domingo, 12 de janeiro de 2014

Unificações ou tentativas



Alguns usos, termos, conceitos não sabemos ao certo de onde vêm, como nascem. O termo ‘criança interior’, ‘feminino ferido’, ‘sombra’ fazem parte desse jargão. Já ouviram falar disso?

Alguns sim, outros não. A maioria deles deriva, ou se fundamentam na analítica junguiana. Jung, um psiquiatra suíço, discípulo de Freud, para muitos o “príncipe herdeiro” buscou na mitologia, na filogenética e ontogênese coletiva o entendimento desses que se tornariam mais tarde conceitos. Partindo de estudos filológicos, mitológicos, psicanalíticos, o psiquiatra suíço encontrou ‘estruturas’ psíquicas que iam além do aspecto sexual demarcado por Freud. A tentativa de compreender esse espaço, esse território explorado pelas artes divinatórias (astrologia, tarot, I Ching), por loucos, filósofos, artistas, ajudaram a refletir a imagem de arcabouços psíquicos inerentes a todos os humanos, pouco explorado e abordado pela ciência oficial. Sendo que, a pouca exploração desses espaços acabam resultando no apartamento do individuo com o cosmo, nas doenças mentais, nas neuroses como diagnosticou Freud. Esse é um campo de muita pesquisa, de muita literatura, com muita informação que grande parte dos psicólogos possui.

Alguns devem estar se perguntando: ‘qual a importância disso na vida humana, concreta, palpável? O que muda na vida de alguém apropriar-se desses conceitos e conscientizar dessas experiências?”
E a resposta mais sincera é: tudo e nada. A) Nada, porque caso não saiba da existência desses conceitos, ou quaisquer outros de qualquer natureza, não muda o fato de que ele existe e que a pessoa pode saber lidar com ele muito bem. Como Krishnamurti enfatizou milhares de vezes: “a palavra não é a coisa.” Nós lidamos com essas coisas, independente de sabermos ou não. B) Tudo, porque se formos capazes de compreendermos o conceito, de observarmos em nós o fenômeno temos melhores condições de lidar com a situação. Exemplificando- a força que atrai os corpos em direção ao solo sempre existiu, mas é com Newton que a gravidade passa a existir. E de posse do conceito de gravidade fomos capazes, enquanto humanidade, de mudarmos nossa relação com o espaço, com a densidade, enfim, revolucionamos o nosso fazer no mundo.

E aqui estamos diante de um impasse. Epistemologicamente nós avançamos cada vez mais rápido e com mais segurança. Não sabemos para qual direção avançamos e menos ainda o que esse avanço representa, de todo modo, crescemos, expandimos no terreno intelectual, na área da informação. Proporcionalmente, no quesito emocional não avançamos. Não porque falta conhecimento é que o campo emocional é de fato encarado como sendo de menor importância e relevância. Os psicólogos, os terapeutas estão aí e não me deixam mentir. Parte do sofrimento humano é destratado, ignorado, subestimado, negligenciado porque não confiamos que exista ferramentas competentes para auxiliar e que esses ‘males’ são oriundos da mente/alma e não do corpo. Nessa direção de desconfiança se aposta na psiquiatria, ou melhor, na hipótese de que sendo o nosso corpo uma máquina, a psique não é nada diferente, de tal forma que se pudermos ajudar a fisiologia corporal fabricar os hormônios que lhes faltam, curaremos as doenças da mente, da alma. Nada mais lógico, mas nada tão falso. Assim, o universo emocional continua inexplorado, já que a natureza dele não é a mesma do corpo, pelo contrário até. O corpo como máquina é uma relação possível, mas a alma/mente como máquina é uma comparação equivocada que acirra a dor, o sofrimento.


A divisão entre corpo e mente se acentua. O corpo fica por conta da medicina e a mente/alma por conta das religiões. Os intermediários ficam sem um lugar, mais precisamente, ocupam um lugar que recebe a desconfiança dos doutos de um lado, dos religiosos do outro e o desconhecimento da população de forma geral. Afora esse lugar ingrato ocupado entre psicólogos, terapeutas, filósofos clínicos e tantos outros há entre nós a posição ora iconoclasta, de vanguarda que cai em rebeldes sem causa, ora a visão proselitista de que fora da ‘nossa abordagem’ não há vida inteligente e possibilidade de triunfo.
Mas, escrevo tudo isso, porque eu gosto das pontes, das travessias, da união entre os mundos, da complementaridade dos opostos. Gosto das combinações e do trabalho de mesclar, unificar, tentar deixar claro aos opostos onde eles estabelecem intercessões. E, agora estou na fase de buscar, pesquisar, explorar, estudar essa intercessão no espaço psíquico. Primeiramente, busquei isso no espaço religioso, depois no filosófico, em seguida no cientifico. A tudo isso resolvi denominar energético. Agora, há cinco anos, mais ou menos, três com mais dileção, tenho acompanhado o espaço psíquico.

II

O espaço psíquico é imenso, incomensurável. A cada movimento fico mais intrigado com o alcance desse universo. Mas, como um explorador, eu gosto é de verificar as fronteiras, os limites, precisar onde a savana se torna caatinga, onde o mar vira sertão, onde o cerrado se translitera. Foi por essas vias que me dediquei, pesquisei e estudei as fronteiras do espiritual. Passei uma boa parte da vida lendo, freqüentando esse universo espiritual tendo na Filosofia a ponte que me permite transitar entre esses universos, saber para onde apontam, conhecer os seus limites, mesmo quando afirmam não ter.

Concomitante a essa busca, sempre houve a das unificações e foi visitando o universo da Física que me ficou claro que elas não são apenas possíveis como são elegantes, no sentido matemático do termo. A história da Física, que tem sido o modelo de ciência e cosmovisão é a história das unificações: Platão (o ser e o não ser); Newton (mundo sub e supra lunar); Einstein (tempo e espaço); e agora a tentativa do campo unificado ou teoria de Tudo. Nesse olhar, meu orientador, um físico, me ensinou que o conhecimento se dá não meramente no acerto, mas na margem de erro. Quanto mais precisa a margem de erro, mais proximal o conhecimento. A busca então é pela margem de erro.

E dentro dessa margem de erro a pergunta inicial é: onde o universo espiritual, externo aos sujeitos se encontra com o universo psíquico, interno ao individuo? Na mesma linha e direção, onde e em que ponto esse espaço psíquico é espaço mental, corpo emocional? Essa tem sido a minha investigação, o meu olhar. Tentar compreender como que a partir do que espiritistas e espiritualistas denominam ‘freqüência e sintonia’ cada um de nós co-cria um universo envolta. E como que a partir dessa freqüência vibracional somos capazes não apenas de alterar a fisiologia mental, emocional do corpo, como também situações de nossas vidas (relação amorosa, profissional e tantas outras), como também em muitos casos, positivamente, ou não, a de outras pessoas.

De modo que esses espaços, esses lugares tem irrompido diante de mim em alguns atendimentos. Foi nisso que elaborei uma vivência denominada “ACOLHENDO O FEMININO”. A proposta era lidarmos com o feminino, independente do sexo. Perceber como que esse feminino esta negligenciado, excluído, sem lugar não apenas dentro da nossa sociedade, como que dentro de nós mesmos também e principalmente.

Tudo corria bem, até que Primavera me falou da ‘criança interior’ conceito que ignorava a procedência, a finalidade, o sentido. Parei, observei, fui buscar. Na busca li sobre as queixas de abandono, negligência a nossa criança interior. Era como se eu estivesse lendo sobre o feminino. Até mesmo as imagens que reproduzem mitologicamente, oniricamente um e outro se afinizam: o circulo, oroboro, a androgenia. Ambos (feminino e criança interior) são vistos pelos especialistas como o pote de ouro para uma dimensão mais integrada da nossa estrutura psíquica.

