segunda-feira, 30 de junho de 2014

AS QUATRO ESTAÇÕES - PRIMAVERA




Anos atrás escrevi sobre a chegada da Primavera. Agora venho anunciar que ela chegou ao fim. Não que ela tenha terminado, mas passou, foi embora. Ficou por muito tempo, mais até do que podia e lhe era permitido. Como sabemos, as estações são cíclicas, vem e vão, passam e retornam. Somente os incautos a querem eternamente. Como que impedindo outras estações chegarem, outros movimentos acompanharem, a vida se suceder e se renovar em todos os seus sentidos e níveis.

Recordo, como se fosse hoje, da Primavera entrando na minha sala. Tinha uma alegria incontida, tinha uma felicidade glamorosa, tinha um riso no olhar e uma profundidade no sorriso que abria as portas de todas as salas, de todos os portais. Eu ficava rindo da alegria que a Primavera produzia em mim. Cheguei a pensar que quando ela fosse embora, as flores murchariam, o verde desbotaria, mas nada disso tinha importância, porque ela trouxe a Primavera para minha vida, para mim.

A Primavera já não era mais uma prima, já não era mais uma estação cujo tempo e ciclo todos os viventes da Terra estariam, a Primavera era uma alegria de estar, de sentir, que existia em mim, comigo, a Primavera era um estado interno, uma estação interior. A Primavera floria dentro de mim, iluminava eus e aspectos meus que se faziam taciturnos, sombrios, cinzentos. A Primavera me deu oportunidade de cuidar dos meus jardins secretos.



As mudanças da Primavera me fizeram mexer, mover, caminhar e especialmente perceber que o que buscamos é a integração. Cada mulher na vida de um homem, cada homem na vida de uma mulher nos fornece condições de sermos melhores, seja um para o outro, seja um com o outro, seja os dois para com a vida. O erro, na verdade, a falha e falta que venho observando é o descuido conosco. Como que poucas vezes usamos essa força de maneira consciente para sermos melhores com a gente mesmo, conosco mesmo. De modo que aos meus olhos a Primavera, metáfora para as mulheres, para o feminino, busca ser as 4 estações e é sobre isso que escrevo em quatro movimentos que devo postar semanalmente. 



1º MOVIMENTO:


Quatro estações é uma obra de Vivaldi. Grandiosa. Solene. Bela. Ontem, após eu abrir as portas para a Primavera ir embora, passar, se despedir, seguir seu rumo e seu ciclo, eu não compreendia, como que um relacionamento amoroso pode terminar com um amando o outro e o desejando ainda mais forte?

E a possível resposta é: aceitando as variações, as mudanças das estações. Aceitando os ciclos, os ritmos, as variações, enfim... aceitando a vida como música. Mais precisamente, compreendendo que para qualquer movimento, a liberdade é fundamental. E as relações podem ser espelhadas pela lógica do senhor e do escravo, não importa, se um esta impedido de ser, o outro que o prende, o acorrenta, é também um prisioneiro. 

Não preciso frisar para ninguém que nos prendemos, que fazemos escolhas que condicionam a nossa liberdade. Mas, queria enfatizar, que no que tange aos sentimentos, esse estar com o outro deve transcender a idéia de prisão e se transformar em ato deliberado da vontade, do querer, do desejo. Sim, poderia estar em qualquer lugar, mas escolho estar aqui com você. Foi isso que Sartre pensou ao falar do casamento, dizia o filósofo francês: quando escolho uma mulher, renuncio a todas as outras. Não, porque se prende a ela, mas porque nuna concepção nietzscheana, eu escolho hoje, agora, amanhã, sempre, que este momento se repita. E a consciência dessa escolha, mais do que prisão é libertação, mais do que castigo é absolvição. E o nome que o filósofo bigodudo deu para isso foi AMOR FATTI. Amor à fatalidade. amor como um dizer sim à vida, ao viver e a tudo o que ela anuncia, traz, leva, devolve, inicia, termina. Não deveriamos temer o Eterno Retorno.  

