quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Suicídio: a vida e o absurdo.

Ao meu Unbermensch, minha superação, pela coragem com que defende e ampara aqueles que amam. Eu te amo cada vez mais.

Ela não encontra razão na vida, mas como encontrar? O estupro dilacerou sua confiança, seu corpo, seus sonhos e em tenra idade.

A outra sai de casa com as lágrimas nos olhos, com o choro da alma até chegar na escola. Ao chegar, procura os lugares mais inacessíveis e sobe. Todos a pedem para descer. Nos olhos dela, eu vejo o desejo de se jogar; quando ela desce, nós falamos da tristeza. A mãe disse que se ela não fosse filha dela a jogaria no lixo. Tento relevar, mas a ferida já esta aberta. E a forma que a menina encontrou para dar conta é se equilibrar. Diz ela que é bom, faz bem. Fico pensando quando é que a vontade de pular será mais forte do que a do equilíbrio?!

A outra encontra em Deus seu sentido, mas está numa fase da vida cujo fogo da carne queima mais do que o do Senhor. Nesse momento, mesmo que seja por alguns instantes, Deus e a vida perdem o sentido, porque junto ao desejo pelo corpo do amado, vem a imagem do abuso e da violência recebida no passado. A dor parece ser dupla.

A outra chega todos os dias na escola com uma blusa de frio que esconde os cortes desenhados na pele. Segundo ela e tantos outros que fazem o mesmo, a dor dos cortes não se compara com as dores que sentem n’alma. Se cortar é um alívio.



A pergunta que me ocorre é que dor é essa? Independente do nome, estamos diante de suicidas potenciais. Todas elas poderiam ser uma única pessoa, mas são várias. Elas são aquelas que buscam um sentido na vida, mas esse sentido não é que seja difícil de encontrar, é insuportável tolerar. A vida tem nelas, neles um peso que massacra, que afunda, que deprime, que dilacera. É um peso que daremos o nome de absurdo e esse peso tem uma fome, um espaço, que o chamaremos de angústia.

Assim, por vezes, para lidarem com esse vazio, esse absurdo, eles se cortam, eles buscam alívios para uma dor na alma que não conhecemos, mas a dor existe, está lá, chagada.
Por que não vemos? Por que não acudimos?

II

Os cortes físicos, as dores invisíveis me fazem lembrar Iessienin, o jovem poeta russo, que ao cortar os pulsos escreve seu último poema a sangue nos quartos do hotel. Maiakowiski, meu poeta fabuloso, após as centenas de homenagens ao jovem poeta, se pergunta: se as tintas acabaram e agora era necessário escrever com sangue? A resposta vem anos mais tarde, quando num outro quarto de hotel, longe da gelada e aconchegante mãe Rússia, o fabuloso se mata com um tiro no peito.

Sim, todo suicida brinca com o drama, com a tragédia. Para eles não importa somente a morte, o se matar, e, sim, a forma com que serão lembrados, não serão esquecidos. O desejo é mais a dramaticidade, a esteticidade, como um desejo de embalar a dor nos braços das vicissitudes.

Mas, fora o fato deu ser dramático, trágico, escrevo sobre o suicídio, porque muitas pessoas têm me procurado, falando que isso lhes tem passado pela cabeça. É estranho o suicídio passar pela cabeça e não pelo coração, mas ao que indica, ele passa é pela cabeça. Uns pensam em se cortar, vagarosamente, até todo o sangue do corpo se esvair; outros pensam em se jogar de pontes, outros em entrar na frente de carros, outros de deixarem a moto se chocar com o muro, como se fosse acidente, outros acreditam que serão mortos por uma pessoa que as ama. Fico vendo esse movimento nas mais diversas idades e o que há em comum em todos é um abandono, uma rejeição, uma violação, um abuso- sexual ou não. Há uma orfandade não preenchida, há uma dor não suturada, há um grito inaudível até para elas/eles, como um choro constante, ininterrupto, incessante que distraí com alguma coisa, mas muitas vezes volta mais forte, resoluto e firme. Há um desejo de se matar, mas matar o que?


III

A idéia do suicídio me perturba, não em me matar, nada disso, mas o que leva uma pessoa a isso? Como ela chega a esse ato? Parece que há etapas, fases, caminhos. O suicídio longe de ser um ato isolado como vemos, um sinal de desespero como taxamos, ele é uma construção. O suicídio é construído paralelamente a significação da existência. Num jargão da Física, o suicídio é a anti-matéria da vida. Por que não vemos?
Não vemos, porque a maioria dos seres são indiferentes tanto a vida quanto a morte. A maioria não nasceu, conseqüentemente, não irá morrer. A morte e a vida lhes são indiferentes. Um amigo espiritual os chama de abortados.

