sexta-feira, 27 de maio de 2016

CORPUS CHRISTIS: e o estupro da menina.


4É que, como num só corpo, temos muitos membros, mas os membros não têm todos a mesma função, 5assim acontece conosco: os muitos que somos formamos um só corpo em Cristo, mas, individualmente, somos membros que pertencem uns aos outros. Rm 12
A imagem do corpo de Cristo é aos meus sentidos a mais significativa da mensagem do evangelho. A exortação paulina de que somos um só corpo é bela e sábia.
Bela por ser mística e transcender o tempo, o espaço. Sábia por ser temporal e propor uma reflexão edificadora. Nela o apostolo tardio pede para que imaginemos o corpo, com seus pés, mãos, rosto, cabeça e todas as partes. Qual a mais importante? Nenhuma, o corpo só é corpo na integração.

Nenhum corpo pode ser todo perna, ou todo olho, ou todo boca, ou todo cabeça, a não ser que se faça monstro. A beleza do corpo e a sua razão de existir está que cada parte se completa, se complementa. Invariavelmente, são sempre aos pares, mas mesmo sendo duplo (mãos, olhos, rins) é singular.



O corpo é então a melhor mensagem para nos compreendermos e para convivermos com os outros. Paulo fala do corpo de Cristo nos chamando para refletir sobre o corpo da igreja. Nós queremos refletir sobre o corpo de Cristo e a estrutura social.

Desse modo, esse texto vai para amigos(as), inimigos, afetos, desafetos que sofrem, que tem sofrido.

Esse texto tem o sentido de ser um conforto, um abraço, um balsamo, um copo de água, uma roupa de frio, um prato de sopa para quem está sentido o clima gélido e estéril dos acontecimentos recentes.
Esse texto é uma pena (diria uma Primavera xamanica) para alguns que acreditam que entraram em outra dimensão e que quando acordar o mundo vai estar no lugar.

Enfim, esse texto é para quem ainda sente, e alguns sentem tanto, que a alma está doendo, sofrendo.

Tentem ler com o coração, porque é tempo partido, tempo de homens partidos, divididos, cindidos, fragmentados. Tempo de cacos e espelhos quebrados. Em vão tua imagem fragmentada servirá para construir o todo que perdeu, que escapou de ti, que foge na medida em que tocas, que escoa quando tenta reter. Nesse tempo, nesses tempos é preciso cor+ação. Sentimento que transborda de si em direção ao outro e se unifica no abraço. Se funde nesse encontro do eu, do outro, que não é mais nem outro, nem você. É um novo corpo que estamos construindo. E, como todo novo corpo, como toda troca de corpo têm dores, gritos, gemidos. Mas, ainda não é o fim.


II

É loucura falarmos da construção de um novo corpo, mas é a imagem que me salta aos olhos quando os amigos me mostram e nos levam a observar os acontecimentos que vem visitando cada parte do planeta. Mencionando apenas os mais recentes: os atentados em Paris, na Somália. O caso da Valle em Mariana, Trump nos EUA, o golpe no Brasil, para falar de uns.

A gente quer chamar de bem e mal, de certo e errado, mas eles nos pedem mais distanciamento, menos julgamento para compreendermos uma nova lógica, uma nova forma de conceber e entender o universo.



Essa nova lógica é orgânica, sistêmica, neural. A Terra não pode ser mais concebida como uma massa inerte e sim como um ser vivo que regula toda vida planetária, com implicações cósmicas. Essa rede interliga os seres, as pessoas. Muitos de nós nascemos desconectados, mas muitos estão plugados nessa rede. Eles estão ligados uns aos outros, uns com outros de uma forma muito harmônica, criando e produzindo alterações mentais, perceptivas pelo simples fato de estarem juntos. Esse campo de ativação está se espalhando, está crescendo. Esse cabeamento ótico conecta a Terra ao universo. Ela se faz um ser vivo, com linguagem própria, vontade própria e muitos conseguem ouvi-la, outros vê-la, outros cheirá-la, outros a decifrarem e a decodificarem. Eles formam um corpo, um novo corpo tanto no seu estado material como no seu estado não físico e não local. É então algo físico, molecular, biológico, químico, orgânico, celestial, interdimensional, produzindo mudanças, alterações em nossa forma de estar no mundo.

