por Ana Cristina e Kélsen André.
(Professores do IMFIC, respectivamente Polo São João Del Rey e Belo Horizonte).
Ainda tenho
palavras para entregar
elas brotam da
dor e se fazem adultas
Talvez a
loucura tenha arrancado ouvidos
olhos e tudo o
que tinha pra me sentir
Meu desespero é
a brisa que você respira
nas manhãs em
que não toma seu café.
Raphaela Ramos
O
conceito de interseção amplamente utilizado em Filosofia Clínica foi inspirado
na matemática de Georg Cantor e significa, entre outras coisas, a relação que
se estabelece entre filósofo clínico e partilhante. Estudando essa teoria dos
conjuntos Packter as define como: interseção positiva, aquela que
subjetivamente provoca um bem estar entre os envolvidos; interseção negativa,
aquela que subjetivamente é ruim, provoca um mal estar entre ambos; interseção
confusa como aquela que hora é positiva e hora é negativa e por último a interseção
indefinida ou indeterminada, ou seja, aqui as pessoas envolvidas não
conseguem definir como sendo nenhuma das outras acima. Essas intercessões nos
acompanham nas nossas relações, coloquemos ou não atenção nelas.
Em
torno desse estudo um questionamento surgiu em sala de aula, sobre o que fazer
para qualificar uma interseção? Existem regras? Jogos de linguagem? Qual o
caminho a seguir para se conquistar uma interseção positiva? Ou ainda, haveria
algum risco, entre a relação, partilhante e filósofo clínico, de produzir um
tipo de intercessão que desqualificaria o trabalho clínico como advogam muitos
psicanalistas? Acreditamos que embora seja questões bem colocadas, parte
significativa delas serão respondida mediante as vivências e estudos de cada um.
O que não nos impede de refletirmos sobre o assunto.
Em
clínica, a interseção é tudo. Ela não está determinada entre as partes
envolvidas, ela é construída. No consultório poderíamos dizer que ela começa
pelo partilhante, pois esse é quem escolhe seu terapeuta e essa escolha é
feita, em alguns casos, pelas aproximações que esse de longe já consegue observar
ou pelo seu contrário.
Não
somente as palavras orientam uma interseção, mas também, os gestos, expressões,
olhares, atenção. Tudo pode ser muito significativo nesse momento. Como diz
Packter, a interseção seria a soma de empatia, sintonia, harmonia, amizade,
interesse mútuo em proveito de uma causa.
Criando um lugar seguro, o partilhante pode sentir-se mais tranquilo para compartilhar sua história, suas questões, suas dúvidas e sua dor. A experiência nos leva a uma conclusão, a de que não vamos resolver os problemas de todo mundo. Não podemos tudo e quando conseguimos algo, é em cumplicidade com o outro. É pela permissão que o outro nos dá para visitar seu universo existencial.
Criando um lugar seguro, o partilhante pode sentir-se mais tranquilo para compartilhar sua história, suas questões, suas dúvidas e sua dor. A experiência nos leva a uma conclusão, a de que não vamos resolver os problemas de todo mundo. Não podemos tudo e quando conseguimos algo, é em cumplicidade com o outro. É pela permissão que o outro nos dá para visitar seu universo existencial.
Qualificar
intercessão para milhares de pessoas é um ato de força de vontade, baseada na
boa ação de se desejar uma melhora das relações, sem muitos meios e ferramentas
para tal empreitada. Já para estudiosos da Filosofia Clínica além de ser: um
olhar-se, ato reflexivo de observar a si mesmo e refletir sobre ações,
pensamentos, modos e temperamentos é também um tentar construir uma nova forma
de interação; ou seja, a interseção. E nessa descoberta, imersa em caminhos,
métodos, abordagens, teorias e percepções, vamos qualificando nossas
intercessões com os modos e submodos que temos disponíveis.
