sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

QUALIFICANDO INTERCESSÃO.

por Ana Cristina e Kélsen André. (Professores do IMFIC, respectivamente Polo São João Del Rey e Belo Horizonte).


Ainda tenho palavras para entregar
elas brotam da dor e se fazem adultas
Talvez a loucura tenha arrancado ouvidos
olhos e tudo o que tinha pra me sentir
Meu desespero é a brisa que você respira
nas manhãs em que não toma seu café.
Raphaela Ramos

O conceito de interseção amplamente utilizado em Filosofia Clínica foi inspirado na matemática de Georg Cantor e significa, entre outras coisas, a relação que se estabelece entre filósofo clínico e partilhante. Estudando essa teoria dos conjuntos Packter as define como: interseção positiva, aquela que subjetivamente provoca um bem estar entre os envolvidos; interseção negativa, aquela que subjetivamente é ruim, provoca um mal estar entre ambos; interseção confusa como aquela que hora é positiva e hora é negativa e por último a interseção indefinida ou indeterminada, ou seja, aqui as pessoas envolvidas não conseguem definir como sendo nenhuma das outras acima. Essas intercessões nos acompanham nas nossas relações, coloquemos ou não atenção nelas.



Em torno desse estudo um questionamento surgiu em sala de aula, sobre o que fazer para qualificar uma interseção? Existem regras? Jogos de linguagem? Qual o caminho a seguir para se conquistar uma interseção positiva? Ou ainda, haveria algum risco, entre a relação, partilhante e filósofo clínico, de produzir um tipo de intercessão que desqualificaria o trabalho clínico como advogam muitos psicanalistas? Acreditamos que embora seja questões bem colocadas, parte significativa delas serão respondida mediante as vivências e estudos de cada um. O que não nos impede de refletirmos sobre o assunto.
Em clínica, a interseção é tudo. Ela não está determinada entre as partes envolvidas, ela é construída. No consultório poderíamos dizer que ela começa pelo partilhante, pois esse é quem escolhe seu terapeuta e essa escolha é feita, em alguns casos, pelas aproximações que esse de longe já consegue observar ou pelo seu contrário.




Não somente as palavras orientam uma interseção, mas também, os gestos, expressões, olhares, atenção. Tudo pode ser muito significativo nesse momento. Como diz Packter, a interseção seria a soma de empatia, sintonia, harmonia, amizade, interesse mútuo em proveito de uma causa.


Criando um lugar seguro, o partilhante pode sentir-se mais tranquilo para compartilhar sua história, suas questões, suas dúvidas e sua dor. A experiência nos leva a uma conclusão, a de que não vamos resolver os problemas de todo mundo. Não podemos tudo e quando conseguimos algo, é em cumplicidade com o outro. É pela permissão que o outro nos dá para visitar seu universo existencial. 

Qualificar intercessão para milhares de pessoas é um ato de força de vontade, baseada na boa ação de se desejar uma melhora das relações, sem muitos meios e ferramentas para tal empreitada. Já para estudiosos da Filosofia Clínica além de ser: um olhar-se, ato reflexivo de observar a si mesmo e refletir sobre ações, pensamentos, modos e temperamentos é também um tentar construir uma nova forma de interação; ou seja, a interseção. E nessa descoberta, imersa em caminhos, métodos, abordagens, teorias e percepções, vamos qualificando nossas intercessões com os modos e submodos que temos disponíveis.



Chamamos de modos a forma habitual, muitas vezes irrefletida, que disponibilizamos para solucionar nossas demandas mentais, emocionais, sem a ajuda de um terapeuta e sem uma metodologia formal. Por exemplo, o jovem que emburra e embrutece todas as vezes que é retirado do seu Playstation para fazer o dever de casa ou algo para seus pais. Esse comportamento ocasiona um desgaste na relação que os pais tentam solucionar, ora não interrompendo o filho em suas atividades, ora o paparicando dando a ele uma recompensa. O primeiro ato acaba por aborrecer o pai e o segundo acaba por aborrecer a mãe. No entanto, caso essa mãe se torne uma estudante de Filosofia Clínica, ela pode vir a compreender o comportamento do filho, dela mesma e do marido em outro nível e para solucionar esse impasse utilizaria de alguns submodos, esteticidade bruta, por exemplo, para qualificar essa intercessão. Outro submodo a ser aplicado poderia ser a recíproca de inversão.  Segundo Packter:

{...} Aqui o movimento parte em direção ao outro, ao sujeito com quem estamos em Interseção no presente e no ato.  A pessoa abandona, subjetivamente, e na medida em que lhe é possível, seu próprio mundo existencial e passa a conjecturar as coisas do ponto de existência da outra pessoa; é evidente que por mais que eu me afaste de meu mundo existencial e me aproxime do mundo existencial de outra pessoa, de modo algum conseguirei ter a mesma concepção daquela pessoa a propósito das coisas que são percepcionadas por ela {...}.” (Packter, Caderno I. p. 14)

Em ambas aplicações houve a necessidade de um duplo movimento. Primeiro se conhecer, segundo e quase que concomitante re-conhecer os outros que perfazem suas intercessões. De posse de esse saber, ela tem a escolha de continuar e permanecer nas reações ou aplicar uma metodologia clara, embasada na Estrutura de Pensamento-EP de cada um dos envolvidos. A esse uso intencional e circunstanciado estamos chamando de submodos.
A partir disso não deixa de ser curioso nos perguntarmos: como e por que temos intercessões positivas com umas pessoas e negativas com outras? Por que temos intercessões indefinidas e indeterminadas em algumas circunstâncias? Longe de ser uma resposta final e categórica é bom destacar que cumprimos vários papeis existenciais e alguns desses papéis podem entrar em conflito com outros que vivenciamos, implicando nas mais diversas intercessões. 



