quinta-feira, 5 de junho de 2014

TAROT e principio da incerteza

TAROT e principio da incerteza um diálogo entre místicos e estudiosos.

O tarot é um jogo divinatório conhecido, conceituado, respeitado. Envolta dele há muita mística, parte dela sendo desmistificada por estudiosos e pesquisadores dessa arte. A corrente mística do tarot o compreende como sendo figuras arquetípicas de épocas remotas (Egípcios, Hebreus, Atlantes), codificadas em símbolos por grandes mestres para manter um conhecimento preservado, mas longe do olhar insano de muitos. Seguindo essa tradição, esse conhecimento se faz saber oculto passado a poucos iniciados.

Uma concepção mais recente, de estudiosos dos arcanos, já o grafam como sendo cartas que chegaram a corte européia por volta da Idade Média/Renascença. Nada nele é místico, pelo contrário, ele possui uma racionalidade que todos e qualquer um com estudo, esmero, dedicação pode aprender. Essa corrente desmistifica essas histórias as localizando no tempo, no espaço, na fonte que elas começaram a ser difundidas. 

Temos assim duas linhas que sempre se apresentam como opostas, mas são complementares. No meu mestrado, as identifiquei na ciência, como o que Nietzsche chamou de apolínea x as dionisíacas. As apolíneas são solares, claras, objetivas, racionais, por assim dizer. As dionisíacas são ébrias, circulares, lunares, dizendo assim mais toscamente. O ponto nietzscheano é que para ele, os gregos eram trágicos, isto é, equilibraram as duas forças, as duas formas. Sócrates ao privilegiar o apolíneo representaria a decadência. Os grandes oráculos gregos eram dedicados a Apolo, todavia, não resta dúvida que o jogo, o engano, a arte de ludibriar tinha um aspecto dionisíaco, isto é, de Hermes.

Seguindo essa linha durante séculos as artes divinatórias não estiveram separadas do que hoje denominamos ciência. Esses saberes eram apenas um. Nesse aspecto a ciência se desenvolveu tendo como marcador falar daquilo que pode ser dito e se calando sobre o restante. Mais claramente, os aspectos dionisíacos foram sendo retirado do mundo, deixando a arte como último subterfúgio. Até os sonhos ganharam contornos e dimensão ‘racional’, lógica- psicanálise. As artes divinatórias ganharam lugar e força de oculta; numa perspectiva, foram as guardadoras de lugar contra a mecanização do mundo. Foram.... já não são mais, pelo menos nem tanto.

I

Escrevo tudo isso porque comprei e li o livro “Curso de Tarot” do Nei Naif. Ele é um estudioso do tarot. Mais do que um estudioso, ou justamente por sê-lo, ele desmistifica uma série de bobagens que os místicos fazem, falam, situam, perpetuam: cortar com a mão esquerda, dividir o monte em três, dar seis pulinhos antes do primeiro corte, terminar a leitura sempre com a mão direita voltada para Meca, seja lá a loucura que estabelecemos para darmos sentido ao universo vazado, oco, vazio que os oráculos nos remetem.

Naif ensina a focar o olhar. Toda a sua metodologia parece ser o aprendizado de ver o tarot enquanto símbolo, registro gráfico que nos possibilita aclarar as coisas com precisão. Ele situa os arcanos maiores nas suas dimensões física, mental, emocional, espiritual, uma dessas dimensões pré-determina qual aspecto a leitura deve focar. A objeção é que um arcano representa e simboliza não apenas um aspecto, mas o todo, a totalidade. Pre-determinar a leitura do arcano a uma dimensão tende a ser uma redução perigosa. Em defesa dos estudiosos poderíamos dizer que talvez, isso seja bom, desde que fique claro que o arcano maior não é apenas um aspecto, ele é o espelho do todo. A pergunta que vale a pena ser feita em defesa dos estudiosos é: se a pergunta diz respeito apenas ao mental, porque vou abordar todos os outros pontos que o tarot encerra? Qual a necessidade disso?

E, de fato, talvez não tenha a não ser a busca por encontrar a imagem da totalidade. Imagem que os oráculos não deveriam parar de buscar, ou almejar. 

II

De todo modo, talvez, nessa pergunta, eu elucide a distinção entre nós místicos, de forma geral, dionisíacos; e os estudiosos, geralmente, apolíneos. É que para os místicos o oráculo é um ser. Um ser no qual escutamos. O oráculo é o jogo. Um jogo que toma forma, que nos devora caso não o decifremos. E decifrá-lo se faz quando nos tornamos o próprio jogo, a própria leitura, fundindo jogo, jogador, partilhante em uma única teia. Recordo de uma babalorixa... antes de começar a jogar os búzios ela me disse: “sou uma porta-voz. Eu falo o que ele me manda e não tenho permissão de mudar nada daquilo que ele me pedir para falar. Não tenho também a permissão de inventar, aumentar, alterar, mentir. Sou fiel ao que ele me diz sob pena de perder a mim mesma.”