Chamamos
de modos a forma habitual, muitas vezes irrefletida, que disponibilizamos para
solucionar nossas demandas mentais, emocionais, sem a ajuda de um terapeuta e
sem uma metodologia formal. Por exemplo, o jovem que emburra e embrutece todas
as vezes que é retirado do seu Playstation para fazer o dever de casa ou algo
para seus pais. Esse comportamento ocasiona um desgaste na relação que os pais
tentam solucionar, ora não interrompendo o filho em suas atividades, ora o
paparicando dando a ele uma recompensa. O primeiro ato acaba por aborrecer o
pai e o segundo acaba por aborrecer a mãe. No entanto, caso essa mãe se torne
uma estudante de Filosofia Clínica, ela pode vir a compreender o comportamento
do filho, dela mesma e do marido em outro nível e para solucionar esse impasse
utilizaria de alguns submodos, esteticidade bruta, por exemplo, para qualificar
essa intercessão. Outro submodo a ser aplicado poderia ser a recíproca de
inversão. Segundo Packter:
{...} Aqui o movimento parte em direção
ao outro, ao sujeito com quem estamos em Interseção no presente e no ato. A pessoa abandona, subjetivamente, e na
medida em que lhe é possível, seu próprio mundo existencial e passa a
conjecturar as coisas do ponto de existência da outra pessoa; é evidente que
por mais que eu me afaste de meu mundo existencial e me aproxime do mundo
existencial de outra pessoa, de modo algum conseguirei ter a mesma concepção
daquela pessoa a propósito das coisas que são percepcionadas por ela {...}.”
(Packter, Caderno I. p. 14)
Em
ambas aplicações houve a necessidade de um duplo movimento. Primeiro se
conhecer, segundo e quase que concomitante re-conhecer os outros que perfazem
suas intercessões. De posse de esse saber, ela tem a escolha de continuar e
permanecer nas reações ou aplicar uma metodologia clara, embasada na Estrutura
de Pensamento-EP de cada um dos envolvidos. A esse uso intencional e
circunstanciado estamos chamando de submodos.
A
partir disso não deixa de ser curioso nos perguntarmos: como e por que temos
intercessões positivas com umas pessoas e negativas com outras? Por que temos
intercessões indefinidas e indeterminadas em algumas circunstâncias? Longe de
ser uma resposta final e categórica é bom destacar que cumprimos vários papeis
existenciais e alguns desses papéis podem entrar em conflito com outros que
vivenciamos, implicando nas mais diversas intercessões.
Sabemos
que a Filosofia Clínica não nos permite rótulos, um fixar absoluto, perene e
ontológico do sujeito. O mundo como representação possibilita ao estudante de
filosofia clínica dizer apenas como vemos o outro e não necessariamente como
ele é. E essa limitação, que em alguns termos se reduz: “no mundo como um assim
para mim”, não me faculta uma universalização totalizadora dessa representação,
não nos permite arroubos universais, já que as 1- circunstâncias, assim como a
2- singularidade, têm um papel determinante nessa compreensão.
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As
circunstâncias pelos motivos que estamos desejando explicitar, a saber: uma
pessoa pode ter um papel existencial agradável como pai, irmão e amigo e
exercer um papel existencial autoritário e negativo como chefe, patrão ou
marido. Supondo que o filho ou a esposa deste lhe seja vizinho nas duas
circunstâncias, terá dele duas representações. No entanto, nenhuma delas
faculta acusá-lo de bipolar ou estigmatizá-lo com características similares por
comportamentos diversos em situações diferentes. Pelo contrário, essa não
rotulação amplia a liberdade dos indivíduos e permite ao filósofo clínico uma
maior abertura, maior tolerância, cumplicidade e respeito à diversidade e
idiossincrasias do outro. Esse é um componente que não pode ser perdido de
vista. E nesse conjunto abordamos a singularidade.
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A
singularidade é um conceito importante para nos situar em nossas intercessões, chamando
nossa atenção para como nossos traços, nossas peculiaridades se
inter-relacionam quando adentram e intersecionam com a singularidade do outro,
esse não eu. Por falar nisso, como estão sendo as suas intercessões?
Voltando
para o espaço da sala de aula, retomamos uma pergunta inicial ainda deixada em
aberto: existiria em Filosofia Clínica o mito do Psicanalista? Ou seja, a
intercessão partilhante-filósofo clínico seria marcada ou demarcada pelos
mesmos limites ou limites similares as do psicanalista-paciente? Para abordar
essa temática, nesse nuance recorremos a um conceito de Paul Feyerabend
denominado Incomensurabilidade. Basicamente, o conceito tenta sedimentar a
impossibilidade de se reduzir ou até mesmo, algumas vezes elucidar, uma área na
outra. É com esse cuidado que prosseguimos.
Seja na Psicanálise Ortodoxa ou não, é tido como fundamental se estabelecer o Mito do Psicanalista. Esse mito relaciona-se com a necessidade terapêutica de se produzir um distanciamento do paciente. Sendo que nessa lacuna aconteceria a transferência e uma possível e relativa contratransferência demandando todo um material recalcado e inconscientizado que viria à tona. Esse material se faria vital na avaliação psíquica do analisado, por estar relacionado com as questões primárias da sua psique. Por todo esse conjunto de coisas e relações, acredita-se que o estreitamento de laços acarretaria numa mistura, numa confusão que mitologicamente inviabilizaria o paciente de tomar consciência das suas questões e do psicanalista lhe ajudar nesses e outros pontos. Em essência é similar ao que estamos apontando como diferença entre modos e submodos, disso resultando, no caso da Psicanálise, demarcação de que psicanalista e paciente não se relacionam fora do espaço clínico.
