domingo, 3 de fevereiro de 2013

AS SENHAS DOEU: imagens de nós mesmos.


Meses atrás atendia uma moça, linda. Enquanto ela ia falando, eu ficava vendo, não ela mesma, mas uma imagem que existia entre ela e os outros. Como explico:

O tema da consulta era o amor. E na fala dela (vou chamá-la de Yves-Y) algo me inculcava, pois não conseguia precisar se ela amava o ser do qual ela falava, ou se como Santo Agostinho nos lembra, Yves amava a sensação de amor, que embora ilusória é altamente excitante. Quando Luis Soares conversou com ela, pude ver que o amor mesmo, Yves não permitia sentir, ou melhor...  o amor que ela permitia conflitava com o amor que ela imaginava e isso nos apresentou três instâncias mapeadas: 1- o amor; 2- a imagem que ela tinha do amor; 3- como o cara a amava. Essas imagens brigavam entre si, mas não ao ponto de ela perceber a própria infelicidade. 

O inusitado de todo atendimento é que antes de se chegar a ela mesma, tinha que se passar por uma imagem que ela projetou dela mesma. Uma imagem que ela mesma construiu, criou e que a impede de receber o amor real, verdadeiro. Para entendermos melhor essa imagem projetada criaremos uma analogia com um espelho: Yves existe enquanto geradora da imagem, mas entre o reflexo da imagem e ela há uma projeção criada dela mesma, que a impede tanto de receber o amor, quanto de se ver realmente. Há uma distorção do mundo que ela vê, na forma como ela sente e também  dela mesma. Definitivamente, ela não é quem pensa ser. É isso que os psicólogos chamam de uma idealização? 

Antes de ela ser ela mesma, Yves é uma imagem que a impede ou dificulta imensamente de ser ela mesma. E se por um lado, ela se idealiza, por outro, mas o mesmo lado, ela cria mecanismos para ser seduzida por sujeitos que acessam, justamente, essa projeção. Dá para entender o peteco? Um eu que cria tantas imagens de si mesma, que ora se perde nesses reflexos, ora fixa-se em uma ilusória?




Praticamente, ela não se relaciona com quem consegue de algum modo vê-la e percebê-la para além das projeções. Ela só se relaciona com aqueles que conseguem acessar a imagem delirante que ela faz de si mesma. Assim, o mais louco disso tudo é que por mais sofrível e sofredora que fosse essa projeção do outro, ou idealização de si mesma, ela estaria ligada a este amor, enquanto fosse alimentada. Poderia ser espancada, surrada, currada, maltratada, desprezada, humilhada, ela nunca veria isso, porque o cara de certa forma consegue acessar e alimentar essa projeção. Dá para entender?

Ela não esta vendo ninguém, nem a ela mesma. Ela só vê a projeção que ela tem do mundo, que fez do outro. A questão de todo atendimento e de toda essa abordagem que denominei de 'As senhas do eu/doeu' é que ela gostaria de se livrar de um ex-marido que mesmo depois de separado a atormenta. Não no sentido do cara correr atrás dela, não a deixar ter relacionamentos com outros, ameaçá-la de qualquer modo. A atormenta no sentido deles não conseguirem romper um vínculo. Vínculo altamente sexual e nesse caso mágico (no sentido de magia mesmo), mas sem representar qualquer tipo de goécia. Pelo menos não deliberada e consciente, mas inconscientemente ambos estão acorrentados a algo que no momento em que se conheceram décadas atrás era mágico, durante casados foi se corrompendo, ficando doentio, chegando a patológico. Não ficou obsessivo devido a separação, mas esta longe ainda de ser algo agradável e natural. De modo que eles estabelecem uma relação, que mesmo sem se comunicarem por anos, quando ele a chama, independente de com quem ela esteja, Yves vai e transa como se estivesse hipnotizada. 

O que fico observando é que algumas pessoas tem o dom de alimentar essa projeção, são os 'hackers', ou no linguajar popular: canalhas, malandros, vadias; enfim sedutores no sentido de manipuladores de desejos e vontades. 

O segredo do sedutor esta em somente dizer o que a pessoa quer ouvir. O sedutor dialoga não com a pessoa mesma, mas com a projeção que a pessoa tem de si mesma. Ele alimenta essa projeção, essa carência e depois que ele (a) consegue isso, não adianta tentar mostrar que o cara, ou a moça são aproveitadores, estão fazendo mal, os caras já estão operando a relação não mais a partir de si mesmos, mas de dentro da base de comando do outro. Ele (a) pescou a senha. 

