O
filme tem muitos contornos, pontos de entrada e chaves de leitura. Eu vou
explorar apenas dois: o amor e o abuso.
Ao
abordar o amor e o abuso estarei discutindo o ciúme, a posse, a confiança, a
entrega e a dificuldade de tudo isso nas relações sejam elas tóxicas ou não. De
modo geral, renuncia-se muito do que se deseja, do que se é para estar em uma
relação, para estar na sociedade.
Hoje,
mais cedo, sondava uma Moça Bonita sobre o ciúme. A sondava para que ela me
trouxesse um pouco do olhar dela para a questão e sobretudo da leveza com que
realizou o seu processo, a sua travessia do ciúme até o (si) acolher. Estabeleci
o diálogo com ela tendo como pano de fundo duas partilhantes que tenho a
honra de atender. Uma que vivencia a pressão e a opressão que o ciúme coloca
sobre ela mesma. Outrx que vivencia o poliamor e uma forma bem soltx de lidar
com o outrx e as relações.
Na
prosa, Moça Bonita nos trouxe o ciúme como sendo aquilo no qual nos
apegamos, nos prendemos, mas quase nunca é a coisa mesma. Tende a ser mais a
representação de uma falta, de um buraco, de uma coisa, um verniz que camufla a
coisa mesma. Enfim...
“É ASSIM QUE ACABA” é
um filme despretensioso, corajoso, sensível, que toca o ciclo e reprodução da
violência nas direções e múltiplas camadas dxs abusadxs e dxs abusadorxs.
O
filme consegue tocar as questões sem culpabilizar vítimas e/ou desumanizar
abusadores. Sim, abusadores são humanos, alguns desenvolvem uma forma trágica,
torpe de desumanizarem a outra pessoa para sentirem prazer, controle, poder.
Mas, reputo importante tratarmos isso dentro da ordem do humano. Sem criarmos
subterfúgios e alegações de estarem possuídos, de serem demoníacos; não- eles
são humanos, demasiadamente humanos, parafraseando o filósofo.
O
filme de uma maneira muito sensível aponta para a complexidade do
problema.
E,
qual é o problema?
O
ciúme? A posse? O abuso? A ligação tóxica que esses vínculos estabelecem? Os
padrões que são reproduzidos ‘anatematizadamente’ sem percepção dos envolvidos?
Tudo isso junto? Afinal, qual é o problema?
II
O filme
apresenta como personagem principal uma jovem bela e sensível. Certo dia, essa
jovem percebe um rapaz que vive em uma casa abandonada em frente à sua janela.
Ele é colega de escola dela e senta algumas poltronas atrás no transporte
escolar. Ao vê-lo revirando o lixo em busca de restos, ela, de forma quase
despretensiosa, pega comida de sua própria casa, coloca em duas sacolas e as
deixa onde ele possa pegar sem ser notada.
Na manhã seguinte, eles trocam algumas
palavras, e a distância entre os assentos no ônibus começa a diminuir. A
amizade entre eles se fortalece. O rapaz compartilha que sua mãe, vítima de
violência doméstica, o expulsou de casa após ele tentar defendê-la. Em uma cena
posterior, os dois conversam sobre as agressões que a mãe da jovem também sofria do
pai. Eles se abraçam, e o vínculo entre eles aprofunda-se.
O tempo passa. Anos depois, a jovem, agora em
Boston, está sentada em uma varanda quando escuta um homem chutando cadeiras.
Ao perceber sua presença, ele se acalma. Eles conversam, flertam, quase se
beijam, mas ele é chamado para uma cirurgia de emergência.
No denrolar do filme, ela se apaixona. Eles
se apaixonam. Declaram que si amam. O cara é legal, interessante, apaixonável.
(Não tem nada nele que o desabone, pelo contrário. É a parte de humanização dos
personagens. Meio "Somos quem podemos ser!"). E, então quando ambos
estão enamorados um pelo outro, ela reencontra o seu 1º amor. E aqui temos os
primeiros volteios, que uso para trazer algumas digressões.
III
Tenho
atendido um partilhante que vivencia o poliamor. Em uma das nossas conversas,
ele mostrava como que todo o drama que a literatura, o cinema explora e se
sustenta perde a densidade quando se tira a questão da monogamia, rsrsrs. Nunca
tinha pensando na questão tendo a monogamia como foco, mas nunca deixei de
pensar nestas questões no que tange a liberdade. Afinal: por que alguém não
pode amar duas pessoas ao mesmo tempo? Por que pressionamos a pessoa para
escolher apenas uma? Por que não podemos conviver com a possibilidade de a
pessoa viver com os dois amores ao mesmo tempo? Por que temos que dar ao amor
essa carga de tensão, sofrimento, dor e renúncia?
O
filme não explora essa dimensão, nem carece. Aqui são devaneios filosóficos
existenciais. No entanto, o filme explora com maestria os padrões de repetição
de agressão, de violência, de desculpas, mas sobretudo de interrupção do
padrão. E isso amplia a beleza do filme. Volto a ele.