Ela é mística. Quando ela joga, ela é tomada pelo jogo. Ela não é mais ela, ela é Ifá. A direção que ela tinha pensando em ir, se desenha e se apresenta em outra direção e lugar. Tento descrever o que acontece, leiam com atenção:

A gente olha o jogo. Recorda da pergunta elaborada pelo partilhante. Começamos a ler carta por carta (tarot), posicionamento por posicionamento (astrologia/numerologia) até que em determinado momento tudo se funde. Tudo o que era desligado, desconectado, parcial, compartimentado, sem ligação se liga, se conecta. Nesse momento não há uma ou outra coisa, causa e efeito, há uma fusão. Tudo é um único ser. Um ser que se fragmentou, que se dividiu por não suportar o peso da unidade. Mas, ali, lendo o jogo, temos com muita clareza onde ele pode encontrar a unidade, ou quem sabe, a harmonia entre todos os fragmentos dele. Muitas vezes essa leitura não tem nenhum sentido para nós, mas, milagrosamente, faz todo sentido para a pessoa. É como se tivéssemos deixado de falar dela(e) e passado a ser ele(a) sem saber quem ela(e) é mesmo. Nesse ponto já foi criado uma atmosfera psíquica, plasmática na qual há uma teia pela qual vemos, lemos, aquilo que não sabíamos segundos antes e por vezes esquecermos minutos depois. Essa teia plasmática circunda o jogo, o jogador, o partilhante e outras esferas ainda mais tênues, invisíveis por onde partilhamos nossas informações. Aquele jogo não é mais de um individuo, de uma pessoa, ele é coletivo. O aprendizado dele é para todo um grupo, um segmento, um núcleo. Nesse momento o jogo conecta o jogador, o partilhante e o próprio jogar numa rede, numa teia e não temos o direito, a capacidade de violar essas linhas e interações. Todavia, elas se mostram numa perspectiva na qual e pela qual todos poderiam sair ganhando. Essa linha não tem tempo, quebra as dimensões de causalidade, em verdade, as supera e as transmuta. O jogo fica mágico, porque tangencia, adentra outra esfera, outro campo e permite meios, mecanismos de alterar as realidades. Não apenas física, ou emocional, mas todas elas.


Já os estudiosos fazem um caminho muito mais seguro. Seguro, porque o caminho depende deles. Eles controlam tudo até mesmo o jogo. Eles não se perdem nesse universo desconhecido, pelo contrário, eles estudaram as cartas, os arcanos para não se deixarem tomar por essa força. O jogo nunca ganha vida própria, nunca sai do controle. Ele ganha sentido, significado claro, claríssimo, cristalino, quase profético também, mas por outro mecanismo. Um mecanismo de leitura, interpretação, significação racional, estudado. Uma significação metódica, racional, esquemática, regulada, testada, apolínea. Eles vão lendo carta por carta e no conjunto conseguem uma compreensão e transmissão do que foi vivenciado. 

Eles exploram níveis de profundidade e elevação de cada arcano, de cada posicionamento. Níveis que vão muito além do que muitas vezes os arcanos dizem de maneira imediata, mas devido ao estudo, ao método, muitos deles entram no invisível sem perceber e talvez seja melhor assim.  Porque são eles que voltam depois desenvolvendo um método seguro para quem deseja ler e aprender sem se perder, sem se desviar.

Para os místicos as cartas começam a falar, umas dialogam com as outras, chamam as outras, pede uma companhia ao lado. Por várias vezes, elas me diziam em ar de intimidade e dica: “observe para onde estou olhando!” E ao seguir o olhar, a postura dela, encontrava a resposta, o diálogo oculto que estava acontecendo e esse diálogo descortinava um mistério. Comparando a um vôo. Os místicos realizam um vôo cego. Saímos de um ponto e chegamos a outro que não definimos de antemão. Os estudiosos antes de tudo estabelecem um plano de vôo. Sabem onde vão pousar. O jogo para eles é claro. Eles transportam os seus passageiros sem sobressaltos, sabem evitar as turbulências.


De modo que parece que para místicos é mais importante a viagem do que o plano de vôo. Já para os estudiosos é mais importante o plano de vôo do que a viagem. Mais precisamente, o vinculo do místico é com o oráculo, com Ifá. É a ele que devemos obediência e ele é que abre e fecha nossos olhos, cala e abre nossas vozes. Já os estudiosos têm vinculo com o cliente. É para ele que se volta a leitura, a compreensão e se ele pede conselhos sobre o aspecto amoroso, mesmo que as cartas estejam gritando que se deve ver o lado espiritual, foca-se na interpretação amorosa.

A moral da história é que no holismo não podemos nos fazer especialistas por mais que isso facilite o entendimento do vivenciado. Claro que entendo a interpretação astrológica que prima pela clareza: sol-identidade, lua-emoções; marte-instinto; etc... mas isso fragmenta o ser da pessoa em 12, 24, 36. Fazer a leitura dos arcanos maiores num dos níveis é divino, aumenta a precisão em 90%, mas diminui a expressividade do ser em 97%. É algo mesmo de princípio de incerteza, isto é, a impossibilidade de precisar entre o ser e o estar da pessoa ao mesmo tempo. Mas, se a Física e as ciências da natureza podem se dar a esse luxo de um ou outro, a nós que lidamos com as ferramentas do ser, as tecnologias do autoconhecimento temos que caminhar para o ou/e do gato de Schrodinger que esta meio vivo e meio morto ao mesmo tempo. 

As artes divinatórias precisam apostar na totalidade. É nela que espelhamos o real, ou mais precisamente, que o real se espelha. Recorrer a especificação sem dúvida que a torna mais inteligível, acessível, todavia, já temos a ciência que faz isso muito bem. O tarot e outros oráculos tem que tentar refletir o todo, como faz a poesia, como nos disse o poeta: 

"Ver o mundo num grão de areia
e o céu numa flor silvestre
ter o infinito na palma da mão 
e a eternidade em uma hora. "
Willian Blake


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