Por milhares de anos a capacidade de pensar, de manipular símbolos, de operar signos abstratos dentro da mente nos fez humanos. Deu-nos a capacidade de dominar a natureza, de subjuga-la, de submetê-la aos nossos desejos, caprichos e vontades. Nós dominamos a natureza e acreditamos que isso não teria preço, consequência.

Dentro dessa lógica de domínio e subjugação há a exploração, a escravidão, a opressão. O pênis se tornou símbolo dessa força.

Acreditamos que poder é ter essa força, esse pênis, essa capacidade de dominar e oprimir, subjugar e vencer. Essa lógica é forte na dimensão do capital e maneira de lidar com o mundo, com o outro.

Mas, o problema não é o capital.  A questão é a crença de que o lucro pertence a apenas alguns. A questão é a miséria do pensamento capitalista que acredita que a riqueza é bem individual e não coletivo, que acha que todo corpo é lucro e não prazer, festa, troca, dádiva. A tristeza é a difusão, até mesmo dentro da igreja de Cristo, que os 10% de cada um pertence a apenas um e não ao todo e a todos. E, não há outro nome para quem se apropria daquilo que é de todos, sem restituir e compartilhar novamente com o todo, senão ladrão.

Numa nova lógica orgânica, sistêmica, neural como estamos vivenciando, não mais se permite isso como natural. Não mais se tolera os monopólios, os oligopólios como vontade divina. Já não se aceita as normas do mercado como sendo uma voz sobrenatural. Embora a ambição, a vaidade, o orgulho tenham impulsionado a humanidade até aqui, foi ela também que manteve a roda girando, criando a expectativa de que o explorado pode ser o próximo explorador. Mas, essa sedução já não funciona mais. Eles estão brigando entre eles, querendo os restos dessa lógica miserável que acredita na exclusão.

Nessa nova lógica não estamos falando mais de esquerda e direita, coxinhas e mortadelas, estamos falando de seres humanos que despertam para além do pensar e apreendem uma linguagem amorosa de compaixão e outros que presos ao pensamento não conseguem ver, entender, compreender, respeitar a alteridade. Çeres que veem apenas os iguais e combatem com ódio os diferentes. E, é um engano acreditar que essa lógica da fagocitose vai parar em algum momento. A lógica é que ao final reste apenas ele mesmo se observando diante do espelho. Nenhum diferente, nenhuma diferença, tudo igual a ele. Vimos isso no nazismo, no fascismo, nas ditaduras. Vimos a intolerância diante do outro, do diferente. Vimos que essa massificação passa pela militarização, nada contra os militares, desde que compreendam que a ordem do dia é para os quarteis e não para as escolas, para os quartéis e não para as praças, para os quarteis e não para as casas. Desde que entendam que o corpo social tem atletas, militares, artistas, políticos e nenhum deles tem o direito de reduzir o outro a sua imagem e semelhança. Nenhum corpo pode ser reduzido a uma única parte.
Essa redução é o que denominaríamos de câncer social. Um processo doentio no qual a parte deixa de sentir parte do todo e assume funções que não lhe compete. Algo como Alexandre Frota, Revoltados online e companhia darem sugestões para educação.

O Frota e seus companheiros que estão orgulhosos de terem sido recebidos pelo ministro da educação/cultura tem que compreender qual parte do corpo eles pertencem- são um pênis. Mas, recebe-los não faz mal, ouvi-los também não, acreditar que eles podem direcionar todo o corpo.... é disfunção erétil.

II

Ontem essa tristeza que tem levado muitas amigas as lágrimas me invadiu. Não consegui identificar de onde ela vinha, o que ela queria, o que ela dizia. Na verdade, só fui compreender como tristeza mais tarde, já era madrugada.

Nesse momento, eu vejo como de fato os çeres se separam e se distinguem. Não é por pensarem ou deixarem de pensar, não é por ser coxinha, ou por ser mortadela; separam-se por sentirem ou não. E há um fosso que aumenta, um abismo que racha tudo ao meio. E, como isso é cansativo, desgastante, porque não importa os fatos, não interessa os acontecimentos, não interessa as intenções, menos ainda as razões; estamos mostrando quem somos pela vibração.

Não é questão partidária, religiosa, embora tudo isso possa camuflar o verdadeiro motivo. Há pessoas que pensam e não conseguem ir além da lógica. E a racionalidade está em colapso. Poderia dar milhões de exemplos, mas me contentarei em dizer que diante de um estupro coletivo há quem culpe a moça. No entanto, eles não apenas a culpam, eles ofendem, eles seguram o pênis dos agressores nas mãos e os carregam como troféu. São quase heróis. A moça com sua vagina dilacerada é mais uma, como tantas outras, que cumprem a sua sina de mulher. Esse posicionamento machista é encontrado entre homens e mulheres, de todas as idades, de todos os meios.

Assim, o que chocou não foi apenas a brutalidade do ato, mas nenhum (eram 30) broxar diante da violência. Pelo contrário, isso era mais excitante. E, a excitação prosseguiu, porque colocaram as cenas nas mídias sociais. Mas, aí é que a brutalidade se torna banalidade, porque os indignados veem até o fim e passam para frente até o último contato. A menina será estuprada por mais 10/15 anos todos os dias.


Choca ainda mais saber que a cada dez bailes funks, ou a cada dez Raves, ou a cada cinquenta calouradas há nó mínimo dois, a três casos como esses. Não com 30 homens, mas três, cinco. E, que muitas meninas não relatam, porque tem medo e outras por não verem o ato como violência. É mais maluco ainda o fato de que na busca pelas novinhas, a maioria esmagadora de gravidas na adolescência o são de homens na faixa dos 25/30 anos, mas sempre condenamos as grávidas na adolescência.

Tudo isso ontem causou tristeza, mas, a dor não terminou aí. A dor ficou maior porque colegas de grupo virtual, lindas, belas, pensantes, independentes, nos impediam de abraçá-las. A dor era tanta, a revolta era tamanha que cada homem era visto como um inimigo, cada homem era um estuprador. E, não somos? Claro que sim!! Como não seriamos!
O discurso dessa moça/mulher dizia isso, deixava claro: ser homem era ser opressor. Eu quis levantar a mão e dizer: sou negro, sei o que é isso!! Sei o que é sentir o mundo contra, mas fiquei quieto. Com uma vontade de gritar. Foi quando compreendi que minha vontade era novamente, outra forma de estupro, outra forma de violência. Assim, eu esperei.



As imagens do corpo de Cristo foi vindo. A imagem de um novo corpo foi desenhando. A violência e a associação entre o corpo da mina estuprada, o corpo do travesti crucificado, o corpo das mulheres agredidas, o atentado contra a atriz famosa por um fã, as agressões sexistas a Dilma, todos corpos violados.

Corpos que não reconhecemos como sendo de Cristo, nem delas. Corpo que cada homem de maneira congênita tende a achar que é seu, feito para ele. Corpo que enseja e traduz toda opressão que relatamos do capital na sua busca pelo lucro. O corpo da mulher é tido, antropologicamente, como a 1ª e talvez única propriedade privada de cada homem. O corpo da mulher é tido como um objeto.



A mulher não é vista como uma igual e nisso vem a razão do texto- aprendermos a conviver com a alteridade, com a diversidade. Odeiam-se tanto as mulheres, porque elas são a expressão máxima da diversidade. 


