terça-feira, 23 de maio de 2017

TRÊS DIMENSÕES DE SILÊNCIO


Resultado de imagem para silencio
Para falar do silêncio eu deveria não escrever; simplesmente, deixar que as paginas em branco, ou até as imagens espelhassem aquilo que o silêncio encerra. Mas, a linguagem essa feiticeira nos seduz, nos ilude e nos acreditar que somos capazes de apreender a coisa só porque ela nomeou, ela disse. E é com essa ousadia e estultície que vou escrever sobre o silêncio. Minhas primeiras palavras é que eu queria escrever objetivamente, como uma linha reta que atinge o outro ponto no mesmo instante que o visualiza, mas a minha escrita é curva, obliqua, foge, escamoteia, só se diz depois de ter percorrido longos caminhos e vistos muitas paisagens e muitas vezes os leitores com sede, com fome, não entendem mais para onde estão indo... Vou lembrá-los (caminhamos para o silêncio, mesmo que pelo caminho vou apontando paisagens, panoramas) então tenham paciência e vamos juntos.

O tema de nossa reunião desse mês foi silêncio e a grande discussão, como não poderia deixar de ser diferente, nasceu de uma inquietude de uma colega que não conseguia silenciar-se e de uma indagação da linda que amo, que nos pergunta: o que é o silêncio?




Essa é o tipo de pergunta que se responde com cocegas e beijo na boca. Responde-se a uma pergunta dessa olhando admirado, fixamente, até explodir de encanto por conhecer quem pensa essas coisas diferentes. Mas, já dialoguei com essa pergunta, falei dos erros interpretativos, falei do zen budismo, falei da plasticidade da natureza, falei de João Gilberto, agora eu vou falar de como foi nossa reunião no 2º sábado do mês.



Às quatro da manhã Somater me ‘acorda’ e me passa o roteiro da reunião, iriamos trabalhar com três níveis de silêncio. Um primeiro relativo ao Grande mistério, a grande noite. Um segundo relativo à Grande Mãe e ao útero. Um terceiro interno- nosso. Gostei das ideias, das relações, fui preencher o dia com minhas falas existenciais e às 18:00/18:30 iniciamos a nossa reunião. Estiveram presentes duas lindas mulheres e cinco homens.

Assim, demos início. Respirando profundamente ficamos em silêncio, ou melhor, ficamos com a boca fechada. Raras vezes percebera tanta agitação e inquietação interna como aquele dia. Eu de olhos fechados, tentando iniciar a reunião era tentado com pensamentos variados, percorrendo lugares distantes, todos fora e longe de mim. Todos me arremessando para fora de mim mesmo. Todos me mostrando o tão distante eu estava de mim, o quanto que percorria passos emocionais de outra pessoa. Ia percebendo espaços lacunares, por hora superficiais, outra hora abissais, nos quais podia-se encontrar meus medos, meus temores, meus receios, meus conflitos e eu querendo a todo custo e de toda forma dizer para mim mesmo que ali era um lugar de concentração. Em vão, meu coração e minha mente não me obedeciam e caminhavam por lugares que eu não tinha controle. Essa agitação conflitiva durou muito tempo. 


Resultado de imagem para silencioO tempo de uma vergonha de estar em uma reunião, com amigos esperando assertivas e eu 'entrenhado' nos meus próprios dilemas. Centenas de pessoas a espera de ajuda e eu sem conseguir silenciar-me. Cada vez que essa reflexão vinha à tona mais agitado eu ficava, querendo forçar o silêncio. Igual quem grita, igual quem estapeia pedindo paz e tranquilidade. Não tinha saída, eu precisava aceitar minha inquietação e foi com essa aceitação que algo perto de um silêncio começou a ser gerado. 

No entanto, foi quando abriram a porta que saímos todos desse dentro de nós. Um dentro barulhento, as vezes selvagem, ruidoso, mas, nós. Um nós que não deveríamos nos envergonhar e tão pouco correr, e sim, abraçar. Foi ao falar desse momento de silêncio que percebemos que nunca falamos tanto. É somente na falta que a presença se manifesta, tomamos consciência. Há pessoas que quase não comem carne, quase não transam, praticamente, não bebem; basta dizer a elas que estão por três dias de preceito que elas salivam por carne, se excitam vendo cotovelos, sentem vontade imensa de tomar cerveja. A atenção na falta desperta estados internos adormecidos, o silenciar-se não é diferente.  

Não entramos no mérito, mas transmitimos a mensagem de que durante aquele período de silêncio, nós ouvimos e nos atemos ao que nos prende, sejam situações, pessoas, que estamos ligados, por vezes presos, por horas vinculados. Cada qual compreendeu isso e caminhamos para outra dimensão do silêncio.


Apagamos as luzes! Todas. Pedimos para imaginar a floresta, a mata, a natureza, a clareira e o céu aberto, o avistar as estrelas. Era nesse lugar que homens e mulheres introspectavam o silêncio. O engolia em forma de medo parindo respeito e compreensão, abraço e sentimento de totalidade e pertencimento. Imerso na noite escura, ouvindo passos, sons da natureza falante, da sinfonia da natureza é que desenvolvemos as potencialidades dos xamas e dos guerreiros. É ali imerso pela natureza que as árvores, flores, matas, folhas, chão, terra, estrelas, animais, insetos comunicam, que se aprende a linguagem de todas as coisas, que se aprende a dialogar consigo mesmo sem temer as dores, dissabores que nos atormentam. É ouvindo aquele silêncio que a gente aprende a falar com o outro, com o mundo.
Pois bem, estávamos longe demais dessa imersão. As luzes e as telas azuis nos tiram a sacralidade e o respeito pela noite, consequentemente pela vida, pelo dia, pela luz. Mas, fizemos o exercício. Fomos conduzidos à percepção mais sagrada da noite, da lua, da magia e nesse instante seres misteriosos apareceram ao lado de cada um dos presentes. 

Resultado de imagem para xamanismo
A sua maioria em forma indígena, um com o cachimbo da paz, outra sentada de pernas cruzadas, no alto de um platô realizando o ritual do sinal de fumaça. Outra catando folhas num ritual de pajelança, outro realizando movimentos com as mãos e ostentando um coca que quase tocava o chão, outro apenas observando, enquanto que junto a mim, um grande amigo batia no peito como quem toca tambor marcando o ritmo do coração. Marcando a pulsação da Terra, acelerando para que cada coração dos presentes se tornassem um único coração, alcançassem o mesmo compasso, a mesma vibração e essa pulsação inicialmente ia unindo os corações, depois os pés, as mãos e de repente estávamos emaranhados em uma única rede e teia de energia. Não apenas os seres em nosso plano como seres de outros planos e níveis. 

Minimizando as batidas até que as silenciasse, as parassem e deixando cada um viajando por si mesmos, dentro de si mesmos, conectando-se a uma forma de silêncio que nasce do medo, da solidão, do vazio, da angústia, do desamparo. Um silêncio que vai ganhando voz, sentido, conexão até que se explode e reconhece a diversidade de vozes que compõem o universo, as florestas, as matas, nós mesmos. 




Aos poucos foram voltando e fomos conversando sobre as lembranças, as percepções de cada um. Uns falando que só recordava de um vento, do escuro bem espesso o recobrindo e de uma nevoa. Outra relatava que via uma grande luz no centro da sala. Uma luz tão forte que a ofuscava mesmo com os olhos fechados. Outra dizia que não tinha visto escuridão, que em nenhum momento tinha sentido a escuridão. Outros relatando as sensações corporais de frio, calor. Tentava eu, como éramos poucos, descortinar coisas que foram feitas, níveis que tínhamos chegado, mas era a fala de cada um deles, que me abria para as percepções internas. Por exemplo, eu sempre acreditei que o ritual da fumaça tivesse o sentido e o propósito de se comunicar com tribos distantes, mas a moça que executava aqueles movimentos, ela se comunicava, com uma linguagem muito clara, com seres do espaço. Aquela fumaça subia aos céus e as preces, desejos, anseios eram atendidos. Não deu para vasculhar e nem adentrar muito. 