Tudo isso me levou a pensar: qual é a distinção? Qual a diferença entre um conceito e outro? Haveria de fato alguma? Estaríamos falando da mesma coisa utilizando nomes diferentes?

A criança interior é um ente real. Fomos crianças. Vivenciamos e experimentamos a infância. Para muitos é a melhor fase da vida. Temos assim essa criança real que fomos e a criança que somos convidados a renunciar, a nãos ser mais. Todos nós somos chamados para o crescimento e em nossa concepção crescer é matar a criança, deixar de ser criança. Na maioria das pessoas a criança fica restrita ao fundo, do fundo, do fundo do espaço psíquico. Não se dá a ela nenhum espaço, nenhum lugar, mesmo quando a vida nos chama.

Mas, esse é também o lugar do feminino na sociedade atual. E, se psiquicamente podemos falar de uma bissexualidade, ou mais precisamente de um hermafroditismo que caminharia rumo à androgenia, cadê o lugar do feminino em nossa estrutura psíquica?
Esse como tenho observado mais atentamente é uma fenda, um vão, um espaço aberto, não preenchido. Falaremos desse lugar, assim como da criança interior em post futuros, agora quero apenas mencionar o fato desses dois conceitos estarem na literatura sobrepostos. Na estrutura psíquica não. Eles denotam lugares diferentes, funções diferentes. A criança interior é um reflexo da criança que fomos, das carências, angústias, tristezas, represálias, alegrias, satisfações, prazeres, que encontramos durante a infância. A questão dela e que trataremos adiante é que a infância nunca acaba, nunca cessa, nunca finda, pelo menos não psiquicamente. O cessar da infância psíquica é o surgimento do adulto, do adulterar, essa é a primeira ou talvez a única traição. Já o feminino é um ente não tangível. Tudo em nossa sociedade remete a negação do feminino, desde o estereótipo associado às mulheres até o inefável, esse intangível relacionado ao imaginário.  De forma que esse espaço fechado, escuro, esse deposito de todas as negligências, que não vemos em nós, Jung denominou de sombra. Ao que tudo indica a sombra é formada pela negação do feminino, da criança interior e de tantos outros ‘objetos’ mentais, emocionais, instintivos que carregamos em nós.


Finalizando, o ponto que quero destacar com maior destaque é que há técnicas energéticas que colocam o partilhante diante desses espaços, dessas carências, dessas lacunas. Nessa hora, até onde consigo compreender o denominar, o conceituar pode ajudar; com isso, quero dizer, que há uma parte do trabalho energético que necessita da fala, da palavra, do conceito. Nessa direção acredito, que o trabalho de psicólogos, seriam abreviados se eles fizessem uso de alguma dessas técnicas bioenergéticas. Pois, elas vão aonde as palavras não chegam, onde o outro não verbaliza, onde às vezes, ele não vê. A consciência desse espaço por parte de trabalhadores do emocional ajudaria a clarear esses espaços taciturnos dentro da gente. Esses espaços que para serem vistos, se mostrarem acabam irrompendo como ataque, ou como denominou Jung- sombra. A sombra para se mostrar, se fazer visível, muitas vezes, senão todas irrompe contra o próprio sujeito.

Para visualizarmos nossa sombra, sabermos o que de fato ela projeta, precisamos casar a acolhida do emocional à metodologia e ferramentas do mental. Esse é um belo trabalho, uma linda jornada para todos aqueles que escolheram essas navegações. É isso que temos realizando assim como muitas outras pessoas.


terça-feira, 31 de dezembro de 2013

RE-FORMUL//AÇÕES.



Estamos, praticamente, a poucas horas do próximo ano. Quero agradecer a participação, a leitura, a convivência tanto daqueles que leram, refletiram, questionaram os post realizados, quanto daqueles que foram atendidos no Spaço Fiholosofico Iluminar. E este é a razão desse último post de 2013.

Este post marca o término de um ano, a finalização de um ciclo e a abertura de um novo. Enquanto término de ano, numerologicamente, sairemos de um ano 6 para entrarmos em um ano 7. A principio, um ano mais introspectivo, reflexivo, meditativo, contemplativo. Um ano no qual as idéias devem ganhar mais pujança e abrangência. Futuramente, escreverei, postarei sobre isso. Enquanto finalização de ciclo, marca a saída de um deleite mais pessoal para uma interação e diálogo mais estreito com as vivências e observações realizadas no próprio espaço. De modo que nessa abertura vamos atrelar as experiências, as vivências, as reflexões, as teorias e práticas desenvolvidas no Spaço com os textos. Vou tentar falar de assuntos mais próximos ao sentimento dos partilhantes, do que das minhas necessidades de escrever.

Quero, novamente, agradecer a participação e interação de todos, virtuais e físicas e desejar a todos um 2014 repleto de amor, luz, carinho, reflexão, prosperidade, dinheiro. 

Enquanto isso ficaremos mais alguns dias, ou semana, sem a publicação de outro post. 

Bjs e um feliz 2014. 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

AS SENHAS DO EU: o sadomasoquismo contra Sade.


Escrevi sobre as senhas do eu, primeiramente, em setembro de 2012 http://universofiholosofico.blogspot.com.br/2012/07/as-senhas-do-eu-preambulo.html depois em fevereiro de 2013. http://universofiholosofico.blogspot.com.br/2013/02/as-senhas-doeu-imagens-de-nos-mesmos.html Na primeira parte falava do amigo e do acesso que este tem em nós. Pensei o amor como sendo essa capacidade que alguns têm de recuperar nossos arquivos perdidos e esquecidos. Falei disso sem deixar de tocar na possibilidade de um inimigo, ou falso amigo, acessar nossos arquivos. A senha não tem antídoto contra hackers.

Na segunda parte me impressionei com a dinâmica de um atendimento e depois fiquei ainda mais impressionado com as várias pessoas que acharam se tratar delas. Re-lendo pude observar que de fato trata da maioria de nós. Todos nós desenvolvemos relações nas quais o outro detém a nossa senha, todavia a percepção que Tranca-rua nos fomenta é da servidão voluntária, da chantagem calculista, da reclamação do sofrimento mais como queixa do que como dor. 
Já nesta terceira parte tento falar do que ficou aberto nas outras partes. Adentro o universo da sexualidade, especialmente as relações sadomasoquistas. O pano de fundo é um olhar lançado sobre como pensamos o prazer, vivenciamos a culpa, desejamos a transcendência, nos fazemos humanos. Classifiquei as partes em: a cama; a rua; a nudez e a roupa.

A CAMA

Recordo que alguém já disse que a cama é um objeto metafísico, pois nela se reproduz, se inter-relaciona, se morre. Se a cama é esse ente físico e metafísico, o ato sexual corresponde muito apropriadamente a essa analogia, tendo as mesmas características. A função orgástica do ato sexual é bioenergética, terapêutica e, possibilita, mediante, o orgasmo, a força do renascimento, da purificação, da libertação. Possibilita também a co-criação do casal e até mesmo a sua re-invenção.


Todavia, nada disso retira a dimensão assustadora dessa força orgástica. Essa relação de proximidade e até mesmo de inseparabilidade entre o sexo e a morte assusta muito. De modo que a energia sexual perturba nossa psique e algumas modalidades sexuais assustam ainda mais, seja por desconhecimento, seja por preconceito mesmo.

Com tudo isso, quero refletir, que deveríamos nos permitir sermos mais abertos a essa energia terapêutica e redentora nos seus mais diversos formatos e modos desde que atendesse os princípios de: a- ser realizados entre adultos; b- ser consensual.

