Ao meu
Unbermensch, minha superação, pela coragem com que defende e ampara aqueles que
amam. Eu te amo cada vez mais.
Ela não encontra razão na
vida, mas como encontrar? O estupro dilacerou sua confiança, seu corpo, seus
sonhos e em tenra idade.
A outra sai de casa com
as lágrimas nos olhos, com o choro da alma até chegar na escola. Ao chegar,
procura os lugares mais inacessíveis e sobe. Todos a pedem para descer. Nos olhos
dela, eu vejo o desejo de se jogar; quando ela desce, nós falamos da tristeza.
A mãe disse que se ela não fosse filha dela a jogaria no lixo. Tento relevar,
mas a ferida já esta aberta. E a forma que a menina encontrou para dar conta é
se equilibrar. Diz ela que é bom, faz bem. Fico pensando quando é que a vontade
de pular será mais forte do que a do equilíbrio?!
A outra encontra em Deus
seu sentido, mas está numa fase da vida cujo fogo da carne queima mais do que o
do Senhor. Nesse momento, mesmo que seja por alguns instantes, Deus e a vida
perdem o sentido, porque junto ao desejo pelo corpo do amado, vem a imagem do
abuso e da violência recebida no passado. A dor parece ser dupla.
A outra chega
todos os dias na escola com uma blusa de frio que esconde os cortes desenhados
na pele. Segundo ela e tantos outros que fazem o mesmo, a dor dos cortes não se
compara com as dores que sentem n’alma. Se cortar é um alívio.
A pergunta
que me ocorre é que dor é essa? Independente do nome, estamos diante de
suicidas potenciais. Todas elas poderiam ser uma única pessoa,
mas são várias. Elas são aquelas que buscam um sentido na vida, mas esse
sentido não é que seja difícil de encontrar, é insuportável tolerar. A vida tem
nelas, neles um peso que massacra, que afunda, que deprime, que dilacera. É um
peso que daremos o nome de absurdo e esse peso tem uma fome, um espaço, que o
chamaremos de angústia.
Assim, por vezes, para
lidarem com esse vazio, esse absurdo, eles se cortam, eles buscam alívios para
uma dor na alma que não conhecemos, mas a dor existe, está lá, chagada.
Por que não vemos? Por
que não acudimos?
II
Os
cortes físicos, as dores invisíveis me fazem lembrar Iessienin, o jovem poeta
russo, que ao cortar os pulsos escreve seu último poema a sangue nos quartos do
hotel. Maiakowiski, meu poeta fabuloso, após as centenas de homenagens ao jovem
poeta, se pergunta: se as tintas acabaram e agora era necessário escrever com
sangue? A resposta vem anos mais tarde, quando num outro quarto de hotel, longe
da gelada e aconchegante mãe Rússia, o fabuloso se mata com um tiro no peito.
Sim,
todo suicida brinca com o drama, com a tragédia. Para eles não importa somente
a morte, o se matar, e, sim, a forma com que serão lembrados, não serão
esquecidos. O desejo é mais a dramaticidade, a esteticidade, como um desejo de
embalar a dor nos braços das vicissitudes.
Mas,
fora o fato deu ser dramático, trágico, escrevo sobre o suicídio, porque muitas
pessoas têm me procurado, falando que isso lhes tem passado pela cabeça. É
estranho o suicídio passar pela cabeça e não pelo coração, mas ao que indica,
ele passa é pela cabeça. Uns pensam em se cortar, vagarosamente, até todo o
sangue do corpo se esvair; outros pensam em se jogar de pontes, outros em
entrar na frente de carros, outros de deixarem a moto se chocar com o muro,
como se fosse acidente, outros acreditam que serão mortos por uma pessoa que as
ama. Fico vendo esse movimento nas mais diversas idades e o que há em
comum em todos é um abandono, uma rejeição, uma violação, um abuso- sexual ou
não. Há uma orfandade não preenchida, há uma dor não suturada, há um grito
inaudível até para elas/eles, como um choro constante, ininterrupto, incessante
que distraí com alguma coisa, mas muitas vezes volta mais forte, resoluto e
firme. Há um desejo de se matar, mas matar o que?