Não se pode transformar uma mulher em homem, um homem em mulher e isso provoca todos os tipos de agressões, desencadeia todas as formas de violência.






Caminho para o final, mas entrando na parte mais complexa de tudo isso, que é sermos capazes de sair das nossas dores individuais, de nossos guetos e nos abraçarmos. Abraçarmos todos aqueles que independente de idade, cor, gênero, opção sexual, condição social é capaz de se reconhecer no outro ou não.



No depoimento doido da maioria das mulheres que amo e respeito percebi que precisamos ser capazes de ultrapassar e transcender nossos limites, nossas diferenças, ou estamos imersos à barbárie. Estamos fadado a sociedade narcísica de que não há face além da nossa, ser além de nós, corpo além do próprio, gozo fora o masturbatório. Porque numa ato em que 30 homens se deitam sobre um ser desacordado, fora violência, houve apenas masturbação.

De forma que, ou conseguimos ir além do ato de pensar e com isso sentir as injustiças do mundo e nos fazermos fraternos, ou de fato estamos fadados a guerra absoluta contra o outro, até que só reste nós e a nossa imagem no espelho, se é que a suportaremos.


Precisamos do outro. Precisamos de cada parte. Precisamos compreender que somos um corpo. Precisamos compreender que mulher é mais que vulva e vagina e homens podem ser mais do que pênis. Podemos começar a descobrir o coração.

 


sexta-feira, 20 de maio de 2016

OLIMPÍADAS E DEMOCRACIA: a gente se vê por aqui.


Eu estava indo para uma reunião mensal de caráter espiritualista que promovemos quando vi a organização das ruas para que a tocha olímpica passasse. Nisso um amigo me relembrou a frase: “O importante não é vencer e sim competir!” 

Essa frase nunca me fez sentido dentro do campo de futebol, ou de qualquer outro locus de disputa. Todo atleta entra na arena para vencer, para ser o melhor e nas palavras de Mike Tyson: “o segundo lugar é a mesma coisa que o último.” Para o atleta só vale a vitória, embora a medida em que vamos aprofundando o nível da disputa, vamos reconhecendo que toda luta desportiva é para superar-se e aprimorar-se.

Logo, por intermédio do amigo percebi que o sentido dessa frase é política e não esportiva. Esportivamente, queremos vencer, vencer, vencer, porque esse é o nosso ideal. Honramos o nome de Minas no cenário esportivo mundial. Mas, no cenário político não pode se ter vitórias a qualquer custo, a qualquer preço, sob qualquer pretexto. De forma que a partir dá frase veio o desfilar de imagens em minha cabeça e pela 1ª vez compreendi que o contexto, ou aplicação dessa frase não é esportiva e sim política. É o que tento demonstrar nesse post, mas antes vou percorrendo caminhos filosóficos e teatrais, vem lendo comigo e ao final deixe seu comentário.



OS GREGOS

Ahhh, os malditos gregos!! Entre eles uma coisa eram muitas. Tudo tinha símbolos e profundidades cada vez maiores. Era um universo repleto de metáforas e significados que se aprofundavam ao mesmo tempo em que se expandiam, iam da raiz ao cosmos em tudo que faziam.


O teatro, por exemplo, era a um só tempo diversão, como um ritual sagrado, uma catarse coletiva. Nele os cidadãos expurgavam suas dores, ao mesmo tempo em que os artistas com suas personas personificavam situações, seres, atos. Essa é uma condição complexa que os governos e as pessoas autoritárias dificilmente compreenderão, a saber, essa capacidade da arte em ser nada e dizer tudo. Olha o Marcos Feliciano que não consegue compreender o papel de pastor que ele representa, porque simplesmente não é capaz de ser e se deixar ser vivificado pela ritualística cristã que ele encena. Ele não vive Cristo, por isso adultera Jesus. Cospe na cara dos fracos, zomba das torturadas. Mas, vamos a outro exemplo do mundo grego:

A praça era a um só tempo locus das discussões políticas como também espaço das interações pedagógicas. Em verdade, entre os gregos muitas das coisas que seccionamos, dividimos é para eles era um todo quase que indivisível, por exemplo: Polis + ética = política.