Recentemente, foi divulgado uma pesquisa de uma psicóloga de Ohio afirmando que livros como 50 Tons de Cinza perpetuam a violência contra as mulheres.

A declaração é forte e deve estar bem embasada. No entanto, ela não deixa de suscitar uma reflexão e três considerações que me ocorrem: 1: a diferença entre agressão à mulher- ato de violência e brutalidade; 2: relação sadomasoquista (SM)- ato consensual; e, finalmente, 3: excessos e exageros do universo SM que não abordaremos, mas leva as pessoas a confundirem o primeiro e o segundo tópico com o terceiro. 

De toda forma, esse texto tem como objetivo pensar a cama como espaço capaz de resolvermos demandas do dia-a-dia de forma sã, saudável, consensual e terapêutica. E o ato sexual como a forma de canalização dessa energia orgástica sendo utilizada de maneira consciente, isto é, atento o máximo possível aos desejos e instintos da relação. A hipótese é pensar se seria possível diminuir ou atenuar a violência contra a mulher, justamente, fazendo uso de uma sexualidade mais plena, ainda que por mecanismos que requereriam um ponto a mais fora da curva- o SM no seu aspecto menos hard.  

Na Cama com a Psicologia. 

Não sei se o universo BDSM tem níveis, camadas. Estou estipulando uma agora que seria o SM ligth que estaria um grau acima do  baunilha, o SM soft que seria intermediário e o SM hard que caminha muito na direção da pesquisa publicada pelas agências de notícias acerca do livro. O diferencial entre eles seria o grau de sadismo do Dom, na verdade, do grau de prazer em proporcionar dor.

A professora de Ohio não é a primeira psicóloga a ver como “perversa” a prática SM, uma parifilia. Creio que não será a última também.

Psicólogos renomados taxaram essa prática de perversa. Outros tantos falam das repressões ou não desenvolvimento na fase anal dos praticantes desses atos. Wilhen Reich o que eu mais admiro por tudo, alardeava que o sadomasoquismo reafirmava as relações capitalista de dominador e dominado, sendo assim, algo a ser evitado devido a esse caráter exploratório, contrário a uma sexualidade satisfatória, ou a manifestação orgástica plena.

Sei que todos disseram muito, falaram demais, mas, basicamente, de fora. A relação sado-masoquista vista por dentro e de dentro trabalha outras questões que vão desde uma possibilidade hipotética de uma vazão orgástica até uma relação mais profunda fruto do ato sexual que se aproxima do êxtase religioso.

II A RUA

O cristianismo é lindo, mas assusta pelos seus conceitos mais sacros- a crucificação e a eucaristia. Para Paulo e tantos outros o cristianismo se dá na ressurreição e sem ressurreição não há cristianismo. Se esta concepção pode ser acertada fato é que para se chegar a ressurreição passa-se pela crucificação, deixando uma suspeita que para se alcançar a plenitude do espírito é necessário a flagelação do corpo. Em verdade, muitos vêem na via sacra, na flagelação, na coroa de espinhos, na túnica reduzida a andrajos tampando somente a região genital, uma carga erótica imensa. Lobão foi o primeiro que eu vi chamando atenção para isso numa entrevista na década de 1980. A imagem não me causa nenhuma espécie, mas a carga erótica da cena, não pode ser perdida de vista. Sobretudo, porque foi nisso que o cristianismo foi transformado: na resistência ao sofrimento para se alcançar o reino dos céus. Haveria um gozo nisso? Haveria um prazer nesse sofrimento? 




Longe de afirmar que tenha sido isso que Jesus desejou é fato que foi nisso que o cristianismo foi transformado, a saber, num discurso de renuncia, sacrifício, entrega, devoção. Deixaram claro que o importante é a vida depois da morte e não essa vida na carne, que por si só é sinônimo de pecado.

De posse desse discurso legitima-se, com mais ou menos consciência, a miséria, o sofrimento, a dor de todos os lados. Ou melhor, vemos a dor, o sofrimento e a miséria sendo justificados como condição natural e divina, quase que uma condição indispensável para existência. Sendo que é recente entre nós a consciência de que podemos e devemos nos opor a esse tipo de opressão e exploração, seja do homem pela mulher, do adulto sobre a criança, do branco sobre o negro, do hetero sobre os homossexuais e tantas outras formas de opressão e dominação. 

Em parte a relação sadomasoquista dialoga com essa imagem, mas rivalizando. A relação da sub com o corpo é uma relação de posse do seu próprio prazer. Um prazer que se alcança não na negação do corpo, mas justamente, nele, por ele e conseqüentemente, além dele. Mas, é possível ir sexualmente além do corpo?

É essa busca que transforma o prazer dos praticantes em algo de caráter místico, transcendente. Já que o corpo e não apenas ele é uma cena erótica construída para que o corpo alcance o seu limite e o supere. E é justamente a superação desse limite, que rivaliza com o místico, com o transcendente, com essa busca da imortalidade no ato sexual. Algo que os tântricos compreendem melhor. Na mesma direção tântrica  culturas menos pudicas colocaram essa via de acesso e de ascese como sendo válida. Ascese que o cristianismo sublimou quase que completamente, ao ponto de ver no corpo e nas genitálias todo pecado, toda culpa, logo nos órgãos que garantem e atestam o poder divino de conceber, gestar outro ser. No cristianismo ocidental a transcendência se faz pela culpa, pela negação do corpo, mas deixando claro que o gozo é do espírito. 
Nossa sociedade, seja no seu aspecto religioso, seja no seu ordenamento econômico-social tem dificuldade de encarar o prazer seja do corpo ou da alma. O prazer é um tabu. Prazer enquanto gozo, satisfação, plenitude, realização. Não é atoa que nosso prazer esta relacionado com a embriagues e atos de fúria, que recordam hordas. Poucos de nos bancam o gozo sem culpa, sem deixá-lo cair na inconsciência ou na irracionalidade. De modo que essa dificuldade de lidar com o prazer gesta as perversidades. Perversidades que não deveriam ser individualizadas e menos ainda estigmatizadas sobre alguns grupos. O que deveríamos caracterizar como perversidade é o caminho tortuoso que escolhemos ao sentir prazer mais no gozo pelo sofrimento e a culpa do que na felicidade e no êxtase. Vejamos: 

A ROUPA

O Sadismo Social. 

Se o aspecto sádico e masoquista religioso nos passa desapercebido por serem mais tácitos e até mesmo discutíveis, os sociais são mais visíveis e ameaçadores, muito embora falte ar nos pulmões para denunciar as atrocidades. E é isso que é o aspecto da roupa, da aparência, daquilo que se esconde, se camufla, não se mostra. É a civilização frente aos instintos. É a roupa perante a nudez. E é isso que é o aspecto da roupa, da aparência. 
Um estudioso da prática observava que no ato sexual se despe, no BDSM se veste. Isso sugere que a nudez nessa prática é de outra ordem, está em outro nível, noutra parte da relação. O prazer não está restrito a genitalidade e aos genitais, está no corpo todo e na tentativa de integração desse corpo a todo o resto. 