E, sem muitos temores, reflito que eu retive a Primavera em uma única estação por muitos anos. Claro, que ela mudou, claro que mudamos. Claro que pedi inúmeras vezes para ela me mostrar seus invernos mais tenebrosos, seus outonos mais rigorosos, mas a bem da verdade, não estive com ela nesses momentos. Deixei-a sozinha. Comigo, quase ao meu lado, mas sozinha.  Quando fui ao encontro dela, decidido a deixar que o instante no qual estivemos juntos, qualquer um deles se repetisse sem que isso fosse um ônus sobre os ombros, ela estava cansada da espera. Parte do nosso instante tinha se desfeito. Quando, ela quis partir, como que escapando de minhas mãos, do meu abraço, eu a segurei pelos cabelos. Era a parte física que me restava. Na minha cabeça, ela não tinha o direito de partir, mas dá mesma forma que ela veio é claro que ela pode partir. E é igualmente óbvio, que as portas estão sempre abertas para ela, porque a beleza da Primavera é o movimento. E a beleza de todo amor, de toda vida é o encontro. 

A magia de se encontrar com um outro que chamarei de instante. Esse instante é tempo e espaço. É um ente interno e externo. O instante que existe e que cala é esse inefável que a gente agarra, segura, tenta reter, mas o seu sentido, a sua essência é esvanecer, é flutuar, é fluir. E a nossa vida deveria ter como meta a criação de instantes sublimes. Segundos, inesqueciveis que nos fazem nascer, renascer, nascer de novo, provar outras primaveras, apenas para ter esse insntante para sempre. 

Enfim... O lindo da vida são as variações, as mudanças. E escrevi tudo isso, porque a vi e a chamei de Primavera, achando que uma mulher, um relacionamento, poderia ser um solo de uma nota só. Perdoe-me. Não pode! O outro é mais do que o instante que o congelamos e o impedimos de caminhar. 
O outro é dinâmico, flui, escapa, se move, se adapta, escamoteia, mas só tem sentido, ou melhor, só tem sentido para mim e em mim, se for capaz de se fazer quem é. Mesmo que isso incorra na vivência de outros instantes com outras pessoas, a perda da exclusividade da estação. É somente, nesse ponto que a jura de amor é traição a si mesmo. Nesse ponto em que todo sublime do encontro com o outro, a completude dele só se realiza na plena liberdade de estar consigo também. Sem essa liberdade, dois se acorrentam numa composição de uma nota só. 

Por isso a partir de hoje te chamo de 4 ESTAÇÕES. Especialmente, porque reza a lenda que Vivaldi compôs 4 estações pensando no seu contato com a natureza. É vero! Mas, acordei no meio da noite, certo de que os movimentos de Vivaldi não são para uma natureza externa, ele estava apaixonado e falando de uma natureza interna. Ele estava falando da paixão, do amor, do instante no qual nos encontramos com o outro. Todavia, a lição mais preciosa que ele estava nos dedicando é que o Allegro da Primavera é sensacional, lindo, mas todo os outros Concertos são também. Todas as outras estações são também. E é uma estulticie acreditar que o amor é feito apenas por coisas boas, na verdade, o amor é repleto de provações, que se torna mais leves, rarefeitos, devido a presença desse outro conosco e nos ativando. 

Assim, nada tira do meu campo intuitivo, que Vivaldi fez as 4 Estações pensando no amor, na paixão, nas relações, no seu universo interno. Vivaldi em 4 Concertos nos ensina os movimentos do bailar interno da vida. Escutem. 

Primavera é toda linda. Toda. Em todos os seus ritmos, todas as suas variações, todos os seus tons, em todos os seus movimentos. Especialmente, naquele que tu me ensina a ver o verão e as outras estações em mim. 
Que o nosso recomeço seja ainda mais pleno. 

Mil bjs. Eternamente grato. Por tudo. 


domingo, 22 de junho de 2014

PROTEÇÃO E/OU CUIDADO.



Estou aqui fazendo uma enquete mental e postando para leitores reais, virtuais, imaginários e nem tanto assim; você é protetor ou cuidador? Respondeu? Falta maiores dados para responder? 

A cuidadora, cuidador é atencioso, melindroso, tem muito esmero, capricho, minúcia, se atém a detalhes, observa cada gesto, postura e sabe interpretar cada um deles com muito requinte e precisão, isto os torna profundos, pelo menos no que se refere a quem ou do que estão cuidando.