Sabemos que a Filosofia Clínica não nos permite rótulos, um fixar absoluto, perene e ontológico do sujeito. O mundo como representação possibilita ao estudante de filosofia clínica dizer apenas como vemos o outro e não necessariamente como ele é. E essa limitação, que em alguns termos se reduz: “no mundo como um assim para mim”, não me faculta uma universalização totalizadora dessa representação, não nos permite arroubos universais, já que as 1- circunstâncias, assim como a 2- singularidade, têm um papel determinante nessa compreensão.

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As circunstâncias pelos motivos que estamos desejando explicitar, a saber: uma pessoa pode ter um papel existencial agradável como pai, irmão e amigo e exercer um papel existencial autoritário e negativo como chefe, patrão ou marido. Supondo que o filho ou a esposa deste lhe seja vizinho nas duas circunstâncias, terá dele duas representações. No entanto, nenhuma delas faculta acusá-lo de bipolar ou estigmatizá-lo com características similares por comportamentos diversos em situações diferentes. Pelo contrário, essa não rotulação amplia a liberdade dos indivíduos e permite ao filósofo clínico uma maior abertura, maior tolerância, cumplicidade e respeito à diversidade e idiossincrasias do outro. Esse é um componente que não pode ser perdido de vista. E nesse conjunto abordamos a singularidade.

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A singularidade é um conceito importante para nos situar em nossas intercessões, chamando nossa atenção para como nossos traços, nossas peculiaridades se inter-relacionam quando adentram e intersecionam com a singularidade do outro, esse não eu. Por falar nisso, como estão sendo as suas intercessões?

Voltando para o espaço da sala de aula, retomamos uma pergunta inicial ainda deixada em aberto: existiria em Filosofia Clínica o mito do Psicanalista? Ou seja, a intercessão partilhante-filósofo clínico seria marcada ou demarcada pelos mesmos limites ou limites similares as do psicanalista-paciente? Para abordar essa temática, nesse nuance recorremos a um conceito de Paul Feyerabend denominado Incomensurabilidade. Basicamente, o conceito tenta sedimentar a impossibilidade de se reduzir ou até mesmo, algumas vezes elucidar, uma área na outra. É com esse cuidado que prosseguimos.


Seja na Psicanálise Ortodoxa ou não, é tido como fundamental se estabelecer o Mito do Psicanalista. Esse mito relaciona-se com a necessidade terapêutica de se produzir um distanciamento do paciente. Sendo que nessa lacuna aconteceria a transferência e uma possível e relativa contratransferência demandando todo um material recalcado e inconscientizado que viria à tona. Esse material se faria vital na avaliação psíquica do analisado, por estar relacionado com as questões primárias da sua psique. Por todo esse conjunto de coisas e relações, acredita-se que o estreitamento de laços acarretaria numa mistura, numa confusão que mitologicamente inviabilizaria o paciente de tomar consciência das suas questões e do psicanalista lhe ajudar nesses e outros pontos. Em essência é similar ao que estamos apontando como diferença entre modos e submodos, disso resultando, no caso da Psicanálise, demarcação de que psicanalista e paciente não se relacionam fora do espaço clínico.

Sendo mais claro, o psicanalista temendo uma perda de referencial por parte do analisado, faz o máximo para não perder o controle desse espaço, que nessa visada, significa o controle terapêutico. De modo que o psicanalista, praticamente não se ‘abre’ para além do espaço demarcado, tudo isso sob a suspeição (para muitos mais do que suspeição é algo empírico e comprovado) que havendo misturas de papéis ou outros espaços de intercessão, de vizinhança, acaba o aspecto terapêutico; o analisado abandona o tratamento. 

Essa é uma condição, que pelo menos num primeiro momento, é impensada em Filosofia Clínica já que tacitamente, a partilha inicia com o aval claro de que o partilhante é alguém que poderia ser amigo do filósofo clínico.  De modo que a partilha se faz numa intercessão na qual a amizade e junto dela alguns desdobramentos como confiança, cumplicidade, intimidade para falar de três qualidades mais marcantes e não necessariamente interdependentes numa partilha. 