O que desejo explicitar é que o sexo consensual entre dois adultos a sociedade condena, faz passeata, missa, sermão na montanha e todo o restante. Haja vista o que os homossexuais enfrentam e passam atualmente. O que dois adultos realizam entre quatro paredes escandaliza os 'bons', os 'puros'. Mas, estes não se escandalizam com as violências simbólicas e reais da sociedade. Os sadismos sociais continuam a ser cometidos sem que os 'bons' e os 'puros' se manifestem, se oponham. Aos olhos deles a sociedade é justa. Para legitimar a justiça social, econômica, eles se valem do discurso das desigualdades naturais. Aplicam na sociedade, apenas nesse momento, as regras da natureza. Essa mesma regra não vale quando descamba para a violência física, quando surge e eclode a horda. Em suma, eles têm dificuldade de assumir que a sociedade é violenta, sádica e tal sadismo tem seus impulsos legitimados, haja vista as guerras, a agressão às crianças, o “monopólio legítimo da força” dos policiais e tantas outras expressões sádicas do nosso dia-a-dia que não causam a menor espécie, nem a quem provava, nem em quem a recebe. Uma frase que ilustra muito bem isso é atribuída a Charles Chaplin que diz que aquele que mata uma pessoa é assassino. Aquele que mata centenas é herói.



Essas contradições existem e permeiam as nossas relações. A loucura disso é que os presidentes que levam milhares de seres a morte não são tidos como sádicos. Os torturadores brasileiros têm nomes de rua e os que lutam pela verdade são execrados. Volto a repetir e a insistir que esse sadismo social é legitimado pela maioria de nós. Diariamente estamos expostos aos mais diversos tipos de agressão, que vistas individualmente são monstruosos, mas vistas coletivamente é uma epidemia, é uma doença. 
A violência entre nós é uma doença. Claro que temos que imputar aqueles que a realizaram, mas no cenário geral, eles reproduzem violências maiores e menos visíveis. A forma com que lidamos com o capital desde o momento em que o recebemos até quando o distribuímos é violentíssimo, sobretudo, em nosso país. 
A Publicidade e Propaganda que produz o desejo de consumo para que o capital não pare de ser alimentado é de uma violência tão espúria e gratuita quanto colocar fogo no corpo de um mendigo ou de uma dentista. E em todas elas, sem exceção, há um sadismo. Há um gozo. Há um prazer imenso de humilhar, de se sentir maior, de diminuir o outro a um mero objeto do seu prazer. 
Há um mesmo gozo compartilhado em mostrar essa crueldade, essa brutalidade, esfregando na face de todos os outros. Em tudo isso, há o sadismo na direção fomentada por Marques de Sade, mas nada mais distante de Sade do que o atual BDSM. Sade estivesse entre nós seria provavelmente um publicitário. Faria campanhas publicitárias ao invés de livros descrevendo cenas explicitas de tortura. O prazer dele (Sade) estava em submeter o outro ao seu gozo sem a vontade e o consentimento desse outro. Sade não negociava o seu prazer, pelo contrário, a negociação retiraria toda instintividade, brutalidade que era a fonte do seu prazer. É o sadismo na sua forma mais clara, com níveis que se aproxima da psicopatia. O outro para Sade, para a propaganda, para um grupo de pessoas é meramente objeto do seu desejo, mas não é essa a regra do universo BDSM.  Pelo contrário até. E aqui é importante aprofundar essa discussão. 
O ponto de objeção mais forte ao sadomasoquismo diz respeito a transformação do outro em objeto. Desde Merleau-Ponty que isso é uma questão superada, pelo menos no que tange ao corpo, ao desejo. Ou seja, na relação amorosa, ora toco, ora sou tocado, ora faço o outro de objeto, ora o outro me faz de objeto do seu desejo. Nesse encontro está acertado o prazer dos dois. Isso é mágico e se bem explorado pode levar ambos a emancipação total, que no sexo é o orgasmo.
Reparem então que sem a entrega ora de um ora de outro, sem a cumplicidade de um com o outro esse momento não se dá. Não há orgasmo se os dois se recusarem a se entregar. É na entrega, seja como se dá isso, que acontece a possibilidade do orgasmo. Posto isto é imprescindível firmar e afirmar o sadismo da nossa sociedade. Nela as relações são objetais no pior sentido do termo e do ato, já que impedem por todas as vias, por todos os caminhos, de todos os modos, que o outro atinja o prazer. Impede-se que o outro goze também. E o mais inusitado é que o outro goza por estar impedindo o outro de gozar, de estar criando meios e mecanismos que impede, inviabiliza, dificulta o outro de chegar a sua plenitude. Isso deveria dar nojo, causar repulsa, mas pelo contrário, enquanto sociedade sentimos um prazer enorme nisso. Adoramos essa posição de castradores, de controladores do gozo do outro, da felicidade do outro, estão aí pais, professores, patrões, políticos que não me deixam mentir. Todos nós nos mais diversos níveis nos prestamos a esse serviço de corromper a natureza no que ela tem de mais linda- abundância, partilha e liberdade.  

Nessa mesma direção até a década de 1980 tivemos casos de homens inocentados por matarem em legítima defesa da honra. É recente a desaprovação social contra a agressão à mulher e ao menor. Éramos indiferentes a sorte deles. Já no que se refere à fome, a miséria a achamos normal, natural, divina (a culpa é de Deus) e não vemos o menor traço de sadismo, de perversão, de parifilia em conviver com isso, pelo contrário. A acomodação, a submissão com que aceitamos isso é sinal claro de sadomasoquismo nesse sentido mais amplo e agora sim PERVERSO do termo.

Mas, levanto tudo isso, porque essas relações sociais, orgânicas, fisiológicas, aconteciam, acontecem, mas não eram e não são rechaçadas com a veemência necessária. Não obstante, dois adultos que de comum acordo proponham experimentar o ato sexual mediante o caminho da dor eram e são rotulados de todos os nomes. Isso é ou não é estranho? Esse controle da genitalidade dos indivíduos, num patrulhamento imaginário do que um faz com o outro e como faz, se é permitido pelo Alcorão, ou se fere os preceitos bíblicos, ou os canônicos católicos e por vezes até a orientação do Livro dos Espíritos é doentio. Doentio, porque enquanto as pessoas estão buscando a plenitude diversos outros grupos sentem um prazer e conseguem um gozo numa tentativa de ordenar a sexualidade do outro. 
E, mais bisonhamente, e, bizarramente, ninguém se atém a pensar de onde esta vindo toda essa erotização do mundo da vida? Ninguém aponta e sinaliza que o desejo de ter, consumir cada vez mais, reduzindo o outro, ou fazendo o outro de objeto é a maior perversão do sistema, porque ele não é consensual e nem entre adultos. Ele é impositivo, contra todos, independente de sexo, religiosidade, 'escolha' sexual, raça, condição econômica, nacionalidade, idade. 


De modo que quando essa erotização sexual deixa de ficar no nível simbólico, na dimensão do desejo e se faz violência com ataques a bancos, a policiais, a prédios institucionais, tendo como principais armas as pedras e o fogo, o mal estar na civilização está entre nós; mais nítido do que nunca. A horda acordou antes do gigante. Mas, jamais vamos olhar para o sadismo que alimenta tudo isso. Jamais vamos perceber a subjugação econômica, a violência social, a repressão a mulher que estão organizadas e orquestradas nos simples discurso e disposição dos lugares, como sendo fruto de um prazer doentio. 

E, enquanto, não percebermos isso as campanhas contra os abusos, as explorações perdem um pouco do sentido, ou melhor, não conseguem alcançar o sentido. É isso o que percebo em agressores de toda espécie, especialmente os de mulheres, invariavelmente, suas companheiras, é que esse mal estar criado seja pelo ciúme, seja pela autonomia econômica, ou pelo sucesso emancipatório da mulher, poderia ser resolvido sexualmente com cada um assumindo o papel de dominador (a) ou sub. Essa tensão orgônica, no sentido de Reich,  poderia ser canalizada em uma forma erótica, sexual para se evitar a covardia e o absurdo da violência contra a mulher, à criança, outro homem, contra os animais ou quem quer que seja.  
Uma sexualidade mais plena, uma genitalidade mais livre poderia se fazer escape dessa energia social pervertida e irascível que tortura, martiriza, espanca, mata. 



