quarta-feira, 17 de setembro de 2014

PELÉ NAS TEIAS DA IDENTIDADE: o caso Aranha


Uma ex-namorada costumava dizer, relembrando a frase de um ex namorado dela, pertencente ao movimento negro, que “preto é lápis de cor”.

Pelé não é preto, não é macaco, não é negro, não é Príncipe Etíope. Pelé é o anti-negro. Pelé se construiu, se afirmou, negando sua negritude, mas dessa vez, ele foi longe demais. Rechaçar Aranha foi ardiloso como uma teia de mentira e cretinice. Uma rede de ilusões de quem não se conhece, ou melhor, não se reconhece. Pelé recorda a frase de Nélson que dizia que o brasileiro é um narcisista as avessas, cospe na própria imagem, seguindo a lógica da frase, Pelé é o negro as avessas, cospe na própria identidade. 

I
A construção da identidade não é fácil para ninguém, requer espelhos, exemplos, perspectivas, objetivos, mas também expectativas, carinho, confiança e base. Se isso é difícil para todos, para nós negros tem componentes fortes que dificultam essa construção. 

Na minha infância não tinha Racionais. Esses caras ensinaram e ensinam a construção da identidade e identificação negra. São importantes. Na escola que estudei da 1ª a 4ª série estudavam três negros- Vander, Meu irmão e eu. Vander era o melhor aluno da escola; meu irmão estava entre os dez, eu entre os últimos. Ser negro era difícil, inclusive pela situação econômica dos meus colegas, cujos pais eram classe média alta, exceção a nós três citados, ou mais uns dez, no máximo em toda escola.



Situo isso, porque Pelé podia ser negro e tornar a construção da nossa identidade mais suave, menos densa. Fosse ele negro e seria mais tranquilo para mim e milhares de outros negros a construção da nossa identidade. Olharíamos para frente e para cima e teríamos a quem mirar, visualizar. Para não perder o momento desabafo, Mussum que todos amam, adoram, era para mim motivo de vergonha. Não o homem que não conheci e nada sei, mas o personagem: bêbado, tolo, ingênuo, motivo de chacota semanal, de fracasso permanente e constante. No domingo, eu já antevia as 'brincadeiras' racistas da segunda. "Racistas"? Para muitos não era, não é, talvez não seja. Em nosso país, a classificação é de injuria racial e não de discriminação racial. Existe isso no Brasil?

II



Aqui é o ponto. Não creio que a moça destemperada seja de fato racista. Não creio que o negro que xinga Aranha de macaco seja racista. E é esse o nosso racismo. Para nós o crime racial é brincadeira inofensiva. Para nós a injúria racial é chilique de preto que não quer ser considerado objeto (lápis de cor) e dá o seu grito, mostrando-se humano. Por todas essas vias o racismo no nosso país é diferente, perverso. Nunca encontraremos um racista, mas nunca deixamos de ser. O racismo esta em todo lugar, mas não esta em lugar nenhum. O racismo é tido como ressentimento e recalque de negros que não gostam de si mesmos. 

Tal percepção partir de brancos é natural, compreensível, eles não estão na nossa pele. Mas, tal insinuação ser realizada pelo negro mais conhecido do mundo, pelo cara que conseguiu ser mais conhecido que os Beatles, por um dos poucos, senão único jogador cuja história é maior do que a do clube que jogou é um ato de covardia que supera até mesmo a omissão histórica dele. 

A cretinice de Pelé se superou. Foi além do combinado, do negociado, nem os neonazistas esperavam uma adesão tão voluntária como a dada por ele. Suponho que se Pelé encontrasse com Aranha na Vila Belmiro o expulsaria a pontapés e chibatadas como um capitão do mato tomado de vergonha, por ter visto um dos seus 'negrinhos' se rebelando contra os açoites morais que era alvo. 

Mas, suponho que os personagens do mal gosto não sejam de fato racistas, a pergunta que não quer calar é: o que precisaria para sê-lo? Pendurar negros em árvores? Esbofetear Aranha na cara? O que precisa ser feito para aceitarmos e reconhecermos que somos racistas. Brancos, negros, pobres, ricos, Estado brasileiro, somos racistas num nível tão perverso que achamos que discriminação não é violência, é brincadeira. E essa brincadeira não é apenas contra negros, é também contra mulheres, homossexuais. No Brasil a discriminação contra as minorias é quando muito, injúria. O IPEA mostra dados estarrecedores de que nosso racismo é um apartheid institucional, ainda assim, nós colocamos contrários as ações afirmativas, que buscam não reparação histórica, mas condições de igualdade. 

III

Por tudo isso, ser negro era, continua sendo uma afirmação contra o mundo, porque volto a insistir, não havia negros para se mirar. Nélson Rodrigues dizia que o único negro do Brasil era Abdias Nascimento. Vim a conhecer ambos já na faculdade, com a identidade negra consolidada. 




Mas, escrevo para falar que Pelé é definitivamente o anti-negro. Nunca houve um personagem que sentisse tanta raiva da sua etnia quanto Pelé. O discurso dele por décadas reforça o imaginário e a concretude do racismo institucional, genético, social do nosso país seja tratado como problema econômico. 

As declarações anteriores de Pelé era a de que ele nunca tinha sofrido racismo. Nunca!! Ele poderia mentir ao menos em solidariedade aos pais dele, mas ele ajudou em cada discurso, em cada omissão a promover o mito, não da democracia racial, mas a da discriminação social-econômica. A questão do negro é muito mais do que ter ou não dinheiro. E, o fato é: mesmo tendo dinheiro não se tem espaço, acessibilidade. 

O que Pelé fez com Aranha, fez de novo com a luta contra o racismo, foi pior do que queimar a casa da garota que grita de forma transtornada injúrias e despropérios.  Pelé age como um capitão do mato; açoitou Aranha em praça pública. Fez mais do que açoitar, mostrou que Aranha está errado em não se permitir, em não aceitar ser confundido com macaco. Pelé quis colocar Aranha no lugar dele, no lugar no qual Pelé nunca saiu: naquele que precisa da aprovação e do consentimento dos brancos para se afirmar. Ou melhor, não consegue se ver como negro, por ter estado muito tempo na Casa Grande. Malcon X gostava de lembrar que havia uma diferença espectral. Os negros da casa grande admiravam seus senhores, já os escravos da senzala os odiavam. Pelé sempre foi da Casa Grande, por isso tão anti-negro, por isso tão branco, por isso tão aceito.  

Pelé é menos negro do que Michael Jackson, porque esse se declarava negro, mesmo clareando a pele. Pele não tem pele, nem consciência. Pelé no que se refere a consciência racial, não é nem lápis de cor; mas não o culpemos muito, ele também não teve referências para construir e consolidar a sua identidade. 

Eu que comecei a escrita desse post bravo com Pelé termino quase que condoído com uma constatação: Pelé é assim tão miserável, porque ele não teve nem ao menos um anti-negro como ele se tornou para firmar nossa identidade, ainda que pela negação. 

Pelé não teve nem o anti-negro para afirmar sua identidade, negando-se. Nesse sentido Pelé nos serve de contra-exemplo. Pele é a pele da omissão e dos covardes. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário