domingo, 7 de junho de 2015

SÍSIFO E O SACRO-OFICÍO: à divindade.

Sísifo enganou a morte por duas vezes, foi um mortal capaz de desafiar as leis naturais, pelo menos até certo ponto. Não obstante, foi castigado pelos deuses a empurrar uma pedra morro acima, que por efeitos das leis da Física, da lei natural, rolaria sobre ele, praticamente, o esmagando. A tentativa de Sísifo em quebrar as leis naturais o colocou numa posição de sacrifício eterno. O seu fazer se tornou rotineiro e a sua astucia, sua inteligência, sua criatividade ia sendo diluída diuturnamente.

O mito adentra nosso imaginário, visita nossos ânimos, alimenta as nossas reflexões. E nessa quinta-feira de Corpos Christi fiquei observando duas pessoas que desenvolviam suas atividades de maneira concentrada, atenta, inspirada, motivada. E realizavam um trabalho que em poucas horas seria pisoteado, que a maioria não daria valor, que ninguém saberia que foi ela que ajudou a realizar. Era um fazer anônimo, sem reconhecimento. E elas estavam lá, desde as seis, sete da manhã e com folego para desenharem e ‘colorirem’ mais uns dois quilômetros de avenida.



Essas ações me intrigam, afinal o que eles ganham em troca? Não faziam por dinheiro, não faziam por status, não faziam por reconhecimento? O que eles queriam e o que eles ganham com isso? Entenda que a ação deles é justamente o contrário da nossa. Para a grande maioria o trabalho é tripalliun um instrumento de açoite, que nos aflige dia após dia. Nosso trabalho é a própria representação do mito de Sísifo e diante dele temos que nos perguntar: há saída? Pode-se ser feliz e pleno realizando uma atividade profissional?

A maioria das pessoas escolhem uma profissão que as oprime com o peso da rotina. O tripalliun as açoita dia e noite, anos a fio, até a sonhada aposentadoria. Trabalha-se esperando o fim. Inicia-se o dia de trabalho na expectativa que ele termine o mais rápido possível. De modo que o trabalho é torturante sejam pelas condições impostas, seja pelas condições que nos impomos, mas quero falar dessa outra dimensão do trabalho que é labor, que é louvor, que é celebração, que é aproximação da divindade. Talvez esteja falando de utopia, talvez esteja sendo ingênuo, mas monges sejam eles budistas, hinduístas, cristãos, assim como artistas e alguns jogadores profissionais tem mostrado que há um estado de graça em algumas atividades. Mais, precisamente, não na atividade em si, mas na forma com que a realizam. Uma forma na qual o importante não é o eu e sim o não eu. Não um não eu, enquanto renúncia de si mesmo, mas um não eu, enquanto abertura de expressão para a divindade. 



Nessa mesma linha, sempre achei estranho saber que monges budistas faziam mandalas que seriam espargidas pelo vento. Era um trabalho tão meticuloso, tão lindo, que não entendia para que tanto esforço em vão e ali nas ruas de BH eu via a mesma relação. E, no caso budista, as mandalas são realizadas com o intuito de se desenvolver o desapego. Elas são feitas com todo carinho, com todo cuidado, com toda atenção na expectativa de o vento as leve. 


Na quinta-feira do dia 6/6/2015 fui correr no Parque Municipal e vi uma moça linda e solitária desenhando no chão. Me deu vontade de perguntar: você está utilizando pemba para fazer os desenhos do santíssimo? Não perguntei, apenas a observei no seu trabalho silencioso e profundo. Em torno de uma hora depois, saindo do parque lá estavam várias pessoas sentadas, utilizando de serragem para colorir os desenhos da moça. Tinha um rapaz cuja energia dele me chamou atenção: pernas cruzadas, olhar atento e fixo, exalando uma amorosidade que o tomava, mas não o envaidecia. O que ele fazia era belo, mas ele sabia que aquela beleza passava por ele. Fiquei olhando para ele com vontade de perguntar: não sabe que daqui a poucas horas centenas de pessoas vão pisar no seu trabalho? Não sabe que daqui a instantes ninguém vai saber quem é você? Eu que escrevo sobre você não sei quem é você? Por que acordas às 4 horas da manhã de um feriado para uma ação assim?

Também não perguntei, mas a energia do moço, das outras pessoas que tomavam a Avenida Afonso Pena me contavam que ele fazia aquilo para a divindade. Sim, aquele era um trabalho de devoção à divindade. Ele não estava ali por ele, fazendo para ele. Ele não tinha nada a ganhar, porque não havia e não há preço que pague o que ele estava dando e recebendo naquele momento e na vida dele. Ele estava conectado a sua divindade de adoração e fazia aquilo por acreditar que ela ficaria feliz e a felicidade da divindade era a felicidade dele. Adorar a divindade que ele cultua era a forma de ele sentir-se pleno, integrado, harmônico, um ser humano melhor. E a beleza que a gente via era expressão desse amor.

Um amor que não é autoral, não tem que ser. Ele não fazia aquilo para o padre, ou para a esposa, ou para os filhos, nem mesmo para ele; ele fazia para a divindade, no caso Jesus. Isso não tem preço, não tem negociação. O valor dessa ação não cabe em nenhuma quantificação. Isso que realizou está além do mercado e das teorias de exploração. Não temos, pelo menos não conheço um conceito no qual a reificação pode ser entendida ao avesso do que ele é, ou seja, uma integração na qual o seu fazer encontra-se refletido no objeto que foi produzido- LABOR. É o mais perto que podemos chegar.

Sacro-oficio é o outro conceito que podemos tentar nos aproximar, isto é, tornar sagrado o seu fazer. É como se diante da amargura de Sísifo encontrássemos uma forma de significar o nosso fazer. E esse significado pode ser dado de diversas maneiras: 1- pelo salário recebido; 2- pelo prazer e reconhecimento conquistado; 3- e é o que estamos tratando o de entregar o seu fazer a uma divindade. Tornando o seu realizar uma adoração à divindade.

Nessa perspectiva, aquela energia era voltada toda a ela, para ela. Não era uma renuncia ao eu, ao ego, mas era uma entrega a divindade. Aquelas pessoas não estavam centradas no que aconteceria, que em pouco tempo o vento, as pessoas pisariam na realização delas, o centro da energia delas estava no ato de que elas se deram à divindade.
Eu não achei outro nome senão estado de graça. É um estado de beatitude, de plenitude. Não se tem nada para receber, não há valor que possa pagar. É um ato que não tem preço. Incomensurável. É basicamente o que Bhaktivedanta Swami Prabhupada ensina no movimento Hare Krishna, isto é, oferecer, ofertar o seu fazer a divindade.




É lindo!!! É belo!!! Fossemos capazes de trazer essa presença e essa energia as nossas atividades, ao nosso trabalho, a nossa rotina, re-significariamos Sísifo, seríamos capazes de vencer as leis naturais no que elas nos apresentam de repetição e mesmice, tripalliun e açoite. 

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