 De forma geral, os cuidadores retomam a energia da mãe. Pensando a mãe como sendo aquela que se ocupa com os detalhes, com as delicadezas, com os gostos, com as singularidades de cada filho, de cada membro da família. Aquela que é capaz de ao fazer a comida separar partes com mais pimenta, outras sem alho, outra sem cebola para que cada um sinta-se bem ao comer. Recordo-me de uma que dizia saber qual filho abria a porta, pelo jeito de colocar a chave na fechadura. A forma de caminhar apenas confirmava a impressão anterior. E o chamar pelo nome, era mero detalhe para perguntar o que tinha acontecido, sim, pela forma de abrir a porta e caminhar, ela sabia ler como o filho encontrava-se subjetivamente, sem ao menos tê-lo visto, ou falado com ele. A maioria das mães, das esposas conseguem esse feito e isso não é magia é cuidado e observação.  
Podemos observar essa energia de cuidado em outras esferas, por exemplo, a escola primária, na qual nos deparamos com a Tia. Esta em sua atividade tem como função social espelhar a mãe, fazer da escola, uma extensão da casa. Assim, ela deve cuidar, o mesmo se dá com a enfermeira.

Oposto e complementar ao cuidado está o proteger. O protetor é concentrado, metódico, áspero, por vezes rude, superficial, quase nunca se atém a detalhes. De modo geral, os protetores retomam a energia do pai. Pensando o pai como aquele que se ocupa com o geral, com o sustento, com as necessidades. Aquele que quase nunca repara as singularidades, focado que está no coletivo. O protetor, o pai vê a família como todo e é difícil compreender que a família é composta pela singularidade dos seus membros. 

Essas dinâmicas parecem que já foram mais bem demarcadas. As instituições conseguiam ter mais claramente se cuidavam ou se protegiam, assim como as pessoas sabiam também se eram protetoras ou cuidadoras e isso geralmente era dado pelo componente biológico; macho protege, fêmea cuida.

Fato é que precisamos ser os dois, aprender sobre os dois e isso não tem sido tranqüilo. Integrar cuidado a proteção e proteção a cuidado é uma dinâmica que requer atenção, ou melhor, que exige autoconhecimento. Olhar para dentro e acionar a parte que nos falta, geralmente, em nós homens, uma parte feminina e nas mulheres, uma parte masculina.

Na clinica a maioria das pessoas chegam em busca de cuidado, precisando ser cuidadas. O meu forte é proteger. Cuidar para mim demanda um esforço enorme, porque implica em aprender a cuidar da gente mesmo. E, nós homens, de forma geral, sempre fomos cuidados. Tenho amigo de mais de 40 anos que nunca compraram uma meia, uma cueca para falar do mais básico e elementar. Eles nem sabem qual é o número de calça que vestem. Primeiramente, a mãe fez isso por eles, depois as esposas, namoradas. Poucos de nós sabem cuidar da gente mesmo. O maior tormento quando homens se separam é que não sabem cozinhar, lavar, passar, enfim... cuidar de si mesmo. Há uma dependência da outra no pior sentido do termo, isto é, naquele que não consegue olhar para dentro e nutir uma dimensão importante do nosso ser- nossa esfera afetiva, nossa relação conosco mesmo. 

Indo mais longe, em quatro anos de clinica atendi quatro, se muito, cinco homens. Nós não cuidamos nem da gente e enquanto temos alguém ou algo para proteger ignoramos e relegamos esse cuidar interno as favas. Nós não vamos nem ao hospital sem que uma mulher marque, nos carregue. 


As mulheres se cuidam, ou melhor, as mulheres cuidam. Sãs treinadas, ensinadas a exercerem essa função, acabam por aprender a se cuidar de forma indireta, mas poucas sabem se proteger. O mais complexo é que quando elas se separam, uma grande maioria, perde a referência externa e interna. O fazer delas de forma geral é voltado e direcionado ao outro- marido, filho- quando o marido vai embora, ou os filhos crescem, uma angustia, um vazio, um não lugar intensifica. Elas esquecem de cuidar delas mesmas e continuam buscando proteção fora delas. Muitas param de cuidar de si mesmas, buscam proteção em lugares duvidosos e ao não encontrarem ampliam a sensação de vazio, de incapacidade, de menos valia. Demora um tempo canalizar força, atenção, cuidado, para perceber que elas conseguem ficar de pé e caminhar sem um homem ao lado,ou por trás para dar suporte, guiança. 