Assim, retornando a reflexão para uma relação mais micro e menos macro, focando as agressões entre casais, há no agressor e na vítima uma relação de dominação e submissão já posta, já colocada. Acredito que assumir para si essa condição de dominador não da vida do outro, mas de um momento específico da relação e na relação, possa dar a ambos o empoderamento perdido. Pode levá-los a sanar, mediante o ato sexual e a energia sexual, questões que são de outras ordens. Podem permiti-los uma descarga erótica de uma tensão social, econômica, seja qual for de opressão. 
O ato sexual tem a força purificadora de remodelar esse animo, de co-criar outra realidade. No entanto, caminhar com o sexo nessa direção é tomar consciência do próprio prazer, do próprio desejo e relacionar de uma forma bem diferente da que realizamos. É, sobretudo, compreendermos a sexualidade num sentido mais pleno, como alardeava o próprio Freud. E, ainda mantemos a utopia de que essa plenitude orgástica pode transformar o mundo como sonhou Reich. 

Como ponto dessa dinâmica, gostaria de mencionar que na agressão física esta contida o mesmo prazer, provavelmente, para quem agride e é agredido que a descarga orgástica proporcionaria. O diferencial é que a agressão tem como prazer o que poderíamos chamar de sadismo puro, isto é, o prazer de ver o outro diminuído, desprezado, barbarizado, oprimido pelo lado de quem bate. Já na perspectiva da vitima há o prazer de ser coitada, “crucificada”, tadinha, revelando um prazer masoquista da pior forma possível. Assim, esses prazeres acabam por revelar indivíduos inconscientizados do próprio desejo, ou mais precisamente, incapazes de vivenciar o gozo fora do que o sistema organiza como prazer. O que me faz recordar um caso de um marido que assassinou a esposa, porque ela insinuou contar para os amigos deles que ele havia broxado. Aos olhos dele e de milhares é melhor ser homicida do que broxa. 
É esse sadismo social que deveria nos escandalizar.



Em certa medida sou levado a acreditar que tenha sido contra esse tipo de sadomasoquismo social que ocasiona e perpetua a "impotência da ação" que Reich se opôs. O prazer orgástico que a relação sadomasoquista consegue alcançar com a consciência dos seus participantes é outra coisa, muito distante para serem confundidos como a princípio se deu, com a psicologa de Ohio. 

A NUDEZ

Caminho para a finalização, salientando que para falar da relação Dom/sub é importante retomar a dialética do senhor e do escravo de Hegel. Resumindo a história, para o filósofo alemão apontar o caminho dialético, ele deixa evidenciado como que o senhor depende do escravo e nesse sentido é um servo, em piores condições, que o verdadeiro escravo, já que este sabe realizar as tarefas e funções que o senhor desconhece. A dialética do senhor e do escravo mostra essa co-dependência. Mas, como constatamos todos os dias, mesmo depois de Marx, isso não é claro, não é dado, não é evidente. No entanto, o que alimenta a relação é tanto a inconsciência do escravo, quanto o desejo dele em um dia ser senhor, mas, não vamos analisar esse jogo. 




Nas relações sadomasoquistas, embora alguns Dons queiram insistir que não, a mesma relação se estabelece. O prazer do Dom depende da sub, da escrava, sem ela, esse prazer não se completa. É no prazer dela que ele alcança o seu próprio prazer. Não é possível então estando dentro da relação falar em explorador e explorado, dominador e dominado, já que o prazer só será alcançado se cada um guardar o seu lugar- Dom/sub, mas ir para além dele. Isto é, saber que os dois se complementam na busca e no encontro com o desejo. Um desejo que se desenha na manifestação consciente, na escolha consciente de ambos.

O erro das análises é ver esse universo sem a cumplicidade que o caracteriza. E essa cumplicidade não esta na dor, seja em sofrê-la, seja em provocá-la. A cumplicidade se efetiva no companheirismo que um e outro se colocam pelo prazer. E aqui é que as antinomias, os contrários se unem num sentido mais profundo, místico e em certa medida sagrado.

O Dom sabe que a sub sente prazer ao ser submetida à dor. A sub sabe que o Dom sente prazer ao infringir a dor. Os dois sabem que é por isso que eles estão ali, naquele momento, naquela relação. Eles sabem que aquilo é um jogo, uma sessão, uma cena. Sobretudo, eles sabem que o mais importante em tudo isso é que o prazer de cada um esta em ressonância direta com o limite do prazer do outro. Isso torna Dom e sub um. Nesse um cabe ao Dom levar e submeter a sub até os limites da sua força e cabe a sub entregar-se ao Dom o máximo que conseguir. Esse limite fica resguardado pela senha que o casal estabelece antes da sessão, fazendo com que o sádico seja na verdade aquele que se submete ao limite do outro e a sub aquela que provoca o outro até que ele alcance o seu limite, que muitas vezes eles desconhecem. No final ninguém deve se machucar e ambos devem ter explorado juntos os limites desse desejo, inclusive, o ampliando.

Essa relação de ampliação, de expansão, de cumplicidade, esmero, tem aspectos místicos que já chamamos atenção. Sendo que o desafio do corpo aumenta os limites do próprio gozo, do próprio prazer. Desafiar o corpo, os seus limites até o momento no qual o corpo roça a alma e esta abraça o espirito. Essa é a integração orgástica. Enquanto o Dom exerce o controle externo do corpo do outro, a sub exerce o controle interno do seu próprio corpo. Ainda que ela esteja fisicamente imobilizada, ela toda se movimenta, e mesmo que ele esteja fisicamente livre, ele está lá atento aos movimentos anímicos do corpo da sub. Ambos então estão parados e se movimentando, ambos estão transando, ainda que e quando não esteja acontecendo a penetração física. Fato é que outro tipo de penetração aconteceu, mais sutil, mais profunda, mais sensual, mais erótica, mais plena. E a beleza desse movimento é a entrega e o respeito. 

Uma digressão. Essa ação que pode ser desenvolvida no ato sexual casais fazem reiteradamente um com outro até que alguém explode, arrebenta, foge, escapa. Mas pode ser desenvolvido a dois, com atenção, afeto, cumplicidade, de forma amorosa e não sádica.

Assim, é um erro acreditar que as escravas, as subs, chegam ao prazer por estarem apanhando. Como uma diz: sadomasoquismo não é sexo com porrada. Elas chegam ao prazer por estarem se entregando a uma outra vontade, a um outro comando, que parece controlar e adivinhar, surpreender o desejo que ela ainda não revelou. Esse jogo, altamente prazeroso, lida com o mistério, o surpreendente, o inusitado. Lida com essa coragem de entregar o próprio corpo, confiando na cumplicidade, na amorosidade, no respeito dessa entrega. 
Grande parte do prazer se concentra nisso. E não sei se esse olhar se consegue de fora. Não sei se se consegue perceber o vínculo, o elo, a cumplicidade que esses dois criam, formam cuja coleira/corrente é um símbolo altamente pertinente. Já que se faz uma ligação que não é meramente física. A geografia do desejo transcende o corpo e atinge o imaginário. Cria-se um elo entre os dois, uma aliança, é um casamento. Ser dono(a) de alguém representa, ou deveria representar esse pertencimento que todos buscam, mas esbarra-se justamente na nudez. Somos convidados a acreditar que a nudez é o máximo da intimidade, mas se despir diante outra pessoa pode não representar nada, absolutamente nada, além de mostrar o corpo. 
Casais conhecem o corpo um do outro, o toque um do outro, o cheiro um do outro, mas muitas vezes desconhecem os desejos, as fantasias, as vontades, os quereres um do outro, seja individualmente, seja um com o outro. O dono é aquele que tem depositado em si a senha da outra, mas a outra tem a chave, tem que ter a chave para mudar a senha, realizar outras configurações seja junto ou separado. A liberdade deve ser de ambos, da que entrega senha e do que guarda a mesma senha, qualquer um a qualquer momento tem que ter a liberdade de abrir a coleira.   