Entre eles era impensável a distinção entre política e ética. Como era também impensável a propositura de leis que tivessem o caráter punitivo antes de ela ser pedagógica e instrutiva. Afinal, como punir aqueles que não educamos?  E como considerar educado aquele que desrespeita a lei que ele mesmo criou? Em outros termos, como se reputa político aquele que descumpre as leis da Pólis? E, como podemos aceitar que permaneça entre nós aqueles que criando as leis que regem a cidade a desrespeitam para satisfazerem-se e locupletarem-se?

Entre os gregos isso não era tolerado. Entre os gregos havia o exilíio, a pena de morte e as insurreições contra os malditos que usavam da cidade como se ela fosse a sua casa. E, podemos vislumbrar cada uma dessas ações tanto nos diálogos platônicos quanto em algumas peças teatrais.

APOLOGIA DE SÓCRATES



Num primeiro momento temos a Apologia de Sócrates quando o mesmo é levado ao tribunal por cidadãos da cidade; tudo bem que de caráter duvidoso, mas cidadãos que alegam que o velho filósofo estaria seduzindo os jovens ateniense e ensinando sobre a existência de outros deuses. A defesa do eterno pai da filosofia é um show, mas os jurados o sentenciam a pagar 30 moedas. Sócrates filho da cidade, legislador, olha para os seus concidadãos e deixa claro que caberia apenas uma sentença: ou ele é inocente e assim não deve pagar nada, pelo contrário, deve receber até retratação dos seus algozes; ou ele é culpado e deve receber a pena máxima- a morte, como reza a lei que ele formulou e segue.

Séculos depois alguns comentaristas veem uma intransigência socrática, afinal seus discípulos, amigos, todos disseram que pagariam para ele a quantia e ele voltaria à praça. Mas, para Sócrates o que estava em jogo não era apenas o seu nome e sim toda cidade, toda organização política e social. Imagine se cada cidadão começasse a entrar com processo de impedimento para cada governante que cometesse pedalada fiscal? Desculpem, entusiasmei.

Imagine se cada tribunal acolhesse e acatasse com finalidades espúrias pedidos de impedimento de legislatura? Mais precisamente, imagine se os signatários da lei a descumprissem em comum acordo e a aplicassem somente quando conveniente? Essa leviandade geraria um profundo sentimento de instabilidade, afinal a qualquer momento, por qualquer motivo, a maioria pode castrar, suspender os meus, ou seus direitos, o direto de qualquer um, por qualquer motivo. É essa clareza, que Sócrates nos deixa na apologia, mas ele nos ensina mais. Ele nos ensina que não há indivíduos acima da lei e que nenhuma lei pode perder o seu sentido original e primário de ser justa. Ele nos ensina que acima da legislação há a justiça e se a primeira pode ser flexibilizada, a segunda é imóvel. Com sua venda nos olhos, com sua balança numa das mãos e a espada na outra, ela equilibra e corta. Esse corte é a tudo aquilo que ultrapassa o que para os gregos é fundamental: a ordem, o cosmos, o equilíbrio.




Mas, essas observações se aprofundam em Críton e em Fédon, outros diálogos socráticos.

CRÍTON

Em Críton, o jovem discípulo chega feliz e saltitante, dizendo ao seu mestre e amigo algo como: “já subornei o guarda da noite. Já contratei a embarcação que te conduzirá até outra cidade. Lá os nossos amigos estarão te esperando para que tu vivas feliz!!”
Sócrates olha entre consternado e decepcionado para seu amigo e pergunta: “você não entendeu nada do que ensinei na praça por todos esses anos?”

É similar a Pedro no alto da montanha cortando a orelha do centurião e Jesus olhando e dizendo: “aquele que é pela espada, perecerá pela espada!” E, pegando parte da orelha do moço, recoloca-a no lugar.