Terapeuticamente falando, a maioria das pessoas querem cuidado. No entanto, o meu ponto forte é o proteger. Nesse hiato tenho ofertado, cada vez mais, o aprender a se proteger, cuidando de si mesmo às pessoas que me procuram. É uma aprendizagem conjunta, tal qual o primeiro filho ensina aos pais a serem mãe e pai. É uma ilusão acreditar que isso é inato, pelo contrário, tanto o cuidar quanto o proteger são habilidades que podem ser treinadas, praticadas e quanto mais as praticamos, menos paradoxal essa dinâmica vai nos parecendo.

Na minha infância era impensado um pai trocar fralda do filho, preparar uma mamadeira. Nessa mesma infância era um absurdo uma mãe trabalhar para comprar as fraldas e o leite dos seus filhos. A dinâmica mudou e os homens cuidam e as mulheres protegem. É um ganho para a sociedade. Nossos filhos tendem a ser mais integrados do que fomos.

Estamos nos construindo como seres mais integrados e essa integração não se faz com um encaixe perfeito, imediato. O encaixe se dá mediante a troca, a atenção, a percepção. E, com isso retomo a pergunta inicial, você é mais protetor, ou cuidador? Ou os dois? Ou nenhum deles? Saber a resposta, se colocar essa questão, pode nos fazer seres humanos melhores. 





quinta-feira, 5 de junho de 2014

TAROT e principio da incerteza

TAROT e principio da incerteza um diálogo entre místicos e estudiosos.

O tarot é um jogo divinatório conhecido, conceituado, respeitado. Envolta dele há muita mística, parte dela sendo desmistificada por estudiosos e pesquisadores dessa arte. A corrente mística do tarot o compreende como sendo figuras arquetípicas de épocas remotas (Egípcios, Hebreus, Atlantes), codificadas em símbolos por grandes mestres para manter um conhecimento preservado, mas longe do olhar insano de muitos. Seguindo essa tradição, esse conhecimento se faz saber oculto passado a poucos iniciados.

Uma concepção mais recente, de estudiosos dos arcanos, já o grafam como sendo cartas que chegaram a corte européia por volta da Idade Média/Renascença. Nada nele é místico, pelo contrário, ele possui uma racionalidade que todos e qualquer um com estudo, esmero, dedicação pode aprender. Essa corrente desmistifica essas histórias as localizando no tempo, no espaço, na fonte que elas começaram a ser difundidas. 

Temos assim duas linhas que sempre se apresentam como opostas, mas são complementares. No meu mestrado, as identifiquei na ciência, como o que Nietzsche chamou de apolínea x as dionisíacas. As apolíneas são solares, claras, objetivas, racionais, por assim dizer. As dionisíacas são ébrias, circulares, lunares, dizendo assim mais toscamente. O ponto nietzscheano é que para ele, os gregos eram trágicos, isto é, equilibraram as duas forças, as duas formas. Sócrates ao privilegiar o apolíneo representaria a decadência. Os grandes oráculos gregos eram dedicados a Apolo, todavia, não resta dúvida que o jogo, o engano, a arte de ludibriar tinha um aspecto dionisíaco, isto é, de Hermes.

Seguindo essa linha durante séculos as artes divinatórias não estiveram separadas do que hoje denominamos ciência. Esses saberes eram apenas um. Nesse aspecto a ciência se desenvolveu tendo como marcador falar daquilo que pode ser dito e se calando sobre o restante. Mais claramente, os aspectos dionisíacos foram sendo retirado do mundo, deixando a arte como último subterfúgio. Até os sonhos ganharam contornos e dimensão ‘racional’, lógica- psicanálise. As artes divinatórias ganharam lugar e força de oculta; numa perspectiva, foram as guardadoras de lugar contra a mecanização do mundo. Foram.... já não são mais, pelo menos nem tanto.

