Uma moça sedenta, dessas
que sussurram enquanto fala, me contava sobre o gosto do desejo. Algo mais ou
menos assim:
PRIMEIRO a salivação que
antecede a mordida.
DEPOIS a explosão esfuziante
e alegre da dentada,
Quase CONCOMITANTEMENTE a
dentada advém o possível arrependimento de que o gosto imaginado tenda a ser
melhor que o gosto degustado. A tensão de que o prazer do desejo ser maior do
que o do ato. E essa reflexão acompanhar a próxima salivação- morder ou não
morder? Poderia só lamber, mas de todos esses gostos, na concepção dela, nenhum
se compara com a amargura de não ter provado o desejo, nem que seja para
acariciar o arrependimento de ter ousado tanto.
A fala da moça é bela. A fala dela me remeteu a muitos mundos, a vários lugares e passeios. Fui até Eva e a imaginei diante da maça. Aos meus olhos todo desejo evoca uma maça. Toda tentação se veste de vermelho, usa salto alto, tem batom e um fogo inadiável. Um fogo a ser consumido para ontem. E nessas imagens saltam a mente como a tentação nos remete as mulheres, que nos remetem a sedução, que nos remetem a tentação, que nos liga ao pecado, que nos gera a culpa, o ressentimento e a castração de todo feminino. Acredito que esse caminho não seja uma exclusividade minha, tampouco uma marcação apenas dos homens.
Nada é tão feminino quanto o desejo. E nada é tão combatido, tão proibido quanto a mulher que QUER. A mulher disposta a provar do fruto proibido do querer, do não poder querer. Esse também é um obstáculo sempre presente, por vezes e muitas vezes as mulheres podem querer, há uma licença para isso. Um passaporte e um salvo conduto. O intrigante, o chocante é quando as mulheres desafiam o que elas não podem querer, por exemplo: a igualdade. Não só a igualdade de gênero, mas a igualdade subjetiva do desejo. Não somente o desejo do papel social, profissional. O desejo do desejar subjetivo. Daqueles campos, lugares, espaços que sempre estiveram destinados aos homens, aos heteros, aos brancos, aos que professam a religião oficial do Estado.
As mulheres que adentram esse espaço subjetivo, que os subvertem, nós as admiramos e as amaldiçoamos. Paga-se por elas, fortunas, mas as expulsamos de casa. Nunca encontramos o equilíbrio entre essa mulher que é desejo, que é querer, que queremos, mas não queremos. As desejamos, mas não como filhas, esposas, mães.
Todo machismo, todo
patriarcalismo é essa busca de domínio do desejo da mulher, da fêmea. É a
tentativa trôpega, sofrível de converter o desejo da mulher para um único foco,
lugar- seu marido, seus filhos, sua casa, seu lar.
E aquelas que desejam
desejar nós as queimamos. As que desejam para além dos limites do seu corpo,
nós apedrejamos. E a questão toda é: os desejos cabem no mundo? Até quando
vamos tratar os desejos como sujos? Impuros? Pecaminosos?
Recordo de uma falando-me da sensação de ser tocada por um primo mais velho. De outra que falava da
sensação de poder ao seduzir um homem mais jovem. De outra falando do seu
estado de gravidez e da plenitude da sua barriga. Da outra contando do
transbordamento de ser devorada por dois homens ao mesmo tempo. Da outra
falando da liberdade em trair o marido e a culpa de voltar para casa, porque
ele é um homem bom. Em todas a boca enchia de água, mas o coração se afogava em
culpa. Uma culpa que não existe no desejo masculino. A não ser quando adentra a
esfera do ser tocado por outro homem. Esse talvez seja o único desejo com misto
de vergonha que homens heteros sintam. Matar mulheres não causa. Debochar e
espancar homo e trans também não causa. Somente ser descoberto que transou com
uma trans, que transou com outro homem. Roubar, matar, corromper, ser
corrompido, nenhuma vergonha, quiçá culpa.
Por outro enfoque, mas a
mesma moeda. Vejo as pessoas trabalhando o feminino. Inúmeros e belos trabalhos
sobre o liberar o feminino (que necessitamos demais), porém que feminino é esse
que estamos libertando? Ouvindo os relatos tanto dos trabalhos ‘místicos’
quanto dos trabalhos políticos e relacionados a militância, a minha questão é:
como estão acolhendo o gosto que chega a boca e provoca salivação? Como estão
lidando com os olhares que devoram?
E aqui é o paradoxo, a
maioria está lidando de forma altamente masculina. No caso, significa,
mercantilizada, fetichizada no que tange a transformar o outro em mero objeto
desse desejo. Em acreditar que o poder econômico dá conta de saciá-lo, de
satisfazê-lo. Uma lógica altamente masculinizada de pagar por. De acreditar que
por se estar pagando tem o controle, o domínio, o desejo do outro. E se tem
algo nessa história toda incorruptível é o desejo.
O que eu espero, sonho e
desejo é que sejamos capazes de fazer o movimento que Eva fez- chamar Adão para
provarem juntos da maça. Mas, não aceitar após a dentada, nenhuma reprimenda pela
mordida. E Adão diante dos amigos, dos parças, do Pai, afirme: comemos juntos e
nos deliciamos. Querem experimentar também?
Cada casal precisa criar
seu próprio jardim. É só assim que qualquer lugar da Terra será paraíso. Ao que
tudo indica, inferno é o lugar no qual escondemos nossos desejos e eles nos
devoram de dentro pra fora. Vai devorando tudo até queimar, matar, agredir
negros, mulheres, gays, trans. Tudo o que é diferente de nós, tudo o que
encontra um prazer que nos privamos de sentir.
Qual é o gosto do seu
desejo?
Nenhum comentário:
Postar um comentário