quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Suicídio: a vida e o absurdo.

Ao meu Unbermensch, minha superação, pela coragem com que defende e ampara aqueles que amam. Eu te amo cada vez mais.

Ela não encontra razão na vida, mas como encontrar? O estupro dilacerou sua confiança, seu corpo, seus sonhos e em tenra idade.

A outra sai de casa com as lágrimas nos olhos, com o choro da alma até chegar na escola. Ao chegar, procura os lugares mais inacessíveis e sobe. Todos a pedem para descer. Nos olhos dela, eu vejo o desejo de se jogar; quando ela desce, nós falamos da tristeza. A mãe disse que se ela não fosse filha dela a jogaria no lixo. Tento relevar, mas a ferida já esta aberta. E a forma que a menina encontrou para dar conta é se equilibrar. Diz ela que é bom, faz bem. Fico pensando quando é que a vontade de pular será mais forte do que a do equilíbrio?!

A outra encontra em Deus seu sentido, mas está numa fase da vida cujo fogo da carne queima mais do que o do Senhor. Nesse momento, mesmo que seja por alguns instantes, Deus e a vida perdem o sentido, porque junto ao desejo pelo corpo do amado, vem a imagem do abuso e da violência recebida no passado. A dor parece ser dupla.

A outra chega todos os dias na escola com uma blusa de frio que esconde os cortes desenhados na pele. Segundo ela e tantos outros que fazem o mesmo, a dor dos cortes não se compara com as dores que sentem n’alma. Se cortar é um alívio.



A pergunta que me ocorre é que dor é essa? Independente do nome, estamos diante de suicidas potenciais. Todas elas poderiam ser uma única pessoa, mas são várias. Elas são aquelas que buscam um sentido na vida, mas esse sentido não é que seja difícil de encontrar, é insuportável tolerar. A vida tem nelas, neles um peso que massacra, que afunda, que deprime, que dilacera. É um peso que daremos o nome de absurdo e esse peso tem uma fome, um espaço, que o chamaremos de angústia.

Assim, por vezes, para lidarem com esse vazio, esse absurdo, eles se cortam, eles buscam alívios para uma dor na alma que não conhecemos, mas a dor existe, está lá, chagada.
Por que não vemos? Por que não acudimos?

II

Os cortes físicos, as dores invisíveis me fazem lembrar Iessienin, o jovem poeta russo, que ao cortar os pulsos escreve seu último poema a sangue nos quartos do hotel. Maiakowiski, meu poeta fabuloso, após as centenas de homenagens ao jovem poeta, se pergunta: se as tintas acabaram e agora era necessário escrever com sangue? A resposta vem anos mais tarde, quando num outro quarto de hotel, longe da gelada e aconchegante mãe Rússia, o fabuloso se mata com um tiro no peito.

Sim, todo suicida brinca com o drama, com a tragédia. Para eles não importa somente a morte, o se matar, e, sim, a forma com que serão lembrados, não serão esquecidos. O desejo é mais a dramaticidade, a esteticidade, como um desejo de embalar a dor nos braços das vicissitudes.

Mas, fora o fato deu ser dramático, trágico, escrevo sobre o suicídio, porque muitas pessoas têm me procurado, falando que isso lhes tem passado pela cabeça. É estranho o suicídio passar pela cabeça e não pelo coração, mas ao que indica, ele passa é pela cabeça. Uns pensam em se cortar, vagarosamente, até todo o sangue do corpo se esvair; outros pensam em se jogar de pontes, outros em entrar na frente de carros, outros de deixarem a moto se chocar com o muro, como se fosse acidente, outros acreditam que serão mortos por uma pessoa que as ama. Fico vendo esse movimento nas mais diversas idades e o que há em comum em todos é um abandono, uma rejeição, uma violação, um abuso- sexual ou não. Há uma orfandade não preenchida, há uma dor não suturada, há um grito inaudível até para elas/eles, como um choro constante, ininterrupto, incessante que distraí com alguma coisa, mas muitas vezes volta mais forte, resoluto e firme. Há um desejo de se matar, mas matar o que?


III

A idéia do suicídio me perturba, não em me matar, nada disso, mas o que leva uma pessoa a isso? Como ela chega a esse ato? Parece que há etapas, fases, caminhos. O suicídio longe de ser um ato isolado como vemos, um sinal de desespero como taxamos, ele é uma construção. O suicídio é construído paralelamente a significação da existência. Num jargão da Física, o suicídio é a anti-matéria da vida. Por que não vemos?
Não vemos, porque a maioria dos seres são indiferentes tanto a vida quanto a morte. A maioria não nasceu, conseqüentemente, não irá morrer. A morte e a vida lhes são indiferentes. Um amigo espiritual os chama de abortados.

Outra parte significativa opta pela vida e a significa. E a significa não porque não convivem com os abortos, não porque não tenham tido e recebido o peso do absurdo, mas é que focam mais na vida do que na ‘anti-matéria’. Ao que parece, o campo gravitacional dos suicidas é mais denso, a força que os oprime e os dilacera é maior. Em certa medida, eles já passaram o umbral da indiferença, mas ainda não chegaram a alcançar o sentido. Esses são os suicidas em potenciais. O que me leva a pensar o suicido como processo, fase.

IV

Nélson Rodrigues via nos suicidas os juízes do mundo. Nesse tempo, eu os via como seres incompreendidos. As razões para o suicídio nesse momento estavam para mim na inadequação deles ao mundo, ou seja, era um ato do corpo mental. Uma solidão, um vazio existencial que não lhes davam alternativas senão o fim. Eram seres incompreendidos que encontravam no fim uma forma de descanso, paz. Hoje, acredito que essa sentença que lançam ao mundo é tardia, parece ser a última fase.
Tive por vezes a concepção do suicida como um chantagista emocional. Um cara que premedita todos os atos, elabora o efeito psíquico que causará nas pessoas que ficam, sendo tudo nele premeditado até mesmo como o corpo vai ser encontrado e por quem. Essa premeditação chantagista existe de fato, mas dentro do processo é uma forma de se fazer visto, visível, perceptível, melhor, o que se quer mostrar não é o ser e sim a dor que o ronda, o invade, o toma, se apodera dele de todas as formas.

Hoje parece que tudo isso é um processo, um desenvolvimento, que inicia na falta de sentido, o que os existencialistas denominam de ABSURDO e culmina na ANGÚSTIA, esse estado de morte que ronda todo ser vivente, mas que em alguns a boca dela é muito maior.




A boca é quase a de uma jibóia que dá um abraço forte, moendo todos os ossos, todos os sonhos, todas as esperanças, todos os fins. Quando a pessoa acha que acabou, ela ainda moe o fim do fim, até chegar ao fim do término. Muitos desistiram bem antes. Relutaram, mas não foram vistos; de “repente” são engolidos, como a baleia engole Jonas. Abrigados na própria angústia, embalados pelo próprio absurdo deveriam ser capazes de encontrar o sentido, mas... qual?


Queria estar exagerando, mas não estou. Há pessoas que só encontraram dor, crueldade, frieza na vida. Não conhecem outras construções que não sejam essas. As que encontram um gesto de carinho, um ato de amor encontram força para significar a vida num alto grau de empatia, mesmo porque conhecem como poucos as dores do outro. Estou falando de muitos religiosos, policiais, psicólogos, professores, que conseguiram significar sua vida, por terem sido acolhidos e agora acolhem com um envolvimento de jibóia.  

Hoje, aos meus olhos, o suicídio é a parte visível de uma dor lancinante, devoradora, silenciosa, invisível que vai tomando a pessoa dia-a-dia até culminar no ato final. Nesse aspecto, o suicida é de novo o julgador do mundo. Afinal, como não vimos que o outro tem toda essa dor na alma? Como não oferecemos cuidado a esse outro que se encontra mutilado ao nosso redor?

V

Mesmo sendo da mística, não acredito em um sentido dado, em um sentido único. Acredito num sentido construído, numa significação que damos à existência. Nesse aspecto o sentido é cada um significar a sua vida, mas a vida parece em teimar em nos mostrar que o sentido, dado, construído ou encontrado, nunca se faz na solidão, o sentido se dá no encontro com o outro. É no outro que o sentido se plenifica. É no outro que o significado ganha plenitude e é também na falta e na ausência desse outro que o sentido desbota.



Por isso que a todas essas pessoas, conhecidas ou não, próximas ou não, é fundante mostrarmos outras formas de contato e convívio que não seja a das dores, da violência. É importante sermos capazes de mostrarmos que há outros encontros que não o da violação, do abuso, da violência, do desrespeito, da diminuição, da sabotagem, da injúria, enfim da maldade. Muito embora, a experiência tem me mostrado que mesmo nos valendo de outra força que não essas citadas acima, muitas delas transformarão nossos atos em medo da vida; temerão as carícias no corpo e na alma como se fossem tapas; acreditarão que todas as primeiras, segundas e terceiras intenções das pessoas sejam machucar, por mais que tenham aprendido o cuidado com o outro. Não nos resta alternativa senão convivermos com elas, mostrando o que a vida tem de melhor, de mais puro, de mais integro, de mais belo. Talvez esteja falando de amor e tolerância, paciência.

Um amor tão forte, que a sua suavidade segura a existência de um ser na vida, dá a ela condições de caminhar pela vida. Uma presença tão suave que da força para as pessoas resistirem a sensação de solidão. As vezes para se evitar que uma pessoa se mate basta apenas isso. Pelo mesmo lado, as vezes não há nada para se evitar, o peso do absurdo e a fome devoradora da angústia são maiores, muito maior e pode parecer bizarro, o amor chegou tarde.

VI


No aspecto espiritual penso no slogan da década de 1990 da Federação Espírita de Uberaba: “não se mate, você não morre.” Talvez, essa seja uma das formas de transcendência que podemos ofertar a essas pessoas e a nós mesmos. Conhecermos nosso aspecto energético longe dos preconceitos e prejuízos morais que acompanham a escolha mais profunda de todo ser vivente: viver ou se matar? Podemos nos matar? Podemos dar fim a nossa própria vida? Todo existencialismo, todo absurdo, toda angústia, todo niilismo, toda plenificação e sentido repousa nessa escolha, seja ela qual for- viver ou se matar?

Aqui é o início da Filosofia, não enquanto conceitos, mas enquanto problema real e concreto- a finitude da vida. Podemos dar fim a nossa? Se não, cadê nossa escolha? Se sim, por qual razão? Acredito hoje, agora, que encontraremos nosso sentido apenas quando lidarmos com a angústia do fim. É por trás dele (fim) que nasce as condições de novos términos e muitos outros inícios. É nesse mergulhar que conseguimos dissipar as indecisões.

Por esse molde a pergunta que tenho feito e estendo a aqueles que pensam no ato é: o que você deseja de fato matar? O que você de fato você quer que morra? Creio que essa resposta nos direciona ao sentimento de mudar a vida, de viver mais, de sair de um relacionamento estafante, de um trabalho estressante, de uma condição de vida que por vezes não temos como mudar, ou a cabeça pensa não ter.

Vida é mudança e parte da dor, ou toda ela é ficar resistindo ao mudar, é ficar tentando de todas as formas encaixar a mudança dentro da nossa conformidade e adequação. Aceitar o desafio da vida eis... o sentido. Como diz, o poeta fabuloso:

Nesta vida/morrer não é difícil./O difícil/ é a vida e seu ofício.

Maiakowiski.



quarta-feira, 17 de setembro de 2014

PELÉ NAS TEIAS DA IDENTIDADE: o caso Aranha


Uma ex-namorada costumava dizer, relembrando a frase de um ex namorado dela, pertencente ao movimento negro, que “preto é lápis de cor”.

Pelé não é preto, não é macaco, não é negro, não é Príncipe Etíope. Pelé é o anti-negro. Pelé se construiu, se afirmou, negando sua negritude, mas dessa vez, ele foi longe demais. Rechaçar Aranha foi ardiloso como uma teia de mentira e cretinice. Uma rede de ilusões de quem não se conhece, ou melhor, não se reconhece. Pelé recorda a frase de Nélson que dizia que o brasileiro é um narcisista as avessas, cospe na própria imagem, seguindo a lógica da frase, Pelé é o negro as avessas, cospe na própria identidade. 

I
A construção da identidade não é fácil para ninguém, requer espelhos, exemplos, perspectivas, objetivos, mas também expectativas, carinho, confiança e base. Se isso é difícil para todos, para nós negros tem componentes fortes que dificultam essa construção. 

Na minha infância não tinha Racionais. Esses caras ensinaram e ensinam a construção da identidade e identificação negra. São importantes. Na escola que estudei da 1ª a 4ª série estudavam três negros- Vander, Meu irmão e eu. Vander era o melhor aluno da escola; meu irmão estava entre os dez, eu entre os últimos. Ser negro era difícil, inclusive pela situação econômica dos meus colegas, cujos pais eram classe média alta, exceção a nós três citados, ou mais uns dez, no máximo em toda escola.



Situo isso, porque Pelé podia ser negro e tornar a construção da nossa identidade mais suave, menos densa. Fosse ele negro e seria mais tranquilo para mim e milhares de outros negros a construção da nossa identidade. Olharíamos para frente e para cima e teríamos a quem mirar, visualizar. Para não perder o momento desabafo, Mussum que todos amam, adoram, era para mim motivo de vergonha. Não o homem que não conheci e nada sei, mas o personagem: bêbado, tolo, ingênuo, motivo de chacota semanal, de fracasso permanente e constante. No domingo, eu já antevia as 'brincadeiras' racistas da segunda. "Racistas"? Para muitos não era, não é, talvez não seja. Em nosso país, a classificação é de injuria racial e não de discriminação racial. Existe isso no Brasil?

II



Aqui é o ponto. Não creio que a moça destemperada seja de fato racista. Não creio que o negro que xinga Aranha de macaco seja racista. E é esse o nosso racismo. Para nós o crime racial é brincadeira inofensiva. Para nós a injúria racial é chilique de preto que não quer ser considerado objeto (lápis de cor) e dá o seu grito, mostrando-se humano. Por todas essas vias o racismo no nosso país é diferente, perverso. Nunca encontraremos um racista, mas nunca deixamos de ser. O racismo esta em todo lugar, mas não esta em lugar nenhum. O racismo é tido como ressentimento e recalque de negros que não gostam de si mesmos. 

Tal percepção partir de brancos é natural, compreensível, eles não estão na nossa pele. Mas, tal insinuação ser realizada pelo negro mais conhecido do mundo, pelo cara que conseguiu ser mais conhecido que os Beatles, por um dos poucos, senão único jogador cuja história é maior do que a do clube que jogou é um ato de covardia que supera até mesmo a omissão histórica dele. 

A cretinice de Pelé se superou. Foi além do combinado, do negociado, nem os neonazistas esperavam uma adesão tão voluntária como a dada por ele. Suponho que se Pelé encontrasse com Aranha na Vila Belmiro o expulsaria a pontapés e chibatadas como um capitão do mato tomado de vergonha, por ter visto um dos seus 'negrinhos' se rebelando contra os açoites morais que era alvo. 

Mas, suponho que os personagens do mal gosto não sejam de fato racistas, a pergunta que não quer calar é: o que precisaria para sê-lo? Pendurar negros em árvores? Esbofetear Aranha na cara? O que precisa ser feito para aceitarmos e reconhecermos que somos racistas. Brancos, negros, pobres, ricos, Estado brasileiro, somos racistas num nível tão perverso que achamos que discriminação não é violência, é brincadeira. E essa brincadeira não é apenas contra negros, é também contra mulheres, homossexuais. No Brasil a discriminação contra as minorias é quando muito, injúria. O IPEA mostra dados estarrecedores de que nosso racismo é um apartheid institucional, ainda assim, nós colocamos contrários as ações afirmativas, que buscam não reparação histórica, mas condições de igualdade. 

III

Por tudo isso, ser negro era, continua sendo uma afirmação contra o mundo, porque volto a insistir, não havia negros para se mirar. Nélson Rodrigues dizia que o único negro do Brasil era Abdias Nascimento. Vim a conhecer ambos já na faculdade, com a identidade negra consolidada. 




Mas, escrevo para falar que Pelé é definitivamente o anti-negro. Nunca houve um personagem que sentisse tanta raiva da sua etnia quanto Pelé. O discurso dele por décadas reforça o imaginário e a concretude do racismo institucional, genético, social do nosso país seja tratado como problema econômico. 

As declarações anteriores de Pelé era a de que ele nunca tinha sofrido racismo. Nunca!! Ele poderia mentir ao menos em solidariedade aos pais dele, mas ele ajudou em cada discurso, em cada omissão a promover o mito, não da democracia racial, mas a da discriminação social-econômica. A questão do negro é muito mais do que ter ou não dinheiro. E, o fato é: mesmo tendo dinheiro não se tem espaço, acessibilidade. 

O que Pelé fez com Aranha, fez de novo com a luta contra o racismo, foi pior do que queimar a casa da garota que grita de forma transtornada injúrias e despropérios.  Pelé age como um capitão do mato; açoitou Aranha em praça pública. Fez mais do que açoitar, mostrou que Aranha está errado em não se permitir, em não aceitar ser confundido com macaco. Pelé quis colocar Aranha no lugar dele, no lugar no qual Pelé nunca saiu: naquele que precisa da aprovação e do consentimento dos brancos para se afirmar. Ou melhor, não consegue se ver como negro, por ter estado muito tempo na Casa Grande. Malcon X gostava de lembrar que havia uma diferença espectral. Os negros da casa grande admiravam seus senhores, já os escravos da senzala os odiavam. Pelé sempre foi da Casa Grande, por isso tão anti-negro, por isso tão branco, por isso tão aceito.  

Pelé é menos negro do que Michael Jackson, porque esse se declarava negro, mesmo clareando a pele. Pele não tem pele, nem consciência. Pelé no que se refere a consciência racial, não é nem lápis de cor; mas não o culpemos muito, ele também não teve referências para construir e consolidar a sua identidade. 

Eu que comecei a escrita desse post bravo com Pelé termino quase que condoído com uma constatação: Pelé é assim tão miserável, porque ele não teve nem ao menos um anti-negro como ele se tornou para firmar nossa identidade, ainda que pela negação. 

Pelé não teve nem o anti-negro para afirmar sua identidade, negando-se. Nesse sentido Pelé nos serve de contra-exemplo. Pele é a pele da omissão e dos covardes. 



sábado, 16 de agosto de 2014

SIMULTANEIDADE: o continuum do encontro.


A simultaneidade é para mim um dos temas mais intrigantes. Não apenas porque envolve o tempo, mas é porque integra o tempo a dois, ou mais eventos acontecendo ao mesmo tempo em lugares diferentes e por vezes, pessoas diferentes.

A gente dá pouca importância a isso, mas é algo mágico. Imagine todo o esforço, toda a sincronia para dois carros colidirem num determinado ponto? Ou de um grupo de pessoas específicas estarem em uma sala de cinema, ou num avião, ou num bar? Essas pessoas saíram de lugares diferentes, acordaram em tempos diferentes, fizeram movimentos diferentes e tudo convergiu para que se encontrassem, exatamente, naquele ponto, local, tempo. Isso é mágico. Qual sentido e significado vamos atribuir a esses acontecimentos é da peculiaridade de cada um.

Mas, o ponto que quero destacar mesmo é de duas pessoas vivendo o mesmo tempo subjetivo, poderíamos chamar isso de amor, paixão? Uma pausa. 




Estou lendo Peter Galison, um historiador da ciência americano, que fala dos “Relógios de Einstein e os Mapas de Poincaré”. Mas, o que me chamou atenção nas páginas iniciais foi a simultaneidade, ou mais precisamente, a forma com que ele interpreta a teoria da relatividade. Como que ele, naturalmente, nos fala da necessidade de dois relógios para se medir as variações do tempo, variações? Sim! Fugindo de uma concepção de tempo absoluto como concebia Newton, Einstein visualiza a existência de muitos tempos, de muitos relógios e apenas a velocidade da luz como constante. Para Newton, Deus é um relojoeiro, dos bons. Desses capazes de pela simples escuta saber os tempos de atraso e de adiantamento. Um relojoeiro capaz de provocar eventos, encontros e desencontros mediante a sua vontade. Einstein nos permite levantar a hipótese de que esses eventos sejam provocados internamente, pelos desejos e vontades de cada um. Uma hipótese que fazemos a partir da leitura da sua teoria. Até onde sei, ele não fala sobre isso.  

De modo que, quando observamos, sejam as simultaneidades, seja o que Jung denominou sincronicidades é difícil não retornamos a uma concepção de tempo absoluto. É difícil nos colocarmos como sendo agentes eficazes desses encontros e desencontros, afinal, nós apaixonamos ou somos apaixonados? Batemos o carro, ou somos batido por ele? Bebemos ou somos bebidos? Temos algum comando sobre as forças da existência, da vida, ou pelo contrário, somos seres passivos diante dela? É complicado, complexo, difícil, mas, igualmente, intrigante e excitante.

Numa concepção newtoniana somos agentes passivos do destino. É essa concepção que temos, quase que naturalmente. Somos ensinados que não temos poder de comandar eventos que acontecem em nossas vidas. É uma concepção que estou chamando de EXTERNA. Ela é ensinada na escola, nas igrejas, nas religiões, no trabalho, pelo Estado, pela família. Não temos controle nem autoridade sobre nós mesmos, a não ser, pela obediência a todas essas instituições mencionadas. 

Numa concepção relativista, podemos ousar nos vermos como sendo agentes ativos do destino, isto é, responsáveis diretos pelo que acontece em nossas vidas, inclusive do que atribuíamos como inevitáveis: morte, amor, paixão. Essa é uma concepção menos usual, mas já encontra-se vasta literatura sobre isso, utilizando o conceito de co-criação. Essa concepção estou chamando de INTERNA. O aspecto ingênuo dela postula um universo no qual tudo é fruto do pensamento positivo e da intencionalidade emocional, esses modeladores transformariam o universo ao bel prazer dos sujeitos conscientes desse mecanismo.

Como podemos inferir, as respostas não são finais. Há um grupo de físicos, que radicalizando a idéia inicial de Einstein de que o observador influencia a realidade, salientam que o papel do observador é ainda mais decisivo. Por observador, eles entendem a consciência. De modo que, sem uma consciência, o universo seria morto e inerte. Resta saber se essa consciência é única- o relojoeiro de Newton- ou se plural, coletiva. 

As implicações disso é que por mais que haja leis, regras e forças no universo, elas entram em operação a partir da forma com que nossa consciência a alinhava. Entre as concepções EXTERNAS- o universo age sobre nós- e a posição INTERNA- nós movemos o universo- deve haver um meio termo no qual as forças externas e internas se alinham determinando tempos e espaços. Uma boa fonte dessa observação é a astrologia, isto é, como que os posicionamentos mesmo sendo de ordem universal, cada sujeito a vivencia ao seu modo e do seu jeito.  

O que percebemos é que sobre ou sob esses tempos nós fazemos história, fazemos vida. Nós fomos ensinados a focarmos no tempo absoluto, mas há um tempo interno, subjetivo, que parece comandar, alinhavar os nossos atos e ações. Um tempo que dita um determinado ritmo, pulsar e co-cria acontecimentos externos, eventos externos, observáveis. E é sobre esse pulsar silencioso que coordena os fatos que estamos refletindo.


É complexo e não vou nessa direção, porque agora eu só preciso do seguinte: podemos pensar o amor, a paixão, o ódio como simultaneidade? Podemos pensar esses estados internos como sendo sincronicidades? Dá para imaginar a operação que se realiza para que dois tempos subjetivos se alinhem e consigam pulsar sobre o mesmo espaço? Dois relógios impares, singulares, com suas peculiaridades, mas que possuem uma pulsação interna que modela espaços tão peculiares? Isso é formidável e grande parte de nós não se atenta a essa maravilha. Tratamos com tanta naturalidade que nos fazemos indiferentes a essa magia, quase que as ignorando, as desqualificando.

Saio da visão mais epistemológica e entro na poética. É formidável imaginar, conceber que num universo de múltiplos tempos há uma pessoa, que esteja no seu mesmo ritmo, compasso, cadência. Uma pessoa na qual se estabelece um continuum de tempo-espaço, uma interação forte, capaz de criar um universo compartilhado por ambos, aberto a outros. 



Eu fico vendo os relacionamentos como essas criações. Deveria falar das visões que embasam isso, mas tomaria um tempo demasiado. Todavia, a percepção energética dos relacionamentos, como que as energias dançando vão construindo, semeando particularidades. Isso é altamente excitante. E, nessa excitação, não estou falando apenas do desejo de transar e obtê-la, porque tem o dinheiro para conseguir uma prostituta, ligar para uma prostituta que se encontra disponível caso você tenha o valor que ela cobra. Estou falando de você, conscientemente, ou não, enviar uma mensagem para o universo de que você é um ser singular em busca de um par, uma complementaridade e esse universo movimentar engrenagens para que você encontre essa pessoa num banco de ônibus, ou na mesa de um bar, ou na fila da igreja, no estádio de futebol, na sala de aula, ou numa esquina, ou... O universo aproxima de você outro ser, que pode te proporcionar, naquele momento, o melhor continuum para que o próprio universo se sustente. É como se o universo fosse regido pelo amor e necessitasse do amor para se auto-regular.

O amor seria a constante dos encontros, dos desencontros, das construções e desconstruções da existência. Se no modelo físico a luz é a constante invariável do tempo externo. No modelo psíquico, o amor seria essa constante invariável do tempo interno. Nos movemos em direção do amor e construímos em nosso entorno aquilo que amamos. Não deveríamos separar tanto um estado do outro, uma coisa da outra. A observação atenta do nosso tempo interno pode nos dar a localização do nosso espaço externo. A observação mais acurada do nosso espaço externo pode nos dar a velocidade, os tropeços e embaraços do nosso tempo interno (amor).



Isso tudo é mágico e damos pouco valor a essa magia. Valoramos pouco esses encontros que a vida nos proporciona. Por vezes, apostamos alto demais em desígnios que não sejam o nosso próprio querer e a nossa própria vontade. Apostamos que a vida fará o papel de manter esse continuum, que ao que tudo indica, necessita de um desejo, de um querer, de uma vontade manifesta e declarada para que continue acontecendo e sendo. Necessita da consciência e da escolha. Mas, será que escolhemos mesmo o amor? Toda dor não é justamente essa?

Uma- desconhecermos o que é o amor.

Duas- lutarmos para que ele não nos invada, não nos tome, não se apodere de nós?

Hoje (13/8) conversava com meus alunos sobre corte/cortejar. E uma delas de 14 anos me disse: “minha mãe não entende que eu possa escolher uma pessoa para vida toda. Uma pessoa com que eu vou casar com 18 anos. Ela não entende que eu não estou perdendo nada, porque tudo o que eu quero é estar do lado dele”. O palavrão que eu pensei na hora e agora, eu não irei escrever. Ver esse tempo diante dos nossos olhos é assustador, mas revela, ou desvela, uma maturidade emocional que minha geração atingiu aos 30 anos, se é que alcançou. Pode parecer loucura, mas eles sabem o que querem. Sobre isso escrevo depois.


Parece que de tanto medo do amor, atraímos situações que nos afasta daquilo que estamos destinados a ser- felizes, plenos, entusiasmados. Essa lógica maluca de sabotarmos, de vitimizarmos, de mandarmos embora quem a gente quer perto é um vírus que precisa de antídoto. É um continuum que necessitamos desativar. Precisamos começar a deixar as pessoas nos amarem. 





quinta-feira, 31 de julho de 2014

4º MOVIMENTO: a entrega.


A maioria de nós não acredita em mitologia. Mas, eu vejo a existência dos mitos na vida dos meus alunos, na vida das minhas partilhantes. Muitos desses mitos estão sendo vivenciados a todo instante. O amor de Hades e Perséfone é um. Quem não conhece a moça linda, bela, encantadora, inteligente, que se apaixonou pelo problemático da turma? Quem não conhece a história da menina da classe média que foge para o morro para ser esposa do dono da boca? Quem não ouviu a história do menino queridinho da mamãe que entrou no mundo das drogas? É difícil resistir à baforada do desejo. E em meio a tanta repressão e combate ter forças para não ser tragado pelas sombras.

A estória do mito é o contar de um rapto. A moça virgem que foi raptada, isto é, teve a sua vontade, o seu querer subtraído.Num sentido interno, o rapto pode simbolizar aquele instante no qual a inconsciência invade e transborda a consciência. Noutro sentido, externo, superestimamos o rapto para pensar que Perséfone é vitima, foi raptada e não escolheu de própria vontade e desejo aquele destino para ela. É sempre mais fácil reconhecer a mulher como um ser sem desejo, sem vontade, sem querer. É sempre mais tolerável falarmos de loucura quando o inconsciente desejante, reprimido toma à consciência de assalto. Entretanto, Perséfone é tão especial por isso, ela deseja, ela quer, ela tem vontade. E isso em todos os tempos e eras foi assustador, continua sendo. O único deus capaz de lidar com essa força foi Hades. Foi ele quem viu naquela donzela, naquela virgem, algo que ele só via em si mesmo.

E nesse movimento estamos entrando na parte mais tortuosa, mais densa dos relacionamentos. Aquela na qual ora um, ora outro, se faz objeto dos desejos e fantasias do outro. Esse movimento no qual saímos do nosso mundo para entrar no do outro. Esse movimento no qual, eu reconheço parte do mundo do outro como sendo uma extensão do meu. Esse mundo no qual por vezes temos que raptar e se deixar raptar para irmos mais fundo. 



Esses raptos nos trazem em direção às alunas e partilhantes. Perséfone me pediu para perguntá-las por que ele? E, invariavelmente, elas falam de uma paixão oculta, de uma beleza e atração incontrolável. Elas falam de um reflexo no qual esse outro tinham algo delas que elas não podiam mais viver sem.

Juro que eu não sei que algo é esse, que ao falar, os olhos delas salivam e a boca traga tudo, como se fosse um olhar. Juro que não sei o nome desse algo, que causa uma sensação de pertencimento tal qual o corpo e o ser do outro fosse parte de um mesmo e único corpo. Na falta de um nome para esse algo, chamei entrega. É o nome mais próximo que chego.

Assim, muitas vezes, quando perguntamos a Perséfone o motivo pelo qual ela se encontra no Hades, ela responde: que ela encontrou a beleza oculta. Ela viu esse elixir da beleza que Afrodite pediu para ser guardado no Hades, longe de todos. Ela viu o local mais apropriado e talvez único no qual fosse possível produzir esse cosmético de fabricação exclusiva de Perséfone que lhe da à jovialidade, a juventude; o amor sem medo. Ela descobriu aquilo que nenhuma deusa, ou deus jamais compreendeu: a entrega.

Há uma força na entrega, uma resistência nesse ato de se entregar, que poucos têm condições de suportar. Seja para recebê-la, seja para doá-la. E isso torna a entrega tão especial, tão diferente, tão complexo.

Nessa complexidade, Perséfone me falava de um tempo no qual se desconhecia homens que não tinham vergonha das suas cicatrizes. E, eu lhe dizia, que cada vez mais, eu desconhecia mulheres, que fogem das cicatrizes e feridas de algum homem que amam. Ousaria dizer que o homem ama as qualidades, a mulher, as imperfeições. Refaço a frase: o masculino ama a perfeição, o padrão, a superfície- pele, cabelo, corpo, aparência. O feminino ama as imperfeições, a profundidade- alma, desejo, vontade, querer- a singularidade que faz daquele ser quem ele é e não outra pessoa. Nisso, eu e Perséfone refletíamos que há muitas mulheres fugindo das cicatrizes, porque estamos masculinizados demais. Com isso, os relacionamentos se engasgam, engastam, porque o feminino quer a nudez da alma e o masculino quer o embelezamento do corpo. Os amantes superficiais querem o corpo e o que ele pode oferecer. Os amantes profundos desejam à alma e tudo aquilo que ela pode dar. A sabedoria constrói a cumplicidade conjunta de permitir ao corpo todos os gozos da alma. O encontro de Perséfone e Hades representa essa profundidade.

Representa um lugar no qual não há julgamento, não se vê os desejos, a vontade como feios, ou perversos, ou malignos. Hades respeita o querer, o desejo, a vontade, seja ele qual for. Mas, como lidar com esse espaço em nós? Como contar os desejos mais secretos para sua esposa? Como compartilhar essa vontade com ela? E vice-versa? E é engraçado como esse espaço vai sendo esvaziado, vai sendo descuidado, desertificado, até ser um lócus dos mais apropriados para explosões nucleares. Sabe aquele homem que matou a mulher a tiros depois de 30 anos de casamento? Sabe aquela mulher que cortou o pênis do noivo depois da ruptura do noivado? Sabe aquele grupo de homens que praticaram estupro coletivo? Sabe aquela mãe que matou o filho recém nascido? São todos os que não olharam para seus mundos infernais e foram devorados por eles. Mas, não quero falar disso, quero falar da pergunta que fiz para Hades no inicio de tudo isso. “entre todas as donzelas do mundo, porque Perséfone?”

