da poeira na sua longa subida ao cume da montanha. Quando entramos no ciclo de Saturno (2017 a 2052) pensei numa crueza explícita, numa realidade sem subterfúgios. Vários astrólogos apontaram o conservadorismo, o tradicionalismo, até mesmo o nacionalismo e a saudade nostálgica de tempos de chumbo. Tudo isso estava no radar, nas análises, nas interpretações. Porém, estamos diante do Saturno mais netunado do universo. O mais correto é: surtado, porque é plutônico. Temos uma conjunção Saturno, Plutão, Júpiter em Capricórnio, que ninguém acreditava que seria fácil, mas acho que ninguém viu que seria tão Punk. Entramos em um surto coletivo. Mas, como Saturno pode causar surto?

Creio que não causa. Saturno nos leva em direção ao osso, ao cerne, ao tutano, vai rasgar a carne até chegar na dor e vai dizer: "sem choro, aguenta firme que é melhor". Mas, isso não causa grito, lágrimas nos olhos. Saturno sabe o que fazer e como faz. O surto poderia ser atribuído a Plutão, mas o deus da invisibilidade, dos mundos infernais, apenas explode seus conteúdos mais profundos e segue a marcha. Estamos falando de uma combinação que nos leva ao encontro com a realidade, mas de repente, o real não está fora, a subjetividade ganha tutano e é projetada no outro, no mundo, ao redor, em toda parte. Para onde se olha se busca, se nega. O mundo vira um barril de pólvora. Todos prestes a explodir. Cada um vendo a realidade que se forjou, que dá conta de olhar, que consegue interpretar. O real sumiu.
 

Eu custei a entender surto e claro que não entendi. Custei ainda mais a identificar um e ainda não o reconheço. Então, faço uso do conceito num sentido mais senso comum, sem as implicações psicológicas que o conceito encerra e mereceria, mesmo porque demoraria mais dois meses para postar. Olhando em volta, observando as falas, os dizeres, os posicionamentos, estamos em surto coletivo, irrompendo aspectos internos, coletivos, transpessoais avassaladores. O corona daqui a pouco tende a ser o menor dos problemas. 


O corona só ativou devaneios, insensibilidades, utopias, crueldades que possuíamos. Ele mesmo, o vírus mesmo, continua invisível como o elmo de Plutão. A marca fundamental do surto é que ele se vincula ao real. E não  estou falando só do povo da carreata. Estou falando tbm do povo em isolamento. Cada um de nós em nossa realidade acreditando.... acreditando? No que acreditamos?
A invisibilidade do vírus escancarou uma realidade, uma concretude mundial, gigantesca, que pode ser sintetizada pelo colapso da economia e do sistema de saúde. De repente, tivemos que olhar para essa lógicas e as suas contradições. 


Eu acordei na segunda feira (20/4) pronto pra dar voadora. Escrevi. E, quando ia escrevendo, via e lembrava dos desdobramentos da noite anterior. Não tinha como dar voadora. Nossa burrice, nossa estultice, nossa cretinice estava alojada no fundo do nosso ser. Falávamos, agíamos como éramos, quase sem filtro, numa linha direta entre o mundo objetivo e o subjetivo. De repente, somos aquilo que somos. Sem nenhum anteparo. Sem nenhum subterfúgio. Espelhamos, dizemos, falamos, agimos conforme somos. E, o mais incrível: como julgar? Como condenar? Em mim aflorou duas coisas: a primeira a pedagógica, a didática, preciso falar mais disso. A segunda, quem falou que eu não estou surtado também? De onde busco esteio para sustentar a minha realidade? A minha cosmovisão? 

Virei Kelsinnho paz e amor. Ali estava claro que a realidade tinha desaparecido. Nós não temos nada fixo, sólido, concreto para fixar o olhar. Ia cobrar o que e de quem? 
Criticar quem pelo que? Uns olham a nuvem e veem mamadeira de piroca. Outros afirmam que não é mamadeira é pênis chinês que deseja inseminar o comunismo, outros veem Asthar Sheran, outras o Messias, seja ele Jesus ou bolsonaro, tudo igual. O que estamos vendo, não é mais o fato, a coisa. Vemos apenas o que colocamos lá. Interpretamos pela ótica de quem somos, sem nenhum anteparo, filtro entre o nosso olhar e a nossa forma de ser. Uma se torna a outra. 

E, sem lidarmos com subjetividades atropelaremos o outro, ou seremos destruídos por narrativas selvagens e desumanas. 

O vírus que poderia ser uma visão de realidade, da sanidade, da reparação de um sentido; é o apocalipse que eclode e destampona o mais inusitado, sombrio/luminoso em nós. E eu que acreditava que Saturno-Plutão ia nos dar uma epifania da realidade na qual veríamos as coisas como elas são. Estamos lançado num pandemônio no qual luta-se para que tudo permaneça sendo o mesmo.  

Outro efeito estranho é que a conjunção nos deu foi uma epidemia da imaginação. Aquele desterro poético que nos lançamos anos antes, perseguindo artistas, falando de escola sem partido, de repente volta sem filtro, sem metáfora. Tudo é literal e a mente não sabe distinguir o que é simbólico, o que é onírico, o que é metáfora. Tudo é realidade. Uma realidade dramática, trágica, obtusa. Revelando a falta que ocasiona um mundo sem arte, sem reflexão filosófica. 

Nesse mundo de desencanto a imaginação coloniza e desterra a vida. Passa-se a ver em aulas panfletagem comunista, doutrinação, aliciamento sexual. A literatura vira devassidão, o cinema afronta, os artistas plásticos inimigos de Cristo. Nesse compasso apropriam-se da Bíblia, fazem da palavra sagrada sepulcro idolatra de falsos messias. Adversários políticos, ideológicos devem ser fuzilados, mandados para o paredão. Uns são vistos como gados, outros como equinos, mas em todos permanecem a desqualificação do outro como humano. Estou ouvindo alguns colegas falando das coisas, juntando os fatos, relacionando uma as outras, explicando a realidade e acabo relevando porque é um misto estranho entre a literalidade concreta com a imaginação delirante. 


São construções sensacionais fossem ficção, fossem cinema, literatura. Como chaves de explicação e entendimento da realidade são pós-verdades perigosas, que estilhaçam ainda mais o espectro do real. O mais inusitado é que a maioria deles nunca se interessou por política, enquanto ela era desenvolvida no baixo nível que nos é habitual. O interesse deles veio quando trouxeram o ódio, os sentimentos mais perversos, as relações mais grotescas. Foi quase isso que os puxam para o engajamento, o submundo do submundo. E são esses aspectos plutônicos que vemos em disputa. 


Talvez o lance seja esse, observar, silenciosamente, observar. Já que surtado é sempre o outro. Surtado é aquele que não percebe aquilo que não vemos. Perdemos as interpretações. Matamos as narrativas oníricas, poeticas, artísticas. O que sobra, ou o que vira é o deserto, o desterro. As certezas absolutas. Precisamos de arte, de filosofia.