Os acontecimentos na França retomam a eterna discussão
sobre liberdade. E é estranho como uma palavra vai ganhando significados
diferentes ao longo do tempo.
Na revolução de 1789 liberdade era uma conquista que
assegurava a individualidade dos seres, assegurava, inclusive, esse ser não ser
tratado como objeto, como coisa, como escravo. O ideal de liberdade era
garantir que todos fossem tratados iguais.
Por anos quando se brigava por liberdade, brigava-se
por esse direito inalienável de ser pessoa. Brigava-se, defendia-se o direito
de se expressar. Para muitos sempre foi uma liberdade burguesa. Eu não me
enveredo por esse caminho, prefiro observar que as liberdades, no que elas têm
de “vontade de potência”, entraram em choque após o fim da 2ª guerra mundial. Vontade
de potência é um conceito do filósofo alemão Nietzsche. Um conceito que foi
extremamente deturpado pelos nazistas, mas que em suma diz respeito a um tipo de
vontade, que se afirma, inclusive, em detrimento do outro.
Mas, o registro é para salientar que ali (pós 45) o
conceito de liberdade foi alterado e muitos não perceberam. Evidenciou-se que a
liberdade não pode ser um livre expressar, um livre fazer, vimos que nesse
sentido, nessa direção alguns indivíduos, ou grupos podem submeter milhares a
condição de coisa, objeto, por terem, gozarem, exercerem de um quantum maior de
potência. Essa liberdade associada a um fazer, a uma desmedida que só poderia
ser dada, sentida, mensurada por dentro e nunca por fora, entrou em colapso.
A partir desse colapso temos novas concepções de
liberdade e vou pensar nas de Sartre, um francês que talvez não fosse Charlie e
Levinas que sem dúvida é Charlie; ou não?!!
A liberdade para Sartre, diante do cinismo
irresponsável dos acusados de crime contra a humanidade, passou a ser sinônimo de
RESPONSABILIDADE e engajamento. Liberdade é escolha. Não de situações
absolutas, claras, mas situações cotidianas, na sua maioria simples, tal como,
publicar ou não uma charge? Veja, que a discussão não é sobre fazê-la ou não,
mas sim, publicá-la. Sartre nos chamava atenção para como que nessas pequenas
escolhas, escolhemos o mundo. E como que somos responsáveis por isso, como que
ao escolhermos, escolhemos a humanidade inteira. De tal modo, que não me eximo,
por estar seguindo ordens, ou por ser professor, ou por ser cartunista, ou por
ser artista; sou ser no mundo e arco pelas minhas atitudes não para mim mesmo,
mas para humanidade.
Levinas diante do mesmo cinismo, viu a imoralidade,
viu a falta de uma eticidade por aqueles que praticaram as inumeráveis
atrocidades. No entanto, na sua leitura do nazismo, historicamente, eles deram
cor, forma, tom, a uma racionalidade que sempre foi brutal, sempre foi imperialista,
sempre foi dominadora, o nazismo a maximiza. Ao final dessa racionalidade a
constatação dele, de Hanna e alguns outros é de que nunca existiu outra
liberdade se não a do EU, a da IDENTINDADE, a dos iguais. A liberdade sempre
esteve assegurada aos mais fortes, aos mais poderosos, àqueles que nasceram
assim e impunham essa concepção aos outros.
Levinas, junto com tantos outros, nos desvelaram O
OUTRO. O outro nunca tinha existido na história do pensamento ocidental. O outro
nunca fora respeitado. O outro sempre foi subjugado. O outro nunca teve
LIBERDADE. Durante todo o tempo fizemos a expressividade do EU, da IDENTIDADE,
dos iguais. E o EU sempre foi: homem-adulto-hetero-branco-letrado-rico. As mulheres,
as crianças, os homossexuais, os negros, asiáticos, indígenas; analfabetos,
assalariados sempre foram OUTROS. Isto é, nunca foram. Para alguns... nunca
serão.