I

Escrevo tudo isso porque comprei e li o livro “Curso de Tarot” do Nei Naif. Ele é um estudioso do tarot. Mais do que um estudioso, ou justamente por sê-lo, ele desmistifica uma série de bobagens que os místicos fazem, falam, situam, perpetuam: cortar com a mão esquerda, dividir o monte em três, dar seis pulinhos antes do primeiro corte, terminar a leitura sempre com a mão direita voltada para Meca, seja lá a loucura que estabelecemos para darmos sentido ao universo vazado, oco, vazio que os oráculos nos remetem.

Naif ensina a focar o olhar. Toda a sua metodologia parece ser o aprendizado de ver o tarot enquanto símbolo, registro gráfico que nos possibilita aclarar as coisas com precisão. Ele situa os arcanos maiores nas suas dimensões física, mental, emocional, espiritual, uma dessas dimensões pré-determina qual aspecto a leitura deve focar. A objeção é que um arcano representa e simboliza não apenas um aspecto, mas o todo, a totalidade. Pre-determinar a leitura do arcano a uma dimensão tende a ser uma redução perigosa. Em defesa dos estudiosos poderíamos dizer que talvez, isso seja bom, desde que fique claro que o arcano maior não é apenas um aspecto, ele é o espelho do todo. A pergunta que vale a pena ser feita em defesa dos estudiosos é: se a pergunta diz respeito apenas ao mental, porque vou abordar todos os outros pontos que o tarot encerra? Qual a necessidade disso?

E, de fato, talvez não tenha a não ser a busca por encontrar a imagem da totalidade. Imagem que os oráculos não deveriam parar de buscar, ou almejar. 

II

De todo modo, talvez, nessa pergunta, eu elucide a distinção entre nós místicos, de forma geral, dionisíacos; e os estudiosos, geralmente, apolíneos. É que para os místicos o oráculo é um ser. Um ser no qual escutamos. O oráculo é o jogo. Um jogo que toma forma, que nos devora caso não o decifremos. E decifrá-lo se faz quando nos tornamos o próprio jogo, a própria leitura, fundindo jogo, jogador, partilhante em uma única teia. Recordo de uma babalorixa... antes de começar a jogar os búzios ela me disse: “sou uma porta-voz. Eu falo o que ele me manda e não tenho permissão de mudar nada daquilo que ele me pedir para falar. Não tenho também a permissão de inventar, aumentar, alterar, mentir. Sou fiel ao que ele me diz sob pena de perder a mim mesma.”

Ela é mística. Quando ela joga, ela é tomada pelo jogo. Ela não é mais ela, ela é Ifá. A direção que ela tinha pensando em ir, se desenha e se apresenta em outra direção e lugar. Tento descrever o que acontece, leiam com atenção:

A gente olha o jogo. Recorda da pergunta elaborada pelo partilhante. Começamos a ler carta por carta (tarot), posicionamento por posicionamento (astrologia/numerologia) até que em determinado momento tudo se funde. Tudo o que era desligado, desconectado, parcial, compartimentado, sem ligação se liga, se conecta. Nesse momento não há uma ou outra coisa, causa e efeito, há uma fusão. Tudo é um único ser. Um ser que se fragmentou, que se dividiu por não suportar o peso da unidade. Mas, ali, lendo o jogo, temos com muita clareza onde ele pode encontrar a unidade, ou quem sabe, a harmonia entre todos os fragmentos dele. Muitas vezes essa leitura não tem nenhum sentido para nós, mas, milagrosamente, faz todo sentido para a pessoa. É como se tivéssemos deixado de falar dela(e) e passado a ser ele(a) sem saber quem ela(e) é mesmo. Nesse ponto já foi criado uma atmosfera psíquica, plasmática na qual há uma teia pela qual vemos, lemos, aquilo que não sabíamos segundos antes e por vezes esquecermos minutos depois. Essa teia plasmática circunda o jogo, o jogador, o partilhante e outras esferas ainda mais tênues, invisíveis por onde partilhamos nossas informações. Aquele jogo não é mais de um individuo, de uma pessoa, ele é coletivo. O aprendizado dele é para todo um grupo, um segmento, um núcleo. Nesse momento o jogo conecta o jogador, o partilhante e o próprio jogar numa rede, numa teia e não temos o direito, a capacidade de violar essas linhas e interações. Todavia, elas se mostram numa perspectiva na qual e pela qual todos poderiam sair ganhando. Essa linha não tem tempo, quebra as dimensões de causalidade, em verdade, as supera e as transmuta. O jogo fica mágico, porque tangencia, adentra outra esfera, outro campo e permite meios, mecanismos de alterar as realidades. Não apenas física, ou emocional, mas todas elas.