E ele me diz algo mais ou menos assim:

“Não escolho donzelas, ou rapto virgens. Pouco me importa a virgindade do corpo. Preciso de Perséfone, porque ela quis me ver sem o elmo da invisibilidade. E ao me ver não enojou, nem vomitou. Tirou minha armadura, cuidou das minhas feridas, dos meus machucados, das minhas cicatrizes. Eu a protegerei contra todos, contra tudo, especialmente, de mim.”


É aqui que o ciclo fecha. É aqui que, novamente, o mito grita no nosso dia-a-dia. É na fuga da profundidade que desenvolvemos relações superficiais, tão superficiais que ficam dolorosas. E o que tenho observado é que nenhuma dor é maior que a perda da ilusão. E como disse certa feita o poeta: “nada resiste ao contato furioso da existência.”

A paixão, enquanto sinônimo de vontade e desejo é esse contato que quando não se dá por escolha, se faz por rapto. Subtamente somos levados a entregar, seja parte, seja, integralmente. 

II

Foi nessa entrega, que Perséfone deixa de ser a lindinha da mamãe e se faz mulher. Mulher no sentido mais pleno e completo da palavra. Mulher capaz de suportar e suturar uma cicatriz na alma do amado.

Agora, caminhando para o final, re-lendo o mito: é como se ele estivesse nos dizendo: “ O BELO É PROFUNDO! A beleza é mais profunda que o corte de gilete!” E aqueles que param na epiderme não compreendem nem o que é ser homem e menos ainda o que é ser mulher. Na fabricação do elixir da beleza, a deusa do submundo encontrou, desvelou, uma beleza mais bela que a luminescência de Afrodite. É a beleza da entrega.

Beleza que sinaliza não para um rapto, mas para um arrebatamento, um pedido, uma dança entre ambos. Perséfone, me confidenciava: “entre todos, me deixei raptar por Hades, porque somente nele poderia ser inteira, intensa, toda, mesmo ele sabendo que em alguns momentos precisaria de voltar à superfície, para nos renovar. Escolhi Hades, porque o desejo dele por mim não me permitia nada além de me entregar de corpo e alma, vontade e desejo, em todo o meu querer. E ter a certeza de que ele me comportaria.”

O contraponto a esse tipo de relação vivenciada na sua dimensão mais positiva, isto é, na nudez do casal um perante o outro é que somos uma sociedade cada vez mais superficial. Uma sociedade que como regra não deseja ultrapassar nada mais profundo que a epiderme. Paramos na pele, na superficialidade do querer sem desejo, do desejo sem vontade, da vontade sem amor, do amor vazio, do vazio existencial, da existência que se alimenta de superficialidades e repete o mesmo ciclo. 

Um ciclo de fuga, de medo, de receios. Um ciclo de vida que teme a morte ao mesmo tempo em que banaliza a morte a cada viver. Nunca a nudez mostrou tanto o vazio. E nunca tantos e tantas foram tão superficiais como um corte de gilete.” A beleza esta mais superficial do que uma verniz, menos densa do que uma folha de jornal. A beleza esta virando só aparência.


Nesse ponto a Primavera não pode temer o inverno, porque é nele que ela se faz mais esplendorosa. Casais não deveriam temer a entrega e nós como seres singulares, não deveriamos fugir desse encontro, desse contato. 

Como disse a poeta: 

"Aprendi com a Primavera a deixar-me cortar
e voltar sempre inteira."


Celebremos a entrega. 



Poema: Primavera de Cecília Meireles. 

sábado, 19 de julho de 2014

AS QUATRO ESTAÇÕES: 3° MOVIMENTO- o medo.


O medo... esse que nos apavora.

Anos atrás, a partir de uma fala genial, magnífica, magistral de Mia Couto, escrevi as impressões que Kryon dizia acerca do medo.


Ele falava que o oposto do amor não é o ódio como pensávamos e sim o medo. É estranho pensar o medo como o oposto do amor, mas cada vez mais acho pertinente. Cada vez mais me assombro como que nos empenhamos em não manifestar nosso amor seja para outra pessoa, seja para pessoa nenhuma, seja para nós mesmos, seja.... De forma geral e quase sistemática, sabotamos o amor e damos as mãos para o medo, numa auto sabotagem sem precedente.

Toda essa situação me faz lembrar Oscar Wilde, talvez nos seus versos mais famosos:

"A gente sempre destrói aquilo que mais ama.
Em campo aberto ou em uma emboscada.
Alguns com a leveza do carinho,
outros com a dureza da palavra.
Os covardes destroem com um beijo,
os valentes com uma espada."

Esse ímpeto de destruição me remete a coragem. Nunca tinha visto amor como coragem até assistir uma peça que tratava do amor. A coragem é a cor com que colorimos a existência.; inclusive os próprios medos. Num primeiro momento, os dias, meses, ciclos que Demeter ficou sem achar Perséfone, destruída pela sua ausência, ela foi secando, murchando, esfriando, até congelar tudo a sua volta. O outono e o inverno foram muito rigorosos e mais complexo, inesperado. Nunca tinha visto algo assim na superfície. Por outro lado, o mundo subterrâneo na ausência de Perséfone era mesmo o inferno- muito calor, muito rigor, muita severidade, muita brutalidade e agressividade. Tudo eram espadas e flechas. Sangue e dor. Imposição e fúria. A dificuldade de cada um lidar com a falta, a ausência era enorme. 