Assim é uma relação que recupera, ao menos, simbolicamente, aspectos muito caro ao sentimento religioso que possuímos. Na cumplicidade entre Dom e sub retoma-se idéias caras ao islamismo, ao cristianismo, ao budismo: renúncia da vontade, do querer, cessação ou privação do desejar por um lado (sub); e proporcionar meios, cuidados, formas de conduzir a pessoa a este estado de renuncia (Dom). 

O sexo em diversas culturas foi utilizado e é utilizado como fonte de transcendência. Sexo é mais que vigor, é mais do que corpo. É corpo também, é vigor também, mas pode ser mais do que isso. Pode ser um encontro com o prazer. Não o prazer de uma descarga de tensão, mas o prazer de encontrar consigo mesmo no ato sexual. Nesse aspecto é uma oração conjunta, na qual cada corpo é um templo e pede-se licença para se entrar nesse território sagrado (não estou falando de amor). Lá ambos criam formas de se fundir com o todo, chegar o mais perto dessa sensação de plenitude. E essa busca, no que se refere ao ato sexual é imprescindível a parceria. Os dois vão caminhando juntos até o momento em que se separam para se fundirem com tudo. Poder perdurar esse estado de fusão, poder ampliar esse estado de prazer, retê-lo junto ao corpo até que ele fique gravado e instalado na alma é uma das buscas do sexo. 



Muitos dons e inúmeras subs se prenderam no papel e na cena do que é de um e do que é do outro. O sexo é liberdade, é o momento no qual pode haver a maior sensação de liberdade estando no corpo, quase escapando dele. Se as regras impedem isso é hora de mudar as regras. E se a sua forma de fazer sexo te proporciona isso. Se junto ao outro você consegue ir além de si mesmo- ótimo- a plenitude foi alcançada de maneira adulta, lúdica, criativa, consensual. 

Isso tudo apenas para chegar no ponto mais paradoxal da reflexão. Em nenhum momento da relação, fora do ato em si, o outro pode ser considerado objeto, ainda quando ela queira, deseje, almeje. O sentido é todos terem a compreensão de que aquilo é uma sessão, uma cena. Um cenário que desmonta. Similar ao artista que realizou o filme, a novela, a peça e deixa o personagem na coxia. Assim, quando a sessão terminar, cada um tem que ser capaz de estar mais emancipado ainda, seja por ter se entregado, seja por ter confiado, seja por ter respeitado. Todos humanos, todos livres, todos com as chaves para abrirem as correntes e irem embora. Todos com a senha para pedir altas e se retirar. Sem culpa, sem mágoa, sem rancor. Nesse ponto é o caráter terapêutico mesmo do ato. Um dono não pode pedir submissão 24/7 e uma sub não deve dar isso. A relação não é objetal. Ela (relação) explora os limites do outro, ela busca controlar o desejo e a vontade da outra, a outra se rende e se entrega a esse desejo e a esse controle, mas na vida normal, cotidiana, ambos devem ser emancipados. Ambos devem estar conscientes de que não são donos do mundo e do universo (dom) ou que são escravas dos outros (subs). A cena deve dar a cada um o entendimento claro de que nenhuma situação de sadismo social se justifica. 

De modo que de longe as relações sadomasoquistas são relações de dor, sofrimento, sadismo. Da onde observo as relações sadomasoquistas são relações de cumplicidade, complementaridade, amorosidade, respeito, liberdade. Liberdade para experimentar no corpo, com o corpo, prazeres que a alma deseja. Por louco que pareça é sexo sem culpa, com a liberdade de encontrar o prazer e retê-lo como sendo seu. É a submissa aprendendo a ser dona do seu prazer e o dono aprendendo a ser submisso a vontade e limites de outros. É então a sub tomando posse de si mesma e o Dom aprendendo a controlar seus impulsos sádicos, no sentido social que aplicamos no texto. No final é um exercício interno para todos em que em jogo estão a diminuição do orgulho por parte do Dom e a humildade por parte da sub. E, essas duas coisas se confundem o tempo todo e não aparece claramente ora nenhuma. 

É então loucura, mas nas relações sadomasoquistas, realizadas de forma consensual entre os envolvidos, esta implicado uma das formas de transcendência que mais se aproxima do amor religioso, mas sem culpa. 



Os donos que querem servidão, escravidão reproduzem as armadilhas seja do ego, seja do sistema, que a relação S/m ajuda a desmontar. 

Então, se o sexo em todas as culturas espelhou a transcendência, acredito que as formas mais light do universo BDSM possa ajudar casais a lidarem melhor com a dinâmica da relação. Vejo isso como uma senha que encenaria as mazelas sociais, econômicas que estamos presos, dando ensejo para uma plenitude orgástica, uma vida mais satisfatória e uma existência menos sádica para alguns e masoquista para outros. No geral, mais saudável para todos.  





domingo, 24 de novembro de 2013

SONHO E BUSSOLA: por que nós perdemos de nós mesmos?



O título surgiu depois do texto ficar pronto. Então, eu não vou responder a pergunta que deixo, não sei a resposta. Sã Carneiro dizia que se perdia de si mesmo, porque ele era labirinto. A maioria de nós não tem a complexidade subjetiva do poeta suicida, pelo contrário, somos superficiais como andar em linha reta, em fila indiana, com distância previamente determinada. A maioria das pessoas gosta dessa horizontalidade da vida. Gostam da simplicidade, gostam do pragmatismo de encontrar respostas rápidas, precisas, claras para os problemas da vida. 

Nélson Rodrigues dizia que a televisão matou a janela. Atualizando a reflexão, eu diria que a internet suprimiu o mistério, o espanto. Todas as respostas tem que ser rápidas, todo o universo tem que se locomover na velocidade da luz. Nem a natureza mais é permitida o seu ritmo, temos agrotóxicos para os alimentos, incubadoras artificiais para os animais, anabolizantes para os humanos. Enfim... temos pressa, muita pressa, pressa demais. Temos pressa em não sentirmos a tranqüilidade, o ócio, a contemplação. Diante dele, corremos mais e mais rápido. Não sabemos para onde, mas é isso que quero supor, corremos de nós mesmos.

Muitas pessoas não acreditam, mas encontrar-se é uma arte, é um mistério. Não é uma tarefa fácil, nem simples. Estava eu sentado aqui na minha poltrona, em reflexão comigo mesmo, quando perguntei: mas, por que não vejo mais claramente o universo energético que habito? Pai Jeremias na tranqüilidade de quem não tem pressa, conversou comigo, me forneceu imagens e me mostrou que para se ver imagens espirituais tem que ser minimamente espiritual. E eu em um determinado momento da minha história escolhi o pragmatismo. Eu coloquei disciplina na vidência: só vejo quando eu quero, na hora que eu quero e se eu quiser. Como a vidência era minha foi acatada a decisão, mas como muitas vezes não é a gente que vê e sim eles que se mostram, aparecem, eles procuraram outros com mais disponibilidade. 