Seja na Psicanálise Ortodoxa ou não, é tido como fundamental se estabelecer o Mito do Psicanalista. Esse mito relaciona-se com a necessidade terapêutica de se produzir um distanciamento do paciente. Sendo que nessa lacuna aconteceria a transferência e uma possível e relativa contratransferência demandando todo um material recalcado e inconscientizado que viria à tona. Esse material se faria vital na avaliação psíquica do analisado, por estar relacionado com as questões primárias da sua psique. Por todo esse conjunto de coisas e relações, acredita-se que o estreitamento de laços acarretaria numa mistura, numa confusão que mitologicamente inviabilizaria o paciente de tomar consciência das suas questões e do psicanalista lhe ajudar nesses e outros pontos. Em essência é similar ao que estamos apontando como diferença entre modos e submodos, disso resultando, no caso da Psicanálise, demarcação de que psicanalista e paciente não se relacionam fora do espaço clínico.
Sendo
mais claro, o psicanalista temendo uma perda de referencial por parte do
analisado, faz o máximo para não perder o controle desse espaço, que nessa
visada, significa o controle terapêutico. De modo que o psicanalista,
praticamente não se ‘abre’ para além do espaço demarcado, tudo isso sob a
suspeição (para muitos mais do que suspeição é algo empírico e comprovado) que
havendo misturas de papéis ou outros espaços de intercessão, de vizinhança,
acaba o aspecto terapêutico; o analisado abandona o tratamento.
Essa
é uma condição, que pelo menos num primeiro momento, é impensada em Filosofia
Clínica já que tacitamente, a partilha inicia com o aval claro de que o
partilhante é alguém que poderia ser amigo do filósofo clínico. De modo que a partilha se faz numa
intercessão na qual a amizade e junto dela alguns desdobramentos como
confiança, cumplicidade, intimidade para falar de três qualidades mais
marcantes e não necessariamente interdependentes numa partilha.
As intercessões são muitas e em cada uma delas o filósofo clínico pode avançar em direção ao outro sem temer se perder ou perder o processo terapêutico.
As intercessões são muitas e em cada uma delas o filósofo clínico pode avançar em direção ao outro sem temer se perder ou perder o processo terapêutico.
Percebemos
então que a intercessão filosófica clínica é quase uma quebra deste mito. A
Filosofia Clínica inicia-se dessa lacuna, desse não lugar, dessa rusga, desse
medo do encontro, desse desejo tácito do abraço que não pode ser dado devido a
um rótulo ou a um papel existencial importantíssimo, mas que não deveria ser
maior do que a acolhida de outro ser humano. Fazemos uso da citação de Lúcio para ilustrar, embora ressaltemos que o contexto pensado por Lúcio não
era necessariamente o que expomos aqui:
Onde Freud sentenciou que a Psicanálise parasse, na psicose, é onde muitas
vezes iniciará a Filosofia Clínica. Nosso endereço existencial será dado na
trajetória que percorrermos com quem partilhamos os espaços da vida.” (Packter,
in: Filosofia Ciência & Vida Especial, 4, em entrevista concedida).
Como
vimos o conceito de singularidade não nos permite respostas precisas. Uma
melhor compreensão do tema pode ser vislumbrada pelo compartilhar de
experiências, autenticando as reflexões acima, trazemos para a conversa algumas
de nossas vivências ocorridas no I Diálogo Nacional de Filosofia Clínica, em
Poços de Caldas, no ano de 2016.
Ir
a um evento da Filosofia Clínica é sempre enriquecedor. Novos personagens
surgem, compartilhando novos conhecimentos, novos conceitos e abordagens
terapêuticas vão se desnudando pelo caminho.
Foram
momentos marcantes que transitaram desde a oportunidade de rever velhos amigos
como o de conhecer novos colegas. Podemos dizer que o balanço desse encontro
foi positivo, assim como as interseções que começaram a ser qualificadas a
partir daquelas horas.
Diante
de velhos conhecidos uma experiência acontece. Vivendo circunstâncias
diferentes do passado, percebe-se que a interseção ainda não definida, pode se
confirmar, de fato, como positiva. A oportunidade de conviver com as mesmas
pessoas, a de descobrir afinidades profissionais em novos contextos, pode
aumentar o nível de empatia pelo outro.