Outra parte significativa opta pela vida e a significa. E a significa não porque não convivem com os abortos, não porque não tenham tido e recebido o peso do absurdo, mas é que focam mais na vida do que na ‘anti-matéria’. Ao que parece, o campo gravitacional dos suicidas é mais denso, a força que os oprime e os dilacera é maior. Em certa medida, eles já passaram o umbral da indiferença, mas ainda não chegaram a alcançar o sentido. Esses são os suicidas em potenciais. O que me leva a pensar o suicido como processo, fase.

IV

Nélson Rodrigues via nos suicidas os juízes do mundo. Nesse tempo, eu os via como seres incompreendidos. As razões para o suicídio nesse momento estavam para mim na inadequação deles ao mundo, ou seja, era um ato do corpo mental. Uma solidão, um vazio existencial que não lhes davam alternativas senão o fim. Eram seres incompreendidos que encontravam no fim uma forma de descanso, paz. Hoje, acredito que essa sentença que lançam ao mundo é tardia, parece ser a última fase.
Tive por vezes a concepção do suicida como um chantagista emocional. Um cara que premedita todos os atos, elabora o efeito psíquico que causará nas pessoas que ficam, sendo tudo nele premeditado até mesmo como o corpo vai ser encontrado e por quem. Essa premeditação chantagista existe de fato, mas dentro do processo é uma forma de se fazer visto, visível, perceptível, melhor, o que se quer mostrar não é o ser e sim a dor que o ronda, o invade, o toma, se apodera dele de todas as formas.

Hoje parece que tudo isso é um processo, um desenvolvimento, que inicia na falta de sentido, o que os existencialistas denominam de ABSURDO e culmina na ANGÚSTIA, esse estado de morte que ronda todo ser vivente, mas que em alguns a boca dela é muito maior.




A boca é quase a de uma jibóia que dá um abraço forte, moendo todos os ossos, todos os sonhos, todas as esperanças, todos os fins. Quando a pessoa acha que acabou, ela ainda moe o fim do fim, até chegar ao fim do término. Muitos desistiram bem antes. Relutaram, mas não foram vistos; de “repente” são engolidos, como a baleia engole Jonas. Abrigados na própria angústia, embalados pelo próprio absurdo deveriam ser capazes de encontrar o sentido, mas... qual?


Queria estar exagerando, mas não estou. Há pessoas que só encontraram dor, crueldade, frieza na vida. Não conhecem outras construções que não sejam essas. As que encontram um gesto de carinho, um ato de amor encontram força para significar a vida num alto grau de empatia, mesmo porque conhecem como poucos as dores do outro. Estou falando de muitos religiosos, policiais, psicólogos, professores, que conseguiram significar sua vida, por terem sido acolhidos e agora acolhem com um envolvimento de jibóia.  

Hoje, aos meus olhos, o suicídio é a parte visível de uma dor lancinante, devoradora, silenciosa, invisível que vai tomando a pessoa dia-a-dia até culminar no ato final. Nesse aspecto, o suicida é de novo o julgador do mundo. Afinal, como não vimos que o outro tem toda essa dor na alma? Como não oferecemos cuidado a esse outro que se encontra mutilado ao nosso redor?

V

Mesmo sendo da mística, não acredito em um sentido dado, em um sentido único. Acredito num sentido construído, numa significação que damos à existência. Nesse aspecto o sentido é cada um significar a sua vida, mas a vida parece em teimar em nos mostrar que o sentido, dado, construído ou encontrado, nunca se faz na solidão, o sentido se dá no encontro com o outro. É no outro que o sentido se plenifica. É no outro que o significado ganha plenitude e é também na falta e na ausência desse outro que o sentido desbota.



Por isso que a todas essas pessoas, conhecidas ou não, próximas ou não, é fundante mostrarmos outras formas de contato e convívio que não seja a das dores, da violência. É importante sermos capazes de mostrarmos que há outros encontros que não o da violação, do abuso, da violência, do desrespeito, da diminuição, da sabotagem, da injúria, enfim da maldade. Muito embora, a experiência tem me mostrado que mesmo nos valendo de outra força que não essas citadas acima, muitas delas transformarão nossos atos em medo da vida; temerão as carícias no corpo e na alma como se fossem tapas; acreditarão que todas as primeiras, segundas e terceiras intenções das pessoas sejam machucar, por mais que tenham aprendido o cuidado com o outro. Não nos resta alternativa senão convivermos com elas, mostrando o que a vida tem de melhor, de mais puro, de mais integro, de mais belo. Talvez esteja falando de amor e tolerância, paciência.