A outra que catava folhas era uma índia, uma pajé da região da amazônia, brasileira, tinha e possuía conhecimentos das ervas. Interessante é como que a moça que jogava fumaça para o ar, para o céu, em verdade, buscava um consolo, uma resposta, um aconchego uma tentativa de retorno para casa. Ela tinha uma saudade que esses rituais ajudavam a aplacar, a diminuir, embora a saudade permaneça ainda nessa vida. No entanto, a conexão ficava clara e era esse o sentido de adentrar esse silêncio, compreender a nossa conexão com o universo.
Um dos sentidos do exercício era o de salientar que cada um de nós tem uma forma de conexão, de integração, de harmonização e aqui chamou, novamente, a minha atenção o uso do cachimbo da paz e a tão polêmica questão das drogas de forma geral e da maconha em especial. 







O uso da canabis fazia parte de um ritual, hoje decantado, perdido, cindido que talvez proporcione mais angustia do que conforto, mais vazio do que preenchimento, no entanto, dentro daquela cultura, o seu uso tinha um aporte de transcendência que podemos encontrar nas almas ainda hoje. Esse é um assunto que merece um texto a parte, a saber, as drogas enquanto energia de medo, terror, violência e a droga como forma marginal de se colapsar uma sociedade de consumo egoísta, perversa. Porém o fato é que se nos anos de 1960/1970 a maconha, o LSD tinham o aporte de criar uma abertura consciencial diferenciados, fora dos padrões bélicos, de manipulação e domínio sobre os outros, hoje as drogas são a representação mais literal de um sistema que ela tentou derrubar. As drogas hoje representam o recrudescimento de tudo o que há de mais perverso e 'doentio' no mundo. Elas representam justamente a mesma energia que um dia utilizou-se para combater. Enfim... assunto para outro post. Mas, se as drogas um dia produziram silêncio e abertura para espaços profundos, hoje ela produz barulho e a reprodução frenética de uma sociedade acelerada sem saber para onde caminha, porque não tem tempo nem de parar para refletir. 

Findo os diálogos, as reflexões, as inferências, fomos para o terceiro silêncio que segundo a exposição de Somater seria o primeiro.





Fomos convidados a sentir a Terra, a respeitar o chão. Falaram das diversas tradições nas quais as mulheres eram adoradas como deusas, falaram da Terra como Gaia, da Terra como Grande Mãe. Falaram dessa força que abriga e desenvolve dentro de si as mais diversas formas de vida e espera que elas convivam como irmãos, compreendendo a harmonia que os rege e os guia. Falamos, falamos, até que fomos remetidos ao útero. Ao silêncio do útero. Ao silêncio capaz de capturar nossos sentidos, de nos conectar ao outro e nos perdemos nesse outro, nos fazermos um. No lutarmos para sermos um. É mágico e estranho como esse silêncio metaforiza os outros dois. Como que o silêncio do ser que é gestado dentro de outro ser são iguais e diferentes, mas ambos se confundem e se transformam. A mãe tem ciência que abriga em si outro ser e que este ser se desenvolve dentro dela. O ser abrigado não tem essa ciência. 
Tal qual a semente não tem muita consciência de que é abrigada e acolhida pela terra. Porém o desabrochar da semente, a evolução do ser vai modificando a terra e a mãe. Como que se a mãe, assim como a terra fosse um tornar-se. Não se nasce mãe, não se nasce Terra. É nesse contato direto com o outro dentro de si mesmo, é abrigando e acolhendo em si uma semente do universo, do Grande Mistério que a mulher se torna mãe, a terra se faz Gaia, ambas se fazem DEUSAS e as sementes e frutos ganham consciência e individualidade para ao longo do processo re-criem tudo de novo, nesse ciclo de tornar-se.  