As intercessões são muitas e em cada uma delas o filósofo clínico pode avançar em direção ao outro sem temer se perder ou perder o processo terapêutico.
Percebemos então que a intercessão filosófica clínica é quase uma quebra deste mito. A Filosofia Clínica inicia-se dessa lacuna, desse não lugar, dessa rusga, desse medo do encontro, desse desejo tácito do abraço que não pode ser dado devido a um rótulo ou a um papel existencial importantíssimo, mas que não deveria ser maior do que a acolhida de outro ser humano. Fazemos uso da citação de Lúcio para ilustrar, embora ressaltemos que o contexto pensado por Lúcio não era necessariamente o que expomos aqui:

Onde Freud sentenciou que a Psicanálise parasse, na psicose, é onde muitas vezes iniciará a Filosofia Clínica. Nosso endereço existencial será dado na trajetória que percorrermos com quem partilhamos os espaços da vida.” (Packter, in: Filosofia Ciência & Vida Especial, 4, em entrevista concedida).


Como vimos o conceito de singularidade não nos permite respostas precisas. Uma melhor compreensão do tema pode ser vislumbrada pelo compartilhar de experiências, autenticando as reflexões acima, trazemos para a conversa algumas de nossas vivências ocorridas no I Diálogo Nacional de Filosofia Clínica, em Poços de Caldas, no ano de 2016.




Ir a um evento da Filosofia Clínica é sempre enriquecedor. Novos personagens surgem, compartilhando novos conhecimentos, novos conceitos e abordagens terapêuticas vão se desnudando pelo caminho.
Foram momentos marcantes que transitaram desde a oportunidade de rever velhos amigos como o de conhecer novos colegas. Podemos dizer que o balanço desse encontro foi positivo, assim como as interseções que começaram a ser qualificadas a partir daquelas horas.

Diante de velhos conhecidos uma experiência acontece. Vivendo circunstâncias diferentes do passado, percebe-se que a interseção ainda não definida, pode se confirmar, de fato, como positiva. A oportunidade de conviver com as mesmas pessoas, a de descobrir afinidades profissionais em novos contextos, pode aumentar o nível de empatia pelo outro.


A falta de conhecimento em relação à expressividade do outro pode proporcionar um transitar de uma interseção positiva a negativa e vice versa. Como o outro se mostra pode afrontar a EP dos sujeitos envolvidos. A presença, o olhar, o vestir, o falar daquele que entra nas minhas relações é um fator importante. Diante do outro transitamos pelas sensações: cheiros, toques, sons que de alguma forma influenciam nossa EP, levando-nos a uma aproximação como ao distanciamento. Assim, com o auxílio de submodos e um olhar atendo a singularidade podemos amenizar esse mal estar.

Outro caminho que se mostrou foi a busca comum entre os envolvidos. O conhecimento é o que cito nesse momento.  Entre colegas de profissão e de estudos em Filosofia e Filosofia Clínica essa busca só contribuiu para fortalecer as relações. Entre brincadeiras e boas piadas, muito conhecimento foi compartilhado. Cada um, a sua maneira, contribuiu para essa interseção. Troca de experiências, dúvidas sobre o trabalho com a Filosofia Clínica, curiosidade e desejo de aprender, esses foram alguns dos fatores determinantes.


Não só a convivência é um lugar para se construir as interseções, mas também, as redes sociais, a continuidade dos estudos e conversas continuam pelo facebook, whatsapp. Essas e outras ferramentas virtuais, em alguns casos, pode ser o caminho mais seguro para se manter uma interseção positiva, a presença do outro poderia levá-la para qualquer uma das outras três.

Sendo assim, em Poços de Caldas, no encontro de professores, alunos, amantes da Filosofia Clínica várias intercessões foram realizadas e nos mais variados lugares: na sala de aula, no café, no restaurante, no bar, no carro. Em cada um deles o nível de abertura aprofundava e sedimentava, revelando que o contato humano se faz e se aprofunda na confiança, na acolhida. E esse é um ponto em comum entre nós amantes da Filosofia Clínica - a acolhida.

Aprender isso é sem dúvida um fator primordial para o estabelecimento de intercessões positivas. Com Leonardo que vim a conhecer na Espanha e Ana Cristina em Poços de Caldas isso não faltou, na verdade, sobrou e transbordou. Foi uma honra e um prazer imenso como escrever esse artigo a quatro mãos e poucos devaneios.


REFERÊNCIA
TAVANO, Silvana. Freud explica: dez mitos da psicanálise. Extraído do livro “Psicanálise em Perguntas e Respostas – Verdades, Mitos e Tabus”, de David E. Zimerman, Editora Artmed, 320 págs., R$ 64. Disponível em: . Acesso em: 3 jan. 2017.
ANDRADE DA SILVA, Marcio José; HACK, Olga . Filosofia Clínica e Cinema: uma compreensão teórica através de filmes . Campinas: Lince Gráfica e Editora, 2014. 232 p
PACKTER, Lúcio. Cadernos de Filosofia Clínica. Porto Alegre. 1997.
LAPLANCHE, J. PONTALIS, J B Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes. 1967 6ª ed- tradução Pedro Tamen. 707p

PIERON, Henri. Dicionário de Psicologia. Porto Alegre: Editora Globo. 1978, 6ª ed. Tradução Dora de Barros Cullinan. 533p