Já os estudiosos fazem um caminho muito mais seguro. Seguro, porque o caminho depende deles. Eles controlam tudo até mesmo o jogo. Eles não se perdem nesse universo desconhecido, pelo contrário, eles estudaram as cartas, os arcanos para não se deixarem tomar por essa força. O jogo nunca ganha vida própria, nunca sai do controle. Ele ganha sentido, significado claro, claríssimo, cristalino, quase profético também, mas por outro mecanismo. Um mecanismo de leitura, interpretação, significação racional, estudado. Uma significação metódica, racional, esquemática, regulada, testada, apolínea. Eles vão lendo carta por carta e no conjunto conseguem uma compreensão e transmissão do que foi vivenciado. 

Eles exploram níveis de profundidade e elevação de cada arcano, de cada posicionamento. Níveis que vão muito além do que muitas vezes os arcanos dizem de maneira imediata, mas devido ao estudo, ao método, muitos deles entram no invisível sem perceber e talvez seja melhor assim.  Porque são eles que voltam depois desenvolvendo um método seguro para quem deseja ler e aprender sem se perder, sem se desviar.

Para os místicos as cartas começam a falar, umas dialogam com as outras, chamam as outras, pede uma companhia ao lado. Por várias vezes, elas me diziam em ar de intimidade e dica: “observe para onde estou olhando!” E ao seguir o olhar, a postura dela, encontrava a resposta, o diálogo oculto que estava acontecendo e esse diálogo descortinava um mistério. Comparando a um vôo. Os místicos realizam um vôo cego. Saímos de um ponto e chegamos a outro que não definimos de antemão. Os estudiosos antes de tudo estabelecem um plano de vôo. Sabem onde vão pousar. O jogo para eles é claro. Eles transportam os seus passageiros sem sobressaltos, sabem evitar as turbulências.


De modo que parece que para místicos é mais importante a viagem do que o plano de vôo. Já para os estudiosos é mais importante o plano de vôo do que a viagem. Mais precisamente, o vinculo do místico é com o oráculo, com Ifá. É a ele que devemos obediência e ele é que abre e fecha nossos olhos, cala e abre nossas vozes. Já os estudiosos têm vinculo com o cliente. É para ele que se volta a leitura, a compreensão e se ele pede conselhos sobre o aspecto amoroso, mesmo que as cartas estejam gritando que se deve ver o lado espiritual, foca-se na interpretação amorosa.

A moral da história é que no holismo não podemos nos fazer especialistas por mais que isso facilite o entendimento do vivenciado. Claro que entendo a interpretação astrológica que prima pela clareza: sol-identidade, lua-emoções; marte-instinto; etc... mas isso fragmenta o ser da pessoa em 12, 24, 36. Fazer a leitura dos arcanos maiores num dos níveis é divino, aumenta a precisão em 90%, mas diminui a expressividade do ser em 97%. É algo mesmo de princípio de incerteza, isto é, a impossibilidade de precisar entre o ser e o estar da pessoa ao mesmo tempo. Mas, se a Física e as ciências da natureza podem se dar a esse luxo de um ou outro, a nós que lidamos com as ferramentas do ser, as tecnologias do autoconhecimento temos que caminhar para o ou/e do gato de Schrodinger que esta meio vivo e meio morto ao mesmo tempo. 

As artes divinatórias precisam apostar na totalidade. É nela que espelhamos o real, ou mais precisamente, que o real se espelha. Recorrer a especificação sem dúvida que a torna mais inteligível, acessível, todavia, já temos a ciência que faz isso muito bem. O tarot e outros oráculos tem que tentar refletir o todo, como faz a poesia, como nos disse o poeta: 

"Ver o mundo num grão de areia
e o céu numa flor silvestre
ter o infinito na palma da mão 
e a eternidade em uma hora. "
Willian Blake