Resultado de imagem para deusa gaia mae terra

Assim, ali no útero, temos ao mesmo tempo o aconchego, o acolhimento e a necessidade de mais espaço. Em parte era esse silêncio que nos voltava, o silêncio da briga interna, do conflito interno: para onde ir? O que fazer? Está bom, mas está ruim, rsrs! E nessa dis-puta a gente perde e encontra nossa voz. Foge do acolhimento, do aconchego, do abraço, da ternura, do encanto ao mesmo tempo em que se deseja encontrar com isso em tudo o que se faz e se realiza. Esse silêncio enquanto falta, enquanto vazio precisa ser significado pela força do viver e vivendo compreender que toda Gaia é útero e toda criação é uma fraternidade, independente do reino. Mas, espelhar esse silêncio implica uma visão diferenciada com a natureza, uma percepção dela como parte de nós mesmos, continuidade. É preciso reconhecer em nosso medo, outras vozes que nos acalma, nos abranda, nos transborda, nos irmana, nos diferencia e justamente por isso, nos complementa. 


Fico aqui nas minhas ficções imaginárias acreditando que cada ser nasce em todos os reinos de forma conjunta e num único parto. Quando fostes parida humana seu cordão umbilical fostes cortado pelo ser angelical que és, acompanhado de uma sereia que nadava no liquido aminótico de vossa mãe, que é a Terra, és Gaia. E, por ser, um ser do reino mineral, outros do vegetal, outros do animal, sem contar de outros sem corpos físicos todos respiraram com você e acompanham sua caminhada, a espera de um abraço, de um olá que só pode ser dito, no silêncio da noite. 

E nesse silêncio eu fiquei me perguntando de onde vem a fúria humana por conquista e colonização? De onde vem a nossa fúria por dominação e subjugação? Essa fúria não está na natureza. A natureza vive suas regras, suas leis, mas elas se fazem harmonicamente, mata-se para que outra especie continue vivendo e essa morte cumpre uma sacralidade na qual presa e predator honram Gaia e a vida. O humano não compreende essa sacralidade da natureza. Isso nunca foi a lei do mais forte e sim a regra da cooperação. Quando perdemos essa capacidade interpretativa, a natureza, as mulheres, as crianças, os velhos, os diferentes vão se tornando ameaças e ameaçadores, porque não sabemos lidar e conviver com as perdas, a morte, a angústia, o desamparo, o abandono. Sensações que toda criatura tende a sentir se não for acolhida pelo útero, pela proteção do pai, pela fala de que esse silêncio engole, mas nos devolve melhores e ao sermos engolido por eles nos fazemos humusanidade.  

Essa fúria tem intoxicado o útero feminino com pressa, com dores, com medos, com desesperos, com despreparos e assim retirado dos seres o silêncio, aquela calma de se acalmar ouvindo outro coração, ao escutar uma cantiga de ninar. 


Caminhando para o final, 

Foi realizado junto as duas mulheres presentes um processo de ativação pelo qual elas irrigassem, adubassem, frutificassem todos a sua volta com a energia delas. Foi uma coisa linda, especialmente, porque esse processo de ativação se deu e se faz pelo abraço. Um abraço no qual a mulher se faz conectora, chave de interconexão com o todo. Uma viu nesse abraço, um vórtice de luz que ia ligando todos os presentes como havia percebido no momento que batia 'tambor'. Eu digo que essas ‘fibras óticas’ vão ligando e interligando cada um dos seres, suavizando caminhos, quando eles são para ser suavizados, enraizando e ancorando pessoas. As mulheres são parte do livro sagrado da natureza, parte essencial para que desvelemos o sentido da criação. A conexão delas passa pelo útero e é uma pena que para muitas isso tem a função apenas reprodutiva.


Sem dúvida que essa função é tão gloriosa, maravilhosa, quanto gestar um filho de Gaia dentro de si mesma, porém por isso mesmo essa força é ainda maior e pode ser melhor explorada.

Resultado de imagem para gaia deusa da terra
Basicamente foi isso que fizemos e espero repetir no formato de um curso no qual trabalhos esses três silêncios num ambiente mais apropriado.


Bjs em todos!!