Assim, quando falamos de liberdade no século XXI não
estamos mais debatendo sobre o direito a igualdade de todos. Isso é conquista,
embora não respeitada, de todo ser humano que nasce desde 1948 com a Declaração
dos Direitos dos Homens. Estamos debatendo sobre o respeito às diferenças, de
alguns, de poucos. Se há um que se mostra diferente no meio da totalidade, esse
um precisa ser RESPEITADO. E diante da representatividade desse um, não há
liberdade de expressão que se justifique.
Não há mais espaço para a discussão de liberdade que
finalize com a frase: “os incomodados que se retirem!!!” Não!! São os
incomodados que demarcam os limites da nossa expressividade. Porque a
liberdade, desde o pós guerra não pode mais ser tratada como sendo um direito
inalienável de um grupo, um segmento, sobre o outro. Liberdade precisa ser
compreendida como respeito às diferenças, ao não igual, ao OUTRO. Mas e o
humor? E a liberdade de se fazer graça? Temos que aprender a rir de outras
coisas.
Historiadores comentam que foi comum entre os
conquistadores espanhóis apostarem ao verem uma mulher grávida de muitos meses,
se a ‘cria’ era macho ou fêmea. Para garantirem a aposta, abriam a barriga da
mulher, tiravam o bebê de dentro. Ah!! E entre muitas risadas e gracejos.
Temos que aprender a rir de outras coisas.
Mas, finalizando, talvez Sartre condenasse as charges
de Charlie, por ver nelas um aspecto opressor, gratuito, injustificado, por
vezes. Já Levinas, talvez apoiasse Charlie, não por ser judeu, mas por tentar
assegurar ao cartunista o direito de ele ser o OUTRO. Talvez, se desse o
contrário, Sartre apoiasse o cartunista e Levinas o condenasse.
Fato é que nunca saberemos qual seria a posição de um
ou outro. E é nesse limiar que Bourdieu nos fala de violência simbólica. A liberdade
que estamos apregoando, saindo as ruas com camisa, botons é a que legitima o
direito do mais forte, seja por ser mais culto, seja por ser mais rico, seja
por deter os mecanismos de reprodução seriada, de oprimir, silenciar, escorraçar
o OUTRO, por ele ser diferente.
Trazendo a questão para os chargistas, é um equivoco
chamar de liberdade de expressão uma charge que ofende, agride- isso é
violência, tão selvagem, tão primitiva, quanto metralhar outro ser humano. Mas,
o que não quero deixar escapar é que um artista pintar uma tela e fazer a
exposição dessa pintura é liberdade de expressão e precisamos assegurá-la,
mesmo e ainda que contra outros segmentos. Um poeta, escritor expressar seu universo
é liberdade de expressão e a mesma garantia deve ser dada.
Já a industria cultural de reprodução em massa, não é
liberdade de expressão é massacre simbólico. É covardia. Publicar quase que
semanalmente, por décadas charges e representações de algo que milhares
sentiram-se constrangidos, ofendidos, magoados, desrespeitados, não pode ser
visto como liberdade de expressão. É aos meus olhos similar a indiana que
diariamente ia a delegacia reclamar de maus tratos, de espancamento por parte do marido, e nenhuma
ação é tomada, nenhuma medida é realizada. Até que ela degola e corta o pênis
do opressor, aí ela é presa e chamada de violenta.
Precisamos reconhecer que a violência simbólica é
criminosa. Os cartunistas podem se expressar, porque tem um mecanismo de
reprodução que assegura e lhes garante, no melhor exemplo de Goebells todas as
cretinices que lhes são possíveis. E para tirar isso desse enfeite e colocar
sobre o prisma do mercado, o atentado tirou a vida e feriu dezenas de seres
humanos, assim como multiplicou exponencialmente a tiragem do folhetim. Num humor tão estúpido quanto o deles poder-se-ia criar charges nas
quais se pensaria em possíveis alvos entre eles.
Enfim... se a questão fosse de liberdade de expressão garantir-se-ia
o direito da comunidade muçulmana fazer charges dos chargistas no seu ambiente
de trabalho e com suas tintas. Isso não é assegurado. Asseguraria aos
muçulmanos e outros grupos, espaço para responderem as provocações.
Isso não é liberdade de expressão é vontade de potência
no seu grau mais fascista, mas diga-se de passagem, essa é a égide da indústria
cultural, não é uma especificidade de Charlie e seu grupo.