A maioria de nós não acredita em mitologia. Mas, eu vejo a existência dos mitos na vida dos meus alunos, na vida das minhas partilhantes. Muitos desses mitos estão sendo vivenciados a todo instante. O amor de Hades e Perséfone é um. Quem não conhece a moça linda, bela, encantadora, inteligente, que se apaixonou pelo problemático da turma? Quem não conhece a história da menina da classe média que foge para o morro para ser esposa do dono da boca? Quem não ouviu a história do menino queridinho da mamãe que entrou no mundo das drogas? É difícil resistir à baforada do desejo. E em meio a tanta repressão e combate ter forças para não ser tragado pelas sombras.
A estória do mito é o contar de um rapto. A moça
virgem que foi raptada, isto é, teve a sua vontade, o seu querer subtraído.Num
sentido interno, o rapto pode simbolizar aquele instante no qual a
inconsciência invade e transborda a consciência. Noutro sentido, externo,
superestimamos o rapto para pensar que Perséfone é vitima, foi raptada e não
escolheu de própria vontade e desejo aquele destino para ela. É sempre mais
fácil reconhecer a mulher como um ser sem desejo, sem vontade, sem querer. É
sempre mais tolerável falarmos de loucura quando o inconsciente desejante,
reprimido toma à consciência de assalto. Entretanto, Perséfone é tão
especial por isso, ela deseja, ela quer, ela tem vontade. E isso em todos os
tempos e eras foi assustador, continua sendo. O único deus capaz de lidar com
essa força foi Hades. Foi ele quem viu naquela donzela, naquela virgem, algo
que ele só via em si mesmo.
E nesse movimento estamos entrando na parte mais
tortuosa, mais densa dos relacionamentos. Aquela na qual ora um, ora outro, se
faz objeto dos desejos e fantasias do outro. Esse movimento no qual saímos do
nosso mundo para entrar no do outro. Esse movimento no qual, eu reconheço parte
do mundo do outro como sendo uma extensão do meu. Esse mundo no qual por vezes
temos que raptar e se deixar raptar para irmos mais fundo.
Esses raptos nos trazem em direção às alunas e
partilhantes. Perséfone me pediu para perguntá-las por que ele? E,
invariavelmente, elas falam de uma paixão oculta, de uma beleza e atração
incontrolável. Elas falam de um reflexo no qual esse outro tinham algo delas
que elas não podiam mais viver sem.
Juro que eu não sei que algo é esse, que ao falar, os
olhos delas salivam e a boca traga tudo, como se fosse um olhar. Juro que não
sei o nome desse algo, que causa uma sensação de pertencimento tal qual o corpo
e o ser do outro fosse parte de um mesmo e único corpo. Na falta de um nome
para esse algo, chamei entrega. É o nome mais próximo que chego.
Assim, muitas vezes, quando perguntamos a Perséfone o
motivo pelo qual ela se encontra no Hades, ela responde: que ela encontrou a
beleza oculta. Ela viu esse elixir da beleza que Afrodite pediu para ser
guardado no Hades, longe de todos. Ela viu o local mais apropriado e talvez
único no qual fosse possível produzir esse cosmético de fabricação exclusiva de
Perséfone que lhe da à jovialidade, a juventude; o amor sem medo. Ela descobriu
aquilo que nenhuma deusa, ou deus jamais compreendeu: a entrega.
Há uma força na entrega, uma resistência nesse ato de se entregar, que poucos têm condições de suportar. Seja para recebê-la, seja para doá-la. E isso torna a entrega tão especial, tão diferente, tão complexo.
Há uma força na entrega, uma resistência nesse ato de se entregar, que poucos têm condições de suportar. Seja para recebê-la, seja para doá-la. E isso torna a entrega tão especial, tão diferente, tão complexo.
Nessa complexidade, Perséfone me falava de um
tempo no qual se desconhecia homens que não tinham vergonha das suas
cicatrizes. E, eu lhe dizia, que cada vez mais, eu desconhecia mulheres, que
fogem das cicatrizes e feridas de algum homem que amam. Ousaria dizer que o
homem ama as qualidades, a mulher, as imperfeições. Refaço a frase: o masculino
ama a perfeição, o padrão, a superfície- pele, cabelo, corpo, aparência. O
feminino ama as imperfeições, a profundidade- alma, desejo, vontade, querer- a
singularidade que faz daquele ser quem ele é e não outra pessoa. Nisso, eu e
Perséfone refletíamos que há muitas mulheres fugindo das cicatrizes, porque
estamos masculinizados demais. Com isso, os relacionamentos se engasgam,
engastam, porque o feminino quer a nudez da alma e o masculino quer o
embelezamento do corpo. Os amantes superficiais querem o corpo e o que ele pode
oferecer. Os amantes profundos desejam à alma e tudo aquilo que ela pode dar. A
sabedoria constrói a cumplicidade conjunta de permitir ao corpo todos os gozos
da alma. O encontro de Perséfone e Hades representa essa profundidade.