Um amor tão forte, que a sua suavidade segura a existência de um ser na vida, dá a ela condições de caminhar pela vida. Uma presença tão suave que da força para as pessoas resistirem a sensação de solidão. As vezes para se evitar que uma pessoa se mate basta apenas isso. Pelo mesmo lado, as vezes não há nada para se evitar, o peso do absurdo e a fome devoradora da angústia são maiores, muito maior e pode parecer bizarro, o amor chegou tarde.

VI


No aspecto espiritual penso no slogan da década de 1990 da Federação Espírita de Uberaba: “não se mate, você não morre.” Talvez, essa seja uma das formas de transcendência que podemos ofertar a essas pessoas e a nós mesmos. Conhecermos nosso aspecto energético longe dos preconceitos e prejuízos morais que acompanham a escolha mais profunda de todo ser vivente: viver ou se matar? Podemos nos matar? Podemos dar fim a nossa própria vida? Todo existencialismo, todo absurdo, toda angústia, todo niilismo, toda plenificação e sentido repousa nessa escolha, seja ela qual for- viver ou se matar?

Aqui é o início da Filosofia, não enquanto conceitos, mas enquanto problema real e concreto- a finitude da vida. Podemos dar fim a nossa? Se não, cadê nossa escolha? Se sim, por qual razão? Acredito hoje, agora, que encontraremos nosso sentido apenas quando lidarmos com a angústia do fim. É por trás dele (fim) que nasce as condições de novos términos e muitos outros inícios. É nesse mergulhar que conseguimos dissipar as indecisões.

Por esse molde a pergunta que tenho feito e estendo a aqueles que pensam no ato é: o que você deseja de fato matar? O que você de fato você quer que morra? Creio que essa resposta nos direciona ao sentimento de mudar a vida, de viver mais, de sair de um relacionamento estafante, de um trabalho estressante, de uma condição de vida que por vezes não temos como mudar, ou a cabeça pensa não ter.

Vida é mudança e parte da dor, ou toda ela é ficar resistindo ao mudar, é ficar tentando de todas as formas encaixar a mudança dentro da nossa conformidade e adequação. Aceitar o desafio da vida eis... o sentido. Como diz, o poeta fabuloso:

Nesta vida/morrer não é difícil./O difícil/ é a vida e seu ofício.

Maiakowiski.



quarta-feira, 17 de setembro de 2014

PELÉ NAS TEIAS DA IDENTIDADE: o caso Aranha


Uma ex-namorada costumava dizer, relembrando a frase de um ex namorado dela, pertencente ao movimento negro, que “preto é lápis de cor”.

Pelé não é preto, não é macaco, não é negro, não é Príncipe Etíope. Pelé é o anti-negro. Pelé se construiu, se afirmou, negando sua negritude, mas dessa vez, ele foi longe demais. Rechaçar Aranha foi ardiloso como uma teia de mentira e cretinice. Uma rede de ilusões de quem não se conhece, ou melhor, não se reconhece. Pelé recorda a frase de Nélson que dizia que o brasileiro é um narcisista as avessas, cospe na própria imagem, seguindo a lógica da frase, Pelé é o negro as avessas, cospe na própria identidade. 

I
A construção da identidade não é fácil para ninguém, requer espelhos, exemplos, perspectivas, objetivos, mas também expectativas, carinho, confiança e base. Se isso é difícil para todos, para nós negros tem componentes fortes que dificultam essa construção. 

Na minha infância não tinha Racionais. Esses caras ensinaram e ensinam a construção da identidade e identificação negra. São importantes. Na escola que estudei da 1ª a 4ª série estudavam três negros- Vander, Meu irmão e eu. Vander era o melhor aluno da escola; meu irmão estava entre os dez, eu entre os últimos. Ser negro era difícil, inclusive pela situação econômica dos meus colegas, cujos pais eram classe média alta, exceção a nós três citados, ou mais uns dez, no máximo em toda escola.



Situo isso, porque Pelé podia ser negro e tornar a construção da nossa identidade mais suave, menos densa. Fosse ele negro e seria mais tranquilo para mim e milhares de outros negros a construção da nossa identidade. Olharíamos para frente e para cima e teríamos a quem mirar, visualizar. Para não perder o momento desabafo, Mussum que todos amam, adoram, era para mim motivo de vergonha. Não o homem que não conheci e nada sei, mas o personagem: bêbado, tolo, ingênuo, motivo de chacota semanal, de fracasso permanente e constante. No domingo, eu já antevia as 'brincadeiras' racistas da segunda. "Racistas"? Para muitos não era, não é, talvez não seja. Em nosso país, a classificação é de injuria racial e não de discriminação racial. Existe isso no Brasil?