As mensagens dos mestres são assim em atos, em diálogos e o que Sócrates estabelece com Críton diz respeito às leis, as regras, as normas, ao dever. O velho filósofo explica como que ele que lutou contra a tirania, como ele que defendeu a democracia, que ajudou na criação das leis de Atenas, agora que as leis o julgavam, como ele poderia fugir? Como ele poderia após ter vivido mais de 70 anos sob as leis de uma cidade, tendo visto grandes homens nascer e morrerem, simplesmente, abandonar tudo e pedir exílio em outra localidade? Não, ele não poderia. Ele responderia e acataria as leis que a sua cidade-estado criou. Ele aceitaria a pena capital, a própria morte, mesmo ela sendo aplicada injustamente no seu caso. De todo modo, o velho filósofo não concebia pagar a injustiça com injustiça.

Eu não era discípulo de Sócrates, fosse eu teria proposto a guerra civil. Como Pedro partiria para ação armada dizendo entre gritos e atos: “no mestre ninguém toca!!” Mas, tanto Sócrates, quanto Jesus e tantos outros mestres acreditam que essa vida é apenas uma passagem, um momento, um instante. Sendo assim, não se prendem ao corpo, não se agarram a uma vida sem sentido, sem valor de ser vivida. Buscam significar a existência sendo o melhor que podem. E, como corromper aquele que sabe o valor da própria alma? Como cooptar, seduzir aquele que sabe o valor da sua honra? Como amedrontar aqueles que sabem que são eternos? E, como hipócritas podem aceitar, tolerar aquele que lhe é diferente e os ameaça? Não conseguem. Os amigos escolhem a traição, os mais distantes, o silêncio, os opositores a cicuta, ou o impedimento. Longe de comparar Dilminha com esses dois seres maiores da história da humanidade, mas não posso deixar de reconhecer que ela em seus atos e comportamentos busca representa-los, os encena com grande inspiração.

No entanto, o exemplo que temos de guerra civil fica mais clara não na história e sim na tragédia, pelo menos é o que Sófocles nos conta primeiro em Édipo e, sobretudo em Antígona.

ANTÍGONA

A história de Édipo é mais famosa e clássica, mas a tragédia do seu erro, como não poderia deixar de ser diferente em Sófocles, entra em sua família, penetra em toda cidade.

Édipo teve 4 filhos-irmãos com sua mãe, Jocasta. Após o exílio do pai, os filhos estabelecem o acordo de revezarem-se no poder anualmente. Só que o maldito Éteocles no fim do seu mandato não quis tirar o anel de Sauron dos dedos. Seu irmão toma outra atitude ainda mais exagerada e descabida, recorrer à cidade rival, ao exército rival para invadir a cidade natal e destituir o irmão. Na luta insensata pelo poder os dois morrem e o poder cai nas mãos do Cunha, ou melhor, de Creonte.
Por enquanto, nada de trágico, ou muito trágico. A tragédia começa quando Creonte tio dos fraticidas assume o poder e no seu 1º ato impede que Polinice receba os rituais fúnebres. Ele não permite um cidadão, na verdade, ele não permite um ser humano ser enterrado e entre os gregos caso isso não aconteça estaríamos diante de uma alma penada. Para Creonte o corpo morto deveria ficar largado na rua como o de um bicho e isso revolta Antígona.
Ela não toma partido na briga fratricida e nas legislaturas e propositivas masculinas, mas a barbárie de não permitir o corpo do seu irmão de ser sepultado, isso ela não consegue deixar passar.




Antígona nossa heroína não aceita essa sanção. Ela compreende o erro do irmão, ela legitima o poder do tio, mas ela não pode aceitar que uma regra humana seja maior do que uma divina. Ela não pode conceber que o direito da pessoa possa ser restringido pela convenção humana. Ela enterra o irmão escondida. O governante, que vai se transformando em déspota diante da intransigência, não cabe outra solução a não ser punir o culpado, independente de quem seja.