Uma senha que se torna fácil de ser pescada devido a nossa infantilidade. Acreditamos em contos de fadas. Mulheres de todas as idades sonham com príncipes encantados. Homens em todas as idades desejam princesas para tomar conta e castelos para mostrar para os amigos. E a paixão nos leva a querer construir mundos encantados. E não acreditamos que possa existir pessoas que controlem a paixão, os instintos. Não acreditamos que possa ser possível alguém que manipule tudo isso, finja tudo isso, simule e represente tudo isso. Não acreditamos que possa existir pessoas que justamente por racionalizarem as emoções e sentimentos sejam capazes de manipular os sentimentos e emoções de outras pessoas; mas elas existem e cada vez em maior número. 

Enquanto a moça era atendida, especialmente, por Tranca-rua, via um monte de seres acorrentados- mulheres e homens. Era uma cena bem parecida com a imagem do arcano XV do Tarot de Marselha: O Diabo. O detalhe é que quando os olhavamos mais atentamente, nenhum deles tinha coração. Óbvio que essa é uma visão simbólica, que ele elucidou com uma inversão de uma  passagem bíblica: “digas onde esta o teu coração e lhe direi onde esta o seu tesouro.” No caso, o tesouro delas estava na mão de outro, em posse de outro, e não foi feito grandes esforços para isso, muitas mulheres e alguns homens acreditam que amar é colocar o coração nas mãos do outro ser. Acreditam em um amor dramático, cheio de sacrifícios, cheio de privação e renúncia. É um amor pisciano no que esse apresenta relação com o cristianismo, ou seja, se não há sofrimento não há amor. Ou mais complexo ainda- amar é sofrer, doer, sacrificar-se. Todo esse cenário dramático que vemos em toda parte: religião, jornal, teatro, novela, música, escola, na vida de forma geral em que poucos buscam uma relação amorosa mais saudável e salutar. 



O que achei deveras curioso é que mais do que uma decodificação errônea, a bem da verdade, é que havia um jogo perigoso, intrigante nessa cena. Quando se dá a senha/coração, a pessoa implicitamente esta dizendo que somos obrigados a recebê-la, a aceitá-lo. Não dá para discutir isso sem retomar a proto-idéia de onde isso sai, a saber, a entrega de Deus do seu único filho para salvar a humanidade e a humanidade cruel mata a ovelha sagrada. Há desde então uma desonra moral em não amar o outro. Acreditamos que no amor o coração tem que ser dado, mais precisamente doado ao outro. O verdadeiro amor é aquele que abdica do seu próprio coração. Nós vemos essas relações trágicas entre pais e filhos, namorados, seitas. Poucos compreendem que é o amor e não o coração que deve ser compartilhado. 

ponto assustador da dinâmica de Yves é que se aos meus olhos era ia se tornando vitima, Tranca-rua deixava bem claro que ela alimenta esse programa virótico que roda no sistema de crença das pessoas. Isto é, ela e nem nós percebemos que por trás do ato de dar o coração, esconde-se algo ainda mais nefasto, que não se desatrela de nossa forma de ver o amor: a chantagem. 

Quando dou meu coração ao outro transponho e transfiro a responsabilidade que tenho de cuidar de mim mesmo para o outro, renuncio e entrego minha responsabilidade de crescimento e amadurecimento para que o outro cuide de mim. No final, posso cobrar do outro um preço mais caro, um preço que o amor não pede e nem cobra: o da culpa. Culpar o outro por nossa falta de coragem, pelo nosso não posicionamento é um ponto marcante dos relacionamentos. Um ponto marcante que pode ser acompanhado tanto por marcados internos, quanto que por marcadores externos.

Os marcadores internos vão sinalizando um jogo doentio que vai virando de patológico, até se transformar em obsessivo e culminar em ódio o que acaba por deflagar o ponto visível do marcador externo que é o homicido, não sem antes sinalizar pequenas e corriqueiras violências simbólicas. 




Eu que considerava Yves vítima fui convidado a analisar a situação mais de perto. E a percepção virótica veio quando o amigo Exu pergunta a ela se ela gostaria de libertar e libertar-se do cara. Ela diz que não. Percebi que mais do que uma escravidão o que existia era uma servidão voluntária. Uma servidão que colocava o outro na condição de canalha, de carrasco, quando na verdade, a manipuladora era Yves. Ou melhor, não existiria nem inocentes, nem culpados, mas uma relação que se desenvolve de forma que ela se machuca, mas tem um prazer nessa dor. Um prazer de se ver  e se manter acorrentada aos pés do seu amado. O importante a frisar é que a libertação disso se faz de forma simples, cada um retirando o seu coração das mãos das outras pessoas. 

Olha a sua volta, se o seu coração não estiver com você e em você, provavelmente, alguém tem a sua senha. 






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