III
III
A idéia do suicídio me
perturba, não em me matar, nada disso, mas o que leva uma pessoa a isso? Como
ela chega a esse ato? Parece que há etapas, fases, caminhos. O suicídio longe
de ser um ato isolado como vemos, um sinal de desespero como taxamos, ele é uma
construção. O suicídio é construído paralelamente a significação da existência.
Num jargão da Física, o suicídio é a anti-matéria da vida. Por que não vemos?
Não vemos, porque a
maioria dos seres são indiferentes tanto a vida quanto a morte. A maioria não
nasceu, conseqüentemente, não irá morrer. A morte e a vida lhes são
indiferentes. Um amigo espiritual os chama de abortados.
Outra parte significativa
opta pela vida e a significa. E a significa não porque não convivem com os
abortos, não porque não tenham tido e recebido o peso do absurdo, mas é que
focam mais na vida do que na ‘anti-matéria’. Ao que parece, o campo
gravitacional dos suicidas é mais denso, a força que os oprime e os dilacera é
maior. Em certa medida, eles já passaram o umbral da indiferença, mas ainda não
chegaram a alcançar o sentido. Esses são os suicidas em potenciais. O que me
leva a pensar o suicido como processo, fase.
IV
Nélson Rodrigues via nos
suicidas os juízes do mundo. Nesse tempo, eu os via como seres incompreendidos.
As razões para o suicídio nesse momento estavam para mim na inadequação deles
ao mundo, ou seja, era um ato do corpo mental. Uma solidão, um vazio
existencial que não lhes davam alternativas senão o fim. Eram seres
incompreendidos que encontravam no fim uma forma de descanso, paz. Hoje,
acredito que essa sentença que lançam ao mundo é tardia, parece ser a última
fase.
Tive por vezes a
concepção do suicida como um chantagista emocional. Um cara que premedita todos
os atos, elabora o efeito psíquico que causará nas pessoas que ficam, sendo
tudo nele premeditado até mesmo como o corpo vai ser encontrado e por quem.
Essa premeditação chantagista existe de fato, mas dentro do processo é uma
forma de se fazer visto, visível, perceptível, melhor, o que se quer mostrar
não é o ser e sim a dor que o ronda, o invade, o toma, se apodera dele de todas
as formas.
Hoje parece que tudo isso
é um processo, um desenvolvimento, que inicia na falta de sentido, o que os
existencialistas denominam de ABSURDO e culmina na ANGÚSTIA, esse estado de
morte que ronda todo ser vivente, mas que em alguns a boca dela é muito maior.
A boca é quase a de uma
jibóia que dá um abraço forte, moendo todos os ossos, todos os sonhos, todas as
esperanças, todos os fins. Quando a pessoa acha que acabou, ela ainda moe o fim
do fim, até chegar ao fim do término. Muitos desistiram bem antes. Relutaram,
mas não foram vistos; de “repente” são engolidos, como a baleia engole Jonas.
Abrigados na própria angústia, embalados pelo próprio absurdo deveriam ser
capazes de encontrar o sentido, mas... qual?
Queria estar exagerando, mas não estou. Há pessoas que só encontraram dor, crueldade, frieza na vida. Não conhecem outras construções que não sejam essas. As que encontram um gesto de carinho, um ato de amor encontram força para significar a vida num alto grau de empatia, mesmo porque conhecem como poucos as dores do outro. Estou falando de muitos religiosos, policiais, psicólogos, professores, que conseguiram significar sua vida, por terem sido acolhidos e agora acolhem com um envolvimento de jibóia.
Queria estar exagerando, mas não estou. Há pessoas que só encontraram dor, crueldade, frieza na vida. Não conhecem outras construções que não sejam essas. As que encontram um gesto de carinho, um ato de amor encontram força para significar a vida num alto grau de empatia, mesmo porque conhecem como poucos as dores do outro. Estou falando de muitos religiosos, policiais, psicólogos, professores, que conseguiram significar sua vida, por terem sido acolhidos e agora acolhem com um envolvimento de jibóia.