II



Aqui é o ponto. Não creio que a moça destemperada seja de fato racista. Não creio que o negro que xinga Aranha de macaco seja racista. E é esse o nosso racismo. Para nós o crime racial é brincadeira inofensiva. Para nós a injúria racial é chilique de preto que não quer ser considerado objeto (lápis de cor) e dá o seu grito, mostrando-se humano. Por todas essas vias o racismo no nosso país é diferente, perverso. Nunca encontraremos um racista, mas nunca deixamos de ser. O racismo esta em todo lugar, mas não esta em lugar nenhum. O racismo é tido como ressentimento e recalque de negros que não gostam de si mesmos. 

Tal percepção partir de brancos é natural, compreensível, eles não estão na nossa pele. Mas, tal insinuação ser realizada pelo negro mais conhecido do mundo, pelo cara que conseguiu ser mais conhecido que os Beatles, por um dos poucos, senão único jogador cuja história é maior do que a do clube que jogou é um ato de covardia que supera até mesmo a omissão histórica dele. 

A cretinice de Pelé se superou. Foi além do combinado, do negociado, nem os neonazistas esperavam uma adesão tão voluntária como a dada por ele. Suponho que se Pelé encontrasse com Aranha na Vila Belmiro o expulsaria a pontapés e chibatadas como um capitão do mato tomado de vergonha, por ter visto um dos seus 'negrinhos' se rebelando contra os açoites morais que era alvo. 

Mas, suponho que os personagens do mal gosto não sejam de fato racistas, a pergunta que não quer calar é: o que precisaria para sê-lo? Pendurar negros em árvores? Esbofetear Aranha na cara? O que precisa ser feito para aceitarmos e reconhecermos que somos racistas. Brancos, negros, pobres, ricos, Estado brasileiro, somos racistas num nível tão perverso que achamos que discriminação não é violência, é brincadeira. E essa brincadeira não é apenas contra negros, é também contra mulheres, homossexuais. No Brasil a discriminação contra as minorias é quando muito, injúria. O IPEA mostra dados estarrecedores de que nosso racismo é um apartheid institucional, ainda assim, nós colocamos contrários as ações afirmativas, que buscam não reparação histórica, mas condições de igualdade. 

III

Por tudo isso, ser negro era, continua sendo uma afirmação contra o mundo, porque volto a insistir, não havia negros para se mirar. Nélson Rodrigues dizia que o único negro do Brasil era Abdias Nascimento. Vim a conhecer ambos já na faculdade, com a identidade negra consolidada. 




Mas, escrevo para falar que Pelé é definitivamente o anti-negro. Nunca houve um personagem que sentisse tanta raiva da sua etnia quanto Pelé. O discurso dele por décadas reforça o imaginário e a concretude do racismo institucional, genético, social do nosso país seja tratado como problema econômico. 

As declarações anteriores de Pelé era a de que ele nunca tinha sofrido racismo. Nunca!! Ele poderia mentir ao menos em solidariedade aos pais dele, mas ele ajudou em cada discurso, em cada omissão a promover o mito, não da democracia racial, mas a da discriminação social-econômica. A questão do negro é muito mais do que ter ou não dinheiro. E, o fato é: mesmo tendo dinheiro não se tem espaço, acessibilidade. 

O que Pelé fez com Aranha, fez de novo com a luta contra o racismo, foi pior do que queimar a casa da garota que grita de forma transtornada injúrias e despropérios.  Pelé age como um capitão do mato; açoitou Aranha em praça pública. Fez mais do que açoitar, mostrou que Aranha está errado em não se permitir, em não aceitar ser confundido com macaco. Pelé quis colocar Aranha no lugar dele, no lugar no qual Pelé nunca saiu: naquele que precisa da aprovação e do consentimento dos brancos para se afirmar. Ou melhor, não consegue se ver como negro, por ter estado muito tempo na Casa Grande. Malcon X gostava de lembrar que havia uma diferença espectral. Os negros da casa grande admiravam seus senhores, já os escravos da senzala os odiavam. Pelé sempre foi da Casa Grande, por isso tão anti-negro, por isso tão branco, por isso tão aceito.  

Pelé é menos negro do que Michael Jackson, porque esse se declarava negro, mesmo clareando a pele. Pele não tem pele, nem consciência. Pelé no que se refere a consciência racial, não é nem lápis de cor; mas não o culpemos muito, ele também não teve referências para construir e consolidar a sua identidade. 

Eu que comecei a escrita desse post bravo com Pelé termino quase que condoído com uma constatação: Pelé é assim tão miserável, porque ele não teve nem ao menos um anti-negro como ele se tornou para firmar nossa identidade, ainda que pela negação. 

Pelé não teve nem o anti-negro para afirmar sua identidade, negando-se. Nesse sentido Pelé nos serve de contra-exemplo. Pele é a pele da omissão e dos covardes.