Mas, o essencial não é esse ordenamento, o essencial é como que fechamos nosso corpo emocional e algumas percepções, entendimentos são dados por ele. Acreditamos que a racionalização é que bloqueia, quando na verdade, é o emocional que estabelece as permissividades, as alternativas. 


Algumas pessoas devem estar se perguntando: corpo o que? Emocional! Esse que a gente ignora, não escuta, não dá atenção a não ser quando ele nos trava. Quando adoecemos, quando aparece as síndromes, os pânicos, quando somos traídos, quando uma voz insuportável fica gritando na nossa cabeça que não valemos nada. Esse é o corpo emocional rompido, fendido, ofendido. Volto a falar dele, agora recupero um sonho que Primavera teve comigo. Conto o sonho, porque ele é o motivo desse texto.

No sonho estávamos em uma praia e eu tinha um caderno azul. Entreguei o caderno azul para ela e quando ela abriu não tinha páginas escritas, apenas sangue derramado, derramando. No sonho dela, eu também tinha a cabeça cheia de buracos, de feridas. Como eu dei o caderno e sai andando, deu apenas para um senhor que estava do lado fazer um comentário: “o moço ta mal mesmo!” 

O sonho é super curioso, porque ele aponta para algo que eu não quero ver e nem olhar. O sonho é de 2011. As feridas são do século passado e reabertas em 2005/6. Pessoas mais próximas, na verdade, mulheres mais próximas vêem essa ferida, eu não. E isso é estar perdido, desorientado.


A partir disso fiquei me perguntando: qualquer um que estivesse na rua sem saber onde está buscaria orientação, aceitaria ajuda; porque quando se trata do mundo interno a gente ignora?

É estranho como que cada vez mais nos aperfeiçoamos em localizações externas e ficamos perdidos em nos situarmos internamente. Como que cada vez mais temos milhares de nomes para as coisas, para os aparatos tecnológicos e estamos perdendo as adjetivações para o nosso mundo interior. Mais estranhamente ainda, como que os sentimentos, assim como os pensamentos mais elaborados, tem sido reduzidos a termos como: “uau. Da hora. Massa. Tipo, tipo assim, fraga”. Como que estamos nos distanciando do nosso universo interno e as vezes até desconfiando que ele não exista. Afinal, quem leva sonhos a sério? Consideramos o mundo virtual mais real do que o sonho? Mais verídico do que o sonhar, o imaginar? Essa análise hegeliana vai ficar para outra postagem.

Agora, quero problematizar ainda mais a questão: caso nos percamos na rua temos GPS. Em verdade, para qualquer lugar que desejamos ir o próprio aparelho celular faz as atualizações imediatas. Caso estejamos em algum outro país que desconhecemos o idioma, há programas que nos pedem apenas para dizermos o que desejamos que imediatamente ele converte para o idioma pretendido.
Quando estamos curiosos sobre algo ou alguma coisa do mundo, temos a net. Basta goolgar e a dúvida é preenchida, a resposta é dada. Mas, a minha questão é: e quando nos perdemos de nós mesmos? E quando não localizamos em nós aquilo que somos? Que deixamos de ser. A quem recorremos? Onde procuramos?

Temos dificuldade em responder a essas perguntas. Preferimos vagar sozinhos, desorientados, sem informação a buscar ajuda, auxílio. Alguns por desconhecimento, outros por preconceito. Nenhuma das opções deixam de ser estranhas e curiosas numa sociedade da informação como a nossa. Afinal, com dispositivos cada vez mais precisos sobre nossa localização, nosso entendimento, por que ainda nos assombra os labirintos internos? Os vazios existenciais? Como que não sabemos ainda qual a valia do trabalho terapêutico, seja do holístico, do psicólogo, do filósofo clinico, do programador neurolinguistico? Por que ainda é insondável e misterioso o universo interno? Seja nas suas dores, seja nas suas sombras, seja na sua luminosidade?

Difícil apontar para uma resposta e nem temos a pretensão. Mas a pressa, a velocidade, a rapidez, a busca incessante pela busca incessante, para que se tenha sempre algo para se buscar e acessar, nos afasta da gente mesmo. Gente por mais tecnológica que seja não nasceu de fibras óticas, não brotou das nuvens. Gente precisa de natureza, do ritmo natural. Precisa do sol e do luar, do mar e da cachoeira, do verde e da terra. Gente precisa respirar o ritmo do universo para compreender que a pressa é o vazio e quanto mais apressado, mais vazio, mais desprovido de sentido. Andamos a uma média de 60km/h e achamos que estamos indo devagar.


O universo interno precisa de silêncio, de natureza, de tranqüilidade. É nesse habitat que os corpos se integram, conversam, se realizam, se unificam. É nesse habitat que a vida ganha luminosidade e a gente apreende todo o simbolismo da vida. Começa a ler as nuvens, o horizonte, a linguagem dos animais. É olhando para dentro que a bussola interna nos orienta, nos direciona, nos posiciona. E nos encontramos conosco. Pelo menos olhamos para nosso corpo emocional e o nutrimos com mais atenção, carinho. É no carinho do outro que nos recuperamos e as vezes é no sonho do outro que está a chave para nossa cura, nossa integração. 





sábado, 2 de novembro de 2013

QUAL O NOME DO VAZIO?


Como já declarei centenas de vezes- sou apaixonado pelo universo feminino. Há algo nele que me encanta, me seduz, me fascina, me alucina. Algo que eu quero adentrar, ver, captar, sentir, o mais próximo possível, mas sem ser. Não gostaria de ser mulher. Recordo de umas duas, três vidas nas quais fui mulher, eu não tenho palavras para descrever a tortura que isso foi para mim. De todas as prisões que habitei nenhuma foi mais angustiante do que ser mulher.

E não falo de ser do sexo feminino. Não é disso. Falo das mesmas dificuldades de ser negro, homossexual, diferente- falo da discriminação. Falo do exercício de provar que a inteligência, o gosto, as aptidões não são questões de gênero ou de raça. Falo da luta inglória contra uma cultura, contra hábitos, contra a gente mesmo, que em momentos passa a acreditar que de fato algumas escolhas e formas de existir são apenas para homens e outras apenas para mulheres. Mas, não é disso que quero falar.

Quero falar do site que uma amiga me enviou: perdimeubebê.blogspot.com.br  O blog é lindo. Delicado. Suave aos olhos. Cheio de dor, de sofrimento. Lá esse vazio que não sei dar o nome tem forma, tem cheiro, tem cor e é transformado em palavra por cada relato. A cada relato sobre a perda de um bebê, elas afloram tonelada de culpa, de medo, de agonia, de sofrimento que parece ser da humanidade inteira. Cada criança não nascida alivia e amaldiçoa cada uma delas. Em cada relato fica estampado diante da gente a nossa insensibilidade diante do tema, o nosso despreparo para acolher essas mães. Enquanto lia, muitas coisas me encabulavam, no entanto, uma mais do que as outras: essa culpa não pode ser de apenas uma mãe, uma mulher. Assim, da onde vem esse vazio?

Ele esta no ser. Não sei precisar quando ele se instala, ou se ele já vem instalado. Mas, ele parece estar lá esperando a primeira paixão, a primeira desilusão amorosa, a primeira transa para absorver praticamente uma existência inteira. Acredito que haja uma porta, uma fenda pela qual o vazio entra e por vezes nunca mais sai. 