Representa um lugar no qual não há julgamento, não se
vê os desejos, a vontade como feios, ou perversos, ou malignos. Hades respeita
o querer, o desejo, a vontade, seja ele qual for. Mas, como lidar com esse
espaço em nós? Como contar os desejos mais secretos para sua esposa? Como compartilhar
essa vontade com ela? E vice-versa? E é engraçado como esse espaço vai sendo
esvaziado, vai sendo descuidado, desertificado, até ser um lócus dos mais
apropriados para explosões nucleares. Sabe aquele homem que matou a mulher a
tiros depois de 30 anos de casamento? Sabe aquela mulher que cortou o pênis do
noivo depois da ruptura do noivado? Sabe aquele grupo de homens que praticaram
estupro coletivo? Sabe aquela mãe que matou o filho recém nascido? São todos os
que não olharam para seus mundos infernais e foram devorados por eles. Mas, não
quero falar disso, quero falar da pergunta que fiz para Hades no inicio de tudo
isso. “entre todas as donzelas do mundo, porque Perséfone?”
E ele me diz algo mais ou menos assim:
“Não escolho donzelas, ou rapto virgens. Pouco me
importa a virgindade do corpo. Preciso de Perséfone, porque ela quis me ver sem
o elmo da invisibilidade. E ao me ver não enojou, nem vomitou. Tirou minha
armadura, cuidou das minhas feridas, dos meus machucados, das minhas
cicatrizes. Eu a protegerei contra todos, contra tudo, especialmente, de mim.”
A paixão, enquanto sinônimo de vontade e desejo é esse
contato que quando não se dá por escolha, se faz por rapto. Subtamente somos
levados a entregar, seja parte, seja, integralmente.
II
Foi nessa entrega, que Perséfone deixa de ser a
lindinha da mamãe e se faz mulher. Mulher no sentido mais pleno e completo da
palavra. Mulher capaz de suportar e suturar uma cicatriz na alma do amado.
Agora, caminhando para o final, re-lendo o mito: é como se ele estivesse nos dizendo: “ O BELO É PROFUNDO! A beleza é mais profunda que o corte de gilete!” E aqueles que param na epiderme não compreendem nem o que é ser homem e menos ainda o que é ser mulher. Na fabricação do elixir da beleza, a deusa do submundo encontrou, desvelou, uma beleza mais bela que a luminescência de Afrodite. É a beleza da entrega.
Agora, caminhando para o final, re-lendo o mito: é como se ele estivesse nos dizendo: “ O BELO É PROFUNDO! A beleza é mais profunda que o corte de gilete!” E aqueles que param na epiderme não compreendem nem o que é ser homem e menos ainda o que é ser mulher. Na fabricação do elixir da beleza, a deusa do submundo encontrou, desvelou, uma beleza mais bela que a luminescência de Afrodite. É a beleza da entrega.
Beleza que sinaliza não para um rapto, mas para um
arrebatamento, um pedido, uma dança entre ambos. Perséfone, me confidenciava:
“entre todos, me deixei raptar por Hades, porque somente nele poderia ser
inteira, intensa, toda, mesmo ele sabendo que em alguns momentos precisaria de
voltar à superfície, para nos renovar. Escolhi Hades, porque o desejo dele por
mim não me permitia nada além de me entregar de corpo e alma, vontade e desejo,
em todo o meu querer. E ter a certeza de que ele me comportaria.”
O contraponto a esse tipo de relação vivenciada na sua
dimensão mais positiva, isto é, na nudez do casal um perante o outro é que
somos uma sociedade cada vez mais superficial. Uma sociedade que como regra não
deseja ultrapassar nada mais profundo que a epiderme. Paramos na pele, na
superficialidade do querer sem desejo, do desejo sem vontade, da vontade sem
amor, do amor vazio, do vazio existencial, da existência que se alimenta de
superficialidades e repete o mesmo ciclo.
Um ciclo de fuga, de medo, de receios. Um ciclo de vida que teme a morte ao mesmo tempo em que banaliza a morte a cada viver. Nunca a nudez mostrou tanto o vazio. E nunca tantos e tantas foram tão superficiais como um corte de gilete.” A beleza esta mais superficial do que uma verniz, menos densa do que uma folha de jornal. A beleza esta virando só aparência.
Nesse ponto a Primavera não pode temer o inverno, porque é nele que ela se faz mais esplendorosa. Casais não deveriam temer a entrega e nós como seres singulares, não deveriamos fugir desse encontro, desse contato.
Um ciclo de fuga, de medo, de receios. Um ciclo de vida que teme a morte ao mesmo tempo em que banaliza a morte a cada viver. Nunca a nudez mostrou tanto o vazio. E nunca tantos e tantas foram tão superficiais como um corte de gilete.” A beleza esta mais superficial do que uma verniz, menos densa do que uma folha de jornal. A beleza esta virando só aparência.
Nesse ponto a Primavera não pode temer o inverno, porque é nele que ela se faz mais esplendorosa. Casais não deveriam temer a entrega e nós como seres singulares, não deveriamos fugir desse encontro, desse contato.
Como disse a poeta:
"Aprendi com a Primavera a deixar-me cortar
e voltar sempre inteira."
Celebremos a entrega.
Poema: Primavera de Cecília Meireles.