A falta de conhecimento em relação à expressividade do outro pode proporcionar um transitar de uma interseção positiva a negativa e vice versa. Como o outro se mostra pode afrontar a EP dos sujeitos envolvidos. A presença, o olhar, o vestir, o falar daquele que entra nas minhas relações é um fator importante. Diante do outro transitamos pelas sensações: cheiros, toques, sons que de alguma forma influenciam nossa EP, levando-nos a uma aproximação como ao distanciamento. Assim, com o auxílio de submodos e um olhar atendo a singularidade podemos amenizar esse mal estar.
A falta de conhecimento em relação à expressividade do outro pode proporcionar um transitar de uma interseção positiva a negativa e vice versa. Como o outro se mostra pode afrontar a EP dos sujeitos envolvidos. A presença, o olhar, o vestir, o falar daquele que entra nas minhas relações é um fator importante. Diante do outro transitamos pelas sensações: cheiros, toques, sons que de alguma forma influenciam nossa EP, levando-nos a uma aproximação como ao distanciamento. Assim, com o auxílio de submodos e um olhar atendo a singularidade podemos amenizar esse mal estar.
Outro
caminho que se mostrou foi a busca comum entre os envolvidos. O conhecimento é
o que cito nesse momento. Entre colegas
de profissão e de estudos em Filosofia e Filosofia Clínica essa busca só
contribuiu para fortalecer as relações. Entre brincadeiras e boas piadas, muito
conhecimento foi compartilhado. Cada um, a sua maneira, contribuiu para essa
interseção. Troca de experiências, dúvidas sobre o trabalho com a Filosofia
Clínica, curiosidade e desejo de aprender, esses foram alguns dos fatores
determinantes.
Não só a convivência é um lugar para se construir as interseções, mas também, as redes sociais, a continuidade dos estudos e conversas continuam pelo facebook, whatsapp. Essas e outras ferramentas virtuais, em alguns casos, pode ser o caminho mais seguro para se manter uma interseção positiva, a presença do outro poderia levá-la para qualquer uma das outras três.
Não só a convivência é um lugar para se construir as interseções, mas também, as redes sociais, a continuidade dos estudos e conversas continuam pelo facebook, whatsapp. Essas e outras ferramentas virtuais, em alguns casos, pode ser o caminho mais seguro para se manter uma interseção positiva, a presença do outro poderia levá-la para qualquer uma das outras três.
Sendo
assim, em Poços de Caldas, no encontro de professores, alunos, amantes da
Filosofia Clínica várias intercessões foram realizadas e nos mais variados
lugares: na sala de aula, no café, no restaurante, no bar, no carro. Em cada um
deles o nível de abertura aprofundava e sedimentava, revelando que o contato
humano se faz e se aprofunda na confiança, na acolhida. E esse é um ponto em
comum entre nós amantes da Filosofia Clínica - a acolhida.
Aprender isso é sem dúvida um fator primordial para o estabelecimento de intercessões positivas. Com Leonardo que vim a conhecer na Espanha e Ana Cristina em Poços de Caldas isso não faltou, na verdade, sobrou e transbordou. Foi uma honra e um prazer imenso como escrever esse artigo a quatro mãos e poucos devaneios.
Aprender isso é sem dúvida um fator primordial para o estabelecimento de intercessões positivas. Com Leonardo que vim a conhecer na Espanha e Ana Cristina em Poços de Caldas isso não faltou, na verdade, sobrou e transbordou. Foi uma honra e um prazer imenso como escrever esse artigo a quatro mãos e poucos devaneios.
REFERÊNCIA
TAVANO, Silvana. Freud
explica: dez
mitos da psicanálise. Extraído do livro “Psicanálise em Perguntas e Respostas –
Verdades, Mitos e Tabus”, de David E. Zimerman, Editora Artmed, 320 págs., R$
64. Disponível em:
.
Acesso em: 3 jan.
2017.
ANDRADE DA SILVA, Marcio José; HACK, Olga . Filosofia
Clínica e Cinema: uma compreensão
teórica através de filmes . Campinas: Lince Gráfica e
Editora, 2014. 232 p
PACKTER, Lúcio.
Cadernos de Filosofia Clínica. Porto
Alegre. 1997.
LAPLANCHE,
J. PONTALIS, J B Vocabulário da
Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes. 1967 6ª ed- tradução Pedro Tamen.
707p
PIERON,
Henri. Dicionário de Psicologia. Porto
Alegre: Editora Globo. 1978, 6ª ed. Tradução Dora de Barros Cullinan. 533p