Uma das falas freqüentes das mães era a de que os maridos, os companheiros pediam a elas que saíssem desse estado de sofrimento, de apatia, que elas tentassem esquecer, mas elas não conseguiam. Era como se estivessem mergulhadas dentro de um abismo. Nietzsche conta que as vezes de tanto olhar para um abismo, o abismo passa a olhar para você. Mais do que olhar, o abismo adentra o seu ser. Nietzsche de fato tinha essa profundidade abissal. Esse grande filósofo alemão dizia que tudo que é reto mente, assim, ele acredito que o abismo dele tinha até algumas curvas, mas de forma geral, os abismos masculinos são retos e jamais chegamos até o fundo. Os abismos femininos são fendas naturais, mas é cavernoso, escorregadio, insinuante, repleto de curvas. E o estranho em tudo, seja nos relatos, ou nas outras observações que fui recordando é que há uma dor e ao mesmo tempo uma adaptação natural a este lugar. O abismo é um habitat no qual elas se adaptam. Nós homens não damos conta dessas profundezas, menos ainda dos labirintos que esses abismos têm. Mas, elas vivem nesse lugar com mais naturalidade e isso é a ruína, ora porque elas se perdem nelas mesmas, ora porque parte delas vão sumindo ou se escondendo delas mesmas, mas, principalmente, porque há cavernas nesses abismos nos quais elas se identificam e sentem-se mais confortáveis do que em qualquer outro lugar do mundo. Numa visão ainda superficial e prematura, diria que nós homens corremos do vazio, enquanto a maioria das mulheres correm para ele. Grande parte do temor masculino é encontrar com a dor, com o sofrimento, com a finitude. Passamos a vida inteira construindo cultura, ciência, transcendência para não lidarmos com esse vazio. Grande parte da atração feminina é pela dor, pelo sofrimento, pela finitude. Elas querem fugir dos nossos conceitos complicados, das nossas explicações intermináveis e simplesmente se fundirem, ou sentirem o vazio. É paradoxal. Nós queremos dar sentido fugindo dele, elas dão sentido mergulhando nele.

Retornando ao site, a maior beleza dele é que lá elas se escutam, se entendem, se consolam, se apoiam. Elas fazem aquilo que não conseguimos fazer, talvez porque de fato não há algo a ser feito. Elas acolhem uma as outras.

Assim, eu quero falar do vazio. Chamo de vazio, mas o nome não é esse. É alguma outra coisa, cuja definição escapa, se é que tem. O que sabemos é que ele tem presença. Ele existe. Ele ocupa o ser das mulheres. Algumas o transbordam no olhar. Outras fazem dele uma redoma no qual elas estão no meio, absortas por ele. Em muitas, senão todas, o olhar delas, mesmo quando feliz, trás essa dor, esse eu não sei identificar. Esse sem nome. Esse sem lugar. Essa coisa que em muitas fica resguardado, acomodado, mas.... ainda assim é presença. 




Eu resolvi escrever sobre um tema que eu não sei o nome e nessa altura, a maioria dos homens já não sabem mais sobre o que estou falando, se é que chegaram até aqui. As mulheres já estão me chamando de burro, rindo e sensibilizadas com minha tentativa de compreensão, no entanto... Elas sabem que eu não sei. Elas também não têm nome para esse vazio, mas recusam serem chamadas de histéricas, histriônicas, ou de nomes dado por nós homens diante dessa falta imensa que transborda em algumas. 

UM NOME MASCULINO. 

Freud viu nesse vazio uma incompletude anatômica, a falta do pênis faz da mulher um ser castrado, mutilado. É ou deveria ser óbvio que esse olhar é metafórico, diz respeito a um arquétipo. Essa mulher de Freud, como não poderia deixar de ser, representa o arquétipo de Eva, a parceira de Adão. Eva é a mulher que nasce da costela, nasce como parte, se realiza enquanto “amiga” do seu parceiro único. Quando busca o conhecimento recebe toda culpa de ter desviado o ingênuo do Adão do caminho do bem. Assim, ambos são expulsos do paraíso cada um com sua sina, ele é amaldiçoado a trabalhar, ela a parir na dor. Esse vazio em nós é preenchido pelo trabalho. Enquanto laboramos, nos realizamos, acreditamos estarmos plenos. As mulheres encontram um preenchimento desse vazio na gestação, no ato de ser mãe. Mais uma vez recorro a Nietzsche, ele diz que a mulher para o homem é um fim. Mas, a mulher para o homem é apenas um meio. A finalidade dela é o filho. Será mesmo? 

Hoje na contemporaneidade, mais do que nunca, mulheres acreditam na realização pessoal em moldes masculinos- carreira, profissão, sucesso. E a maioria lida bem com isso até o relógio biologico determinar as últimas voltas do ponteiro para que a gravidez ocorra. Nesse momento a piração começa acontecer. Esse vazio transborda. Poucas sentem-se tranquilas ao olhar para trás e verem que construiram uma belísima carreira. Nessas falas que escuto fico sempre me perguntando: pode uma mulher não ser mãe? 



Nosso desejo masculino é o de estancar o vazio, curar a dor. Mas, não é disso que se trata, pelo contrário, trata meramente de ouvir o grito que não sai da garganta, mas a seca. Trata de  emprestar lenço para a lágrima que teima em brotar dos olhos, como nascente, como cascata. E nunca sabemos por qual motivo elas choram, talvez seja pelo mesmo motivo que a nascente escorre água, vai saber. Trata de apenas estar ao lado, silenciosamente, como se esse vazio fosse uma oração.

Isso nós homens nunca entendemos e jamais entenderemos. Nunca entenderemos essa racionalidade emocional. Nunca entenderemos como que a perda de uma gravidez de poucas semanas, quiçá meses, pode abalar o resto de uma vida. Nunca entenderemos, como que a perda de um filho viciado, drogado, as vezes até maldito, pode causar uma dor infinita, que nunca vai acabar, parar, cessar. Nunca entenderemos como que a morte da mãe, aquela que nos gestou possa causar essa mesma ausência, essa mesma falta e por vezes ampliar ainda mais esse vazio.

Assim, teve momentos que eu quis tirar esse vazio delas, mas fazer isso era como colocar um pênis entre as pernas delas. Era como colocar um estilingue de menino nas asas de um colibri. Era desnaturalizar o natural. Amigos muito sensíveis me ensinaram a ver, a observar, perceber que seja lá o que for essa falta, esse vazio, é por intermédio dele que elas conseguem se superar, se inventarem, serem. Loucura?

Recordo-me de alguns trabalhos mediúnicos, em que me encontrava desdobrado e ELAS chegavam, encarnadas e desencarnadas. Elas estavam lá pelos filhos, pelos maridos. Lá onde? As vezes nas filas intermináveis das visitas de hospitais, presídios, manicômios. Outras vezes nas casas espirituais pedindo ajuda. Outras tantas ao lado dos filhos como anjos protetores. E os filhos estavam em lugares que até os anjos não desciam. Mas, elas estavam lá. Lado a lado, rogando proteção, pedindo perdão. Em vão tentar mostrar que elas não tinham nada a ver com aquilo. Elas se responsabilizavam, elas se culpavam, elas se martirizavam. Elas tinham uma culpa que absolvia e absolve toneladas de equívocos, erros dos entes queridos. Ali fui aprendendo a ver a força da oração de uma mãe. Como que as rogativas delas chegam aos céus sem fazer curva, deslocando Serafins e Querubins para atenderem ao pedido. 


Finalizando, há a falta do filho. Não apenas a dos filhos mortos, mas a dos filhos que em determinado momento escolheu-se não ter e que hoje, elas desejariam, mas o relógio biológico não permite. Em toda mulher parece existir essa dor, essa força, esse vazio, essa busca. Elas querem algo que escapa. Buscam algo que encontram, as prendem, as ajudam, as aliviam, mas ainda não é o preenchimento. Em todas há uma busca, o desejo de que uma metade de mim seja preenchida, encontrada. É bom que ainda temos abraços como formas de fusão.