O sentimento de rejeição perante a falta do outro leva à destruição de tudo envolta. Os muitos medos que temos, que nutrimos, que por vezes nos consomem. Assim, retomando às estações, a Hades e Perséfone fico me indagando sobre o medo da nossa beleza. Não a beleza do espelho, mas a beleza da alma. Indago-me também sobre o medo da nossa ternura, da nossa bondade. E isso é perturbador na clinicia, na vida, como que nos assustamos, não com as nossas feiuras, e sim, com a nossa beleza, com o que temos de melhor em nós. Para a maioria, estar diante da própria ternura, da própria beleza, da própria generosidade machuca. 

Esse medo nos apavora, deseja-se correr, fugir, mas o mais comum é destruirmos, agredirmos, machucarmos. Quando conseguimos fazer isso com o outro é um tanto mais justo, porque o outro pode se defender, mas quando fazemos conosco é ainda mais doloroso. O inverno de Demeter machuca toda Terra, mas, especialmente, a ela mesma, é ela que se gela. O mesmo se dá com Hades. Conseguimos formas de nos machucar, nos agredir e por vezes nos destruir que nosso pior inimigo não conseguiria. Aqui eu deveria falar de obsessão, de perseguição, das co-criações destrutivas que fazemos em nossas vidas, mas isso fica para um outro momento. O assustador é como poucos de nós estão preparados para o amor, à felicidade, à prosperidade, à riqueza e todas as benesses que a vida tem a nos ofertar e oferecer. Somos edcados e depois nos construímos para aceitarmos o pior, para lidarmos com as carências, as ausências, os vazios. Somos educados contra nós mesmos. E é talvez esses aspectos que Hades e Perséfone nos trazem. O amor dos dois nos levam a pensar em como os relacionamentos podem limpar, clarear todo nosso mundo subterrâneo de maneira harmonica e de como podemos fazer isso vivenciando o próprio inferno. 




Num segundo momento do mito, da relação entre Hades e Perséfone, vai delineando que estamos falando do lugar do desejo, do querer, da vontade. Estamos falando daquele fogo que acende, irrompe, inflama, insufla os seres de coragem para desafiar tudo, todos, inclusive descer ao próprio mundo subterrâneo. Todo aquele e aquela que já recebeu a baforada do desejo na nuca, que teve o hálito do querer nos lábios do outro(a) compreende o que estou dizendo. Compreende que para ter esse milésimo, esse segundo de prazer... devora-se, morde, puxa para si, abraça, unha, corre, tenta se controlar, se descontrola mais. Qualquer uma que já foi desejada sabe a doce delícia de resistir e se entregar a esse outro que devora, conquista, toma para si. Perséfone e Hades, um diante do outro, nos lembra desse estado, dessa querência, desses instantes. Eles nos remetem ao encontro com aquilo que queremos, mas algo nos impede, uma tensão simbolizada pelo rapto.

Quando olhamos para a jovem Perséfone sendo raptada, podemos insinuar, que Hades viu nela a mulher que ela não reconhecia, e ela viu nele a beleza, a leveza que ele não sentia e nisso podemos ver o rapto com outros olhos. Ser raptada no mito é a um só tempo recusa e entrega, amor e medo, escolha e destino; medo e coragem. É o ímpeto entre a ação deliberada e o desejo não manifesto. É a tensão não abordada entre o medo e o amor.

A singeleza incontida desse frenesi está naquilo que Hades representa e oculta por completo, por inteiro- a morte. Em toda mitologia grega descer ao Hades representa a travessia da alma. Num sentido mais simbólico, esse mundo subterrâneo se fez inferno, se fez chacras inferiores, se fez desejo, vontade, querer, procriação. Fez-se medo, receio, preservação e porque não, repressão.

Temendo esse fogo, as religiões em sua grande maioria ensinaram a sublimação, o sexo sem ardência. Catequizados que fomos, a maioria dos seres matam o desejo, a vontade, o querer. De modo que, antes de chegarem ao Hades, já chegam mortos, arrefecidos. Esses não suportam o olhar imperativo do deus dos mundos infernais que nos pede conta sobre como lidamos com nosso fogo que queima, devora, isto é, como lidamos com o desejo, a vontade e o querer? Por mais que não lidar seja um lidar, ninguém mente para Plutão. Como se o mito quisesse nos dizer e dissesse: “na morte todos estão nus. E não há nenhuma veste para nossas vergonhas.”

Hades é o sem pudor. É aquele que sensualiza a santa, que não se choca em ver a mãe como mulher. Hades é aquele que sacraliza a puta. A frase de Hades à humanidade poderia ser: “nada do que é humano me choca!” E Hades sabe que o humano é esse hiato entre o animal e o angelical, entre Demeter e Zeus, entre a Terra e o Céu. Mas, não importa, não se chega nem a si mesmo, nem a nenhum desses outros lugares sem se passar por lá. Sem se reconhecer no espelho de Perséfone, cuja única beleza que reflete é a da própria nudez sem vergonha. Isso é infantil e ao mesmo tempo o ápice da maturidade do ser. Estar em paz com os próprios desejos, com a própria vontade, com o próprio querer. 


Estar em paz com os desejos e poder compartilhá-lo com o outro, partilha que sabe e compreende que nesse espaço cabe a ausência, a distância. Creio que seja essa uma das chaves de entendimento... Quando a tensão entre Hades e Perséfone amplia, ela vem a superficie, ele se faz invísivel. Nesse respeito, o amor prevalece e o desejo não arrefece. 




Vamos à entrega.