Hoje, aos meus olhos, o
suicídio é a parte visível de uma dor lancinante, devoradora, silenciosa,
invisível que vai tomando a pessoa dia-a-dia até culminar no ato final. Nesse
aspecto, o suicida é de novo o julgador do mundo. Afinal, como não vimos que o
outro tem toda essa dor na alma? Como não oferecemos cuidado a esse outro que
se encontra mutilado ao nosso redor?
Mesmo sendo da mística,
não acredito em um sentido dado, em um sentido único. Acredito num sentido
construído, numa significação que damos à existência. Nesse aspecto o sentido é
cada um significar a sua vida, mas a vida parece em teimar em nos mostrar que o
sentido, dado, construído ou encontrado, nunca se faz na solidão, o sentido se
dá no encontro com o outro. É no outro que o sentido se plenifica. É no outro
que o significado ganha plenitude e é também na falta e na ausência desse outro
que o sentido desbota.
Por isso que a todas
essas pessoas, conhecidas ou não, próximas ou não, é fundante mostrarmos outras
formas de contato e convívio que não seja a das dores, da violência. É
importante sermos capazes de mostrarmos que há outros encontros que não o da
violação, do abuso, da violência, do desrespeito, da diminuição, da sabotagem,
da injúria, enfim da maldade. Muito embora, a experiência tem me mostrado que
mesmo nos valendo de outra força que não essas citadas acima, muitas delas
transformarão nossos atos em medo da vida; temerão as carícias no corpo e na
alma como se fossem tapas; acreditarão que todas as primeiras, segundas e
terceiras intenções das pessoas sejam machucar, por mais que tenham aprendido o
cuidado com o outro. Não nos resta alternativa senão convivermos com elas,
mostrando o que a vida tem de melhor, de mais puro, de mais integro, de mais
belo. Talvez esteja falando de amor e tolerância, paciência.
Um amor tão forte, que a
sua suavidade segura a existência de um ser na vida, dá a ela condições de
caminhar pela vida. Uma presença tão suave que da força para as pessoas
resistirem a sensação de solidão. As vezes para se evitar que uma pessoa se
mate basta apenas isso. Pelo mesmo lado, as vezes não há nada para se evitar, o
peso do absurdo e a fome devoradora da angústia são maiores, muito maior e pode
parecer bizarro, o amor chegou tarde.
VI
No aspecto espiritual penso no slogan da década de 1990 da Federação Espírita de Uberaba: “não se mate, você não morre.” Talvez, essa seja uma das formas de transcendência que podemos ofertar a essas pessoas e a nós mesmos. Conhecermos nosso aspecto energético longe dos preconceitos e prejuízos morais que acompanham a escolha mais profunda de todo ser vivente: viver ou se matar? Podemos nos matar? Podemos dar fim a nossa própria vida? Todo existencialismo, todo absurdo, toda angústia, todo niilismo, toda plenificação e sentido repousa nessa escolha, seja ela qual for- viver ou se matar?
Aqui é o início da Filosofia, não enquanto conceitos, mas enquanto problema real e concreto- a finitude da vida. Podemos dar fim a nossa? Se não, cadê nossa escolha? Se sim, por qual razão? Acredito hoje, agora, que encontraremos nosso sentido apenas quando lidarmos com a angústia do fim. É por trás dele (fim) que nasce as condições de novos términos e muitos outros inícios. É nesse mergulhar que conseguimos dissipar as indecisões.
Por esse molde a pergunta
que tenho feito e estendo a aqueles que pensam no ato é: o que você deseja de fato matar? O que você de fato você quer
que morra? Creio que essa resposta nos direciona ao sentimento de mudar a vida,
de viver mais, de sair de um relacionamento estafante, de um trabalho
estressante, de uma condição de vida que por vezes não temos como mudar, ou a
cabeça pensa não ter.
Vida é
mudança e parte da dor, ou toda ela é ficar resistindo ao mudar, é ficar
tentando de todas as formas encaixar a mudança dentro da nossa conformidade e
adequação. Aceitar o desafio da vida eis... o sentido. Como diz, o poeta
fabuloso:
Nesta vida/morrer não é
difícil./O difícil/ é a vida e seu ofício.