segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Condenados à liberdade





A idéia é paradoxal: condenados à liberdade. Mas, nela se espelha a tensão mais íntima da antinomia kantiana: liberdade x necessidade. E Sartre diante dessa tensão dialética nos solta a frase lapidar: estamos condenados à liberdade.

A frase como todo o pensamento do filósofo francês é linda. Sartre é lindo. E a sua beleza esta em fazer com que sua obra não encontrasse hiato entre sua forma de pensar e o seu pensar da sua maneira de agir. Pensar-escrever-agir e ser foram em Sartre um continuum. Desde as suas menores escolhas amorosas até as suas grandes posições políticas. A coerência de se pautar pelo seu senso de liberdade foi pleno.

Poderão pensar e querer enquadrar esse livre-pensador na apoteose do individualismo, mas longe disso, Sartre refletiu sobre a tensão do sujeito que pensa, que age, que sente, que delibera em ressonância com o grupo, a sociedade, o mundo do qual enquanto sujeito faz parte. A escolha em Sartre, longe de ser uma ação individualista, era um engajamento. Cada ação era uma escolha do mundo e no mundo. Em cada ato, no melhor sentido kantiano do imperativo categórico, relembrando: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, por tua vontade, lei universal da natureza.” Em cada ato, em cada escolha esse imperativo se fazia presente, mas diferente de Kant não há nenhum “Tu Deves” a demarcar a ação. É esta a liberdade, que Sartre alcançou e postulou, porque herdou um mundo sem Deus. Um mundo no qual não há nenhuma voz maior que a própria consciência do homem, demandando aquilo que somente ele, enquanto humano, pode escolher. Nesse mundo sem Deus também não há culpa e castigo.

É aqui que a condenação sartreana da liberdade abraça ou traz implícito o Ubermensch, o super-homem, o além do homem nietzscheano. Esse ser que vivendo em um mundo sem Deus, tem que encontrar em si mesmo, a sua própria liberdade. Tem mais, vivendo em um mundo sem Deus tem que se responsabilizar pelo seu próprio ser no mundo e precisa responsabilizar pelo que e pelo como esses sujeitos livres constroem o mundo, vivem o mundo, praticam a humanidade. Longe de um movimento totalitário como quis ver Heidegger e os nazistas, este super-homem é um sujeito que