Deveria falar mais da tragédia, mas indico a leitura da obra e caminho para o final dizendo que Ismênia irmã da heroína morre, Hemon filho de Creonte e marido de Antígona morre, Eurídice esposa de Creonte se mata ao saber da morte do filho.

ACENDENDO A TOCHA

E agora, ainda vivos, podemos retornar à chama olímpica. As cidades estados gregas eram muitas, com muitas regras, normas. Conhecemos mais a de Esparta e Atenas, mas, os gregos como toda comunidade humana é repleta de tensão e conflitos. Os jogos olímpicos na Grécia tinham aquela representação de ser algo simples, banal, sem sentido, mas repleto de significado e simbolismo.


Os jogos representavam entre muitas outras coisas um momento de reflexão, não meramente esportiva, e sim acredito eu, que política. Era ali durante os jogos, em uma cidade vizinha, possivelmente rival, que discutia-se política, estabelecia-se tratados, conseguia-se armistícios, parava-se guerras e contendas. 

Os jogos olímpicos, longe de serem apenas atividades esportivas, festivas eram um momento de plena reflexão acerca da paz e da guerra. Eram nos jogos olímpicos, que cada cidade estado transformava os seus representantes em defensores da sua polis. Essa defesa em si mesma já era uma honra. Uma honra que igualava o vencedor dos jogos a condição de herói e igualmente demarcava a posição ilustre dos demais competidores, já que sem eles não haveria a honra da competição e da vitória. 

Moral da história: o barão de Coubertin imortalizou uma frase: “o importante não é ganhar e sim competir!”

Na seara política é a competição que efetiva e concretiza o jogo democrático. É no respeito a esse jogo que se faz fundamental que o derrotado aceite a derrota para que o próximo jogo aconteça, que o vencedor valorize o seu opositor para que haja uma próxima disputa. Há aqui uma dialética, uma disputa, uma busca por superação que aprimora-se ao mesmo tempo que se aperfeiçoa o jogo. 

Quando o derrotado insufla seus eleitores afirmando que a vitória do grupo rival foi desonrosa, ou ilegal, enseja-se a guerra civil. Quando os vencedores tripudiam daqueles que venceu enseja-se um sentimento de que no jogo vale a vitória a qualquer custo, sob qualquer termo. E, esses golpes não valem nem no esporte e menos ainda no mundo da política onde cada gesto envolve milhares de pessoas e seres. 




Assim, parece-me fundamental que reconheçamos o valor da tocha olímpica e dos jogos olímpicos, que ela possa nos dar o que os gregos conheceram e ensejaram: o respeito às regras do jogo, o respeito à democracia. O valor da paz e o peso trágico da luta fratricida entre irmãos pelo poder.


De modo que essa tocha, com sua luz, nos traga a chama da vitória, do respeito, da tolerância. Nos permita honrar cada adversário com o melhor de nós, sem que tenhamos que burlar ou condenar uma pessoa por um crime que ela não cometeu.

Na política, competir é mais significativo do que ganhar, porque nela a regra da polis mantem-se intacta. Porque a democracia é maior do que os competidores. E, não se tolera ou se admite que alguém por motivos lindos, tirânicos, ou escusos a alterem.

É somente respeitando a competição que todos vencem, ou melhor, que a insatisfação do perdedor não coloque em cheque todo o espírito esportivo que flameja na vida política, econômica, social. 

Enfim, na preparação que se fazia para a passagem da tocha, meus amigos espirituais ensejaram um pedido para que esse fogo aceso, passando de cidade em cidade, de Estado por estado, de mãos em mãos vá acendendo em nós essa luz da esportividade política. O respeito a soberania das urnas, do voto. 

Enfim, que o fogo olímpico acenda a chama cristica e consciencial daqueles que julgam ser políticos, mas desrespeitam as normas da polis, as regras do jogo para beneficio próprio.