IV
O filme consegue tocar um tema muito sensível que é o da violência contra a mulher, mas aborda sem condenações e julgamentos. Aborda mostrando o horror e a paralisia da mulher que viu a cena acontecendo com a mãe e jurou que jamais permitiria que acontecesse com ela. Até ela se encontrar naquela situação. Qual situação?
Ela
escolheu um cara amoroso, bonito, apaixonado, sincero. Como ela não viu?
O
cara a ama; a ama mesmo, de verdade, sem ilusão e sem mascara. Todavia, esse amor
a agride, a machuca, a manipula, a diminui, a desencanta. E, por qual motivo,
ela simplesmente não vai embora? Não sai fora?
Simplesmente,
pq isso não é claro e evidente quando estamos dentro. Quando estamos
vivenciando. O diretor consegue nos manipular nessa distorção, ilusão do olhar
da atriz e da manipulação do moço. Achamos que todas agressões de fato fora
acidente. Somente o antigo namorado dela sabe o que está acontecendo, nos
alerta, mas a gente o vê como um destemperado, por agredir o marido dela assim. Interpretamos como sendo uma cena de ciúmes, de rivalidade. Poderíamos colocar atenção ao pedido do marido a esposa: com qualquer um menos com ele! Mas, no contexto apresentado a frase também ganha a dimensão amorosa.
As narrativas, os relatos diante de provas, evidências e acontecimentos ganham outros endereçamentos. Só sabemos o que acontece pela ótica dela e na ótica dela nenhuma agressão, violência está acontecendo. É a complexidade do existir que o filme adentra com muita elegância, com muita finesse, com muita sutileza na violência domestica. Uma violência que a vítima demora a perceber, compreender, nomear e mais tempo ainda para posicionar, procurar ajuda. E, mais tempo ainda para romper, separar, terminar.
De modo que o diretor toca a questão com uma sutileza tão profunda que nos permite abordar o tema sem construir a visão do monstro. Possibilita ela olhar para o pai, um agressor e entender que o amou e o odiou. Possibilita ela olhar para mãe e pergunta-la, pq vc ficou com ele? E em mais uma verdade nua e crua, ela dar a resposta. Ela amava o pai dela e não tinha condições econômicas, financeiras, estruturais para romper.
A resposta da mãe possibilita sobretudo, ela grávida, se afastar do marido agressor, ir aos
poucos reestabelecendo contato, falar para a cunhada, sua melhor amiga o que
estava vivenciando na relação e NINGUÉM sabia. Essa é a parte mais ferrada da
agressão e ganha ares de toxidade.
A toxicidade não está na agressão física em si, porque essa é vista, percebida, pela própria pessoa. Fica registrada no corpo de delito. A perversidade vem quando o agressor convence a vítima de que não houve a agressão mesmo, ou que dói mais nele do que nela, ou que o que aconteceu, não está acontecendo, ela é louca, doida, está inventando, criando, fantasiando e isso sim é motivo para ela ser novamente agredida. É no ferrar o psicológico dx outrx que reside a crueldade da violência. E, estamos quase chegando ao problema. Mas, antes um outro mergulho.
Uma
cena impactante se dá no parto. A moça faz a maior homenagem que o agressor já
recebeu na vida. Dá o nome da filha deles do irmão que ele matou em um disparo acidental
na infância. É diante dessa emoção dupla, o nascimento e o nome da
filha, que a personagem principal, consegue realizar um processo de
compreensão, impossível até então. Uma compreensão que ela provoca, justamente
após pedir o divórcio.
O
agressor tomado por uma emoção, com a filha nos braços, fala que vai
protegê-la. Mas, é uma proteção raivosa, furiosa. Uma proteção mutiladora,
castradora similar a que o pai dela fez com ela. Ela reconheceu a fala, o
olhar. Ela não poderia permitir que isso perpetuasse.
E a beleza do filme está em explorar essas reproduções sem desumanizar o outro. Sem re-criar padrões. Seguindo o estereótipo vinculado e utilizado o violento, o abusador deveria ser o cara que levava surra dos namorados da mãe, mas ele pelo contrário, faz de tudo para não ocupar esse lugar.
O abusador vem de uma família na qual esse tipo de padrão não estava lá. De um cara que é apaixonado pela irmã 11 meses mais nova. Esse cara que nunca conseguiu estabelecer vinculo duradouro com nenhuma mulher. Vem do cara que não sabe o que fazer na possibilidade de perder a pessoa que ama. Aqui a trama nos leva a camadas e ligações insinuantes, interessantes, mas que não temos como saber sem investigar. Faço a ligação de forma tosca e superficial, embora parece evidente que o ciúme doentio do marido relaciona-se ao temor de perder o ser que ama tal qual aconteceu com a morte do seu irmão. Em algum lugar parece que houve uma sobreposição entre amor-perda que o transfigura, o remodela, desperta nele um lado que ele não conhecia, não tinha e se manifesta nas pessoas que ele mais ama: a esposa e a filha.
