Fui ver Django livre. Fiquei extasiado. A narrativa, a trama, a história, a intertextualidade, tudo. Creio que o impacto na sociedade americana seja ainda mais contundente e voraz do que nas plateias latinas e europeias, já que há detalhes históricos de difícil compreensão e interpretação. Durante todo o filme há sacadas geniais, formidáveis, dignas de Quentin Tarantino. A ironia e zombaria com que ele revela e explicita as origens da Ku Klux Klan vale a pena ver o filme diversas vezes apenas para assistir essa cena. No entanto, o aspecto mais mordaz e contundente que quero chamar atenção é a relação entre o escravo da senzala e o escravo da casa grande.
Aqui no Brasil- “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freire abordou o tratamento dispensado aos senhores e aos escravos, de como nossa estrutura social, política, econômica seguiu essa mesma arquitetura. Avançando sobre essa duplicidade, é estranho averiguar como que rechaçamos sapos barbudos que ousaram fazer pontes, estradas, Pacs, minha casa e minha vida entre esses dois mundos. Mas, retornando, Casa Grande e Senzala ganha vulto e dimensão posterior quando deixa tácito uma “democracia racial” com profunda ressonância a idéia do brasileiro como um homem cordial.
Nos EUA uma mulher escreve um livro despretensioso denominado: “A Cabana do Pai Tomas” (não o li), mas contam que o laureado Abrahan Lincon ao encontrá-la disse: “ é a senhorazinha a responsável pela guerra da Secessão?” Isso dá mostras do impacto que o mesmo teve na sociedade americana. Outro que evoca esse livro como um modelo para se entender a escravidão americana foi Malcon X. De forma que nos diálogos entre Jamie Fox e Samuel L Jackson isso ficou marcante, o que nos convida a recordar a obra de Harriet Beecher Stowe.
Malcon gostava de registrar como que para o negro da casa grande as revoltas contra o senhor eram algo que machucava o escravo da casa. Já para os da senzala, qualquer prejuízo ao senhor, era uma vitória para o escravo. O negro da casa grande com o tempo sentia-se e achava-se branco, um igual ao senhor. Ele passava a desconsiderar a dor dos seus irmãos de etnia até não se reconhecer mais como negro. Nos EUA essa divisão ficou centralizada, até mesmo devido a um ódio hostil e pesado. Um ódio declarado e manifesto aos quatro ventos. No Brasil esse ódio permanece camuflado, velado. Afirmamos de todas as maneiras possíveis, até a exaustão, que não há discriminação racial em nosso país, que ela é de renda. Por esse prisma, negros ricos são igualmente bem tratados como brancos e etc... O ponto que momentaneamente importa é que no Brasil uma infinitude de negros não se reconhecem como negros. Se vêem como brancos, ou quase brancos.
No entanto, o que mais tem me chamado atenção em Tarantino é o diálogo que ele tem feito com a memória, com a História, com o imaginário. Essa arte de re-escrever e re-interpretar os fatos históricos é formidável. Vimos isso, primeiramente, em “Bastardos Inglórios” e atualmente, com Django. É fabuloso imaginar algum lugar no universo (mesmo que seja na fantasia, no imaginário) no qual nazistas foram caçados por judeus e tiveram a suástica marcada na testa. É igualmente espetacular a criação de um lugar em que um negro escravo, se liberta e se torna caçador de recompensa de brancos sulistas. Um negro que mata branco sulistas e da Ku Ku Klan.
Nazistas, racistas, machistas devem estar rindo da impotência de um texto e de um filme como esse, já que segundo a possível argumentação deles, a verdade se deu de outra forma. Se por um lado eles têm razão, por outro, creio que a discussão histórica atual é justamente a de se perguntar: o que é mesmo realidade? O que é mesmo fato histórico? Que história é essa que replica a imagem dos vencedores ad infinitun sem se ocupar com os impactos disso sobre os vencidos? Essa perspectiva histórica de Tarantino abre margens não para que historiadores re-inventem fatos, mas para que ficcionistas, artistas, cineastas, professores ousem imaginar os fatos por outro curso e outro viés.
Nessa direção é incrível como que começam a pulular pesquisas históricas que re-contam os Quilombos, que mostram que a escravidão não se deu tão pacificamente como apontavam e apontaram. E metafisicamente, fico me perguntando: como surgem essas fendas? Seria possível reescrever a história? Seria possível alterar o passado?
Esse apelo é formidável. Olhar para o mundo e pensar que ele esta assim, mas poderia ser diferente. Poder ensinar que a potência da ação inicia-se com a potencialização dos pensamentos. Insubordinar-se contra a opressão passa necessariamente pela utopia de pensar outras realidades e outras possibilidades.
Django Livre, Bastardos Inglórios retira as correntes que aprisionavam cineastas, artistas, políticos, educadores de se pensar os fatos, como se eles fossem objetivos, lineares, VERDADEIROS. Incita a exploradores psíquicos a cogitar sobre a imponderabilidade da memória, da lembrança, do imaginário. E sobre isso fico de fato pensando.... será que o passado é mesmo inalterado?
Quem faz análise, quem envelhece observando os acontecimentos, percebe como que vamos dando novos coloridos ao fatídico como vamos colocando peças, cores, detalhes que não estavam lá; ao mesmo tempo em que vamos apagando, sombreando outras coisas. De modo que a estória se desdobra em muitas, em outras. Django e Bastardos Inglórios insinuam esse caminho. Em futuros posts tentarei escrever sobre eles.
Quem faz análise, quem envelhece observando os acontecimentos, percebe como que vamos dando novos coloridos ao fatídico como vamos colocando peças, cores, detalhes que não estavam lá; ao mesmo tempo em que vamos apagando, sombreando outras coisas. De modo que a estória se desdobra em muitas, em outras. Django e Bastardos Inglórios insinuam esse caminho. Em futuros posts tentarei escrever sobre eles.
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