A filha recém nascida, a separação, o amor, cura a relação. Cura ambos. Horas de vida e a criança está promovendo um processo de cura em toda ancestralidade. A do pai que tendo tirado uma vida, concebe outra que honra a memória do seu irmão. A da mãe que consegue listar características positivas do pai e apresentar a neta, ainda que fosse na sepultura do pai. Consegue sobretudo levar o agressor a responder o que ele faria caso a filha se apaixonasse por um homem que a agredisse?
Ele responde que pediria distância, mas ele mentiu. Ele mataria o cara. Não teria nenhuma possibilidade fora da morte. Mas, então, pq ele fazia isso com a filha de alguém?
Ele não consegue explicar, nem controlar, nem parar. Na ameaça da perda, ele agrediria, mataria. Na lógica do ciúme é melhor matar do que dividir. Mesmo porque a separação, a existência longe delx já é uma morte.
É assim que acaba tem camadas de
términos, de fins que são difíceis de lidarmos. Denotam tempos que não passam,
que não terminam, que permanecem.
Vários fins e reinícios brotam do
filme, num ciclo natural, similar ao das plantas, ao da vida, ao dos
jardins.
A
relação da personagem central com o garoto da casa abandonada parece que
termina, mas tem reencontros, reviravoltas. O filme brinca com as situações nas
quais parece que tudo está bem até que irrompe a percepção do inusitado, do que
não temos controle.
Um
dia depois de uma transa, o pai da moça, os surpreendem na cama. Ele surra o
garoto. Ele sai da casa dela na ambulância. Aparentemente nunca mais se veem.
ACABOU?
Não! Ela
se muda para Boston, cidade natal do garoto espancado pelos namorados da mãe e
agora espancado pelo pai da namorada. Um dia num terraço encontra aquele que se
tornaria o seu primeiro marido. E, o casal numa visita da mãe a cidade jantam
num restaurante cujo proprietário é justamente o ex namorado que nunca mais se
viram. ACABOU?
Aparentemente
sim, mas ainda não é o fim.
Numa revista que escolhe os melhores points da cidade, o marido descobre que a tatuagem na parte do corpo da esposa que ele mais amava, era o símbolo de um carvalho que o namorado da juventude havia talhado para ela. A parte mais bela dela, era justamente a parte que ela tinha tatuado, esculpido o outro em si mesma. Como não odiar? Como não enfurecer? Ou revisitando: por que odiamos o amor? Por que nos enfurecemos em saber que alguém que amamos ama outrx? Nós precisamos sair desse paradoxo. Parece que essa raiva, essa negação, essa cegueira ao amor nos deixa menores, mais feios. Desperta o pior em cada um e de cada um.
É
tomado por uma fúria, um ódio, um ciúme o marido dela quase a estupra e
ela apavorada corre, foge. Ela numa sobreposição fica paralisada. Relembra o
pai fazendo o mesmo com a mãe também no sofá. Só que daquela feita, ela estava
vendo a cena de fora, meio que por sobre ambos que se encontravam deitados.
Dessa vez, ela estava deitada, impotente, sob um corpo raivoso, furioso, que só
encontrava alívio para sua dor, agredindo. Infligindo dor a pessoa que ele mais ama. Ele a morde no lugar exato da
tatuagem. Como querendo arrancar o outro de dentro dela.
A insanidade da cena. É que ela ama os dois. Mas, essa divisão para o agressor era intolerável, insuportável. Era preferido matá-la a dividi-la. E, aqui respondemos diretamente ao problema.
Nossa forma de amar é possessiva demais. E, é preciso um tônus de liberdade, autonomia para quebrarmos os padrões, ciclos, repetições de agressões, violências, abusos. É necessário flertarmos com a liberdade para que cada uma, cada um consiga se movimentar para longe da fúria possessiva do outrx. Precisamos ampliar a liberdade para acolhermos o amor. Construir outras relações nas quais o amor não fique restrito e reduzido a posse, ao medo, a perda, ao abandono. Amor pode estar mais perto da autonomia, da liberdade, da escolha, da vontade de ser e estar consigo, com outrx, com outrxs.
A personagem central escolheu estar consigo mesma, com a filha, num ato de amor que traz a liberdade, a emancipação, as possibilidades como pano de fundo.
Parece
que é assim que acaba, mas ainda não é.
Acaba
da forma mais linda e bela. Acaba com ela pegando a filha no braço, pedindo a
separação, reconhecendo o amor que sente pelo agressor, reconhecendo que a
filha é deles, mas sobretudo colocando fim a um ciclo de abusos, de
violência, de agressões.
O fim é um novo ciclo, uma nova poda, um novo recomeço. O fim é o surgimento de uma narrativa que para além de crucificar mocinhas e bandidos quebra o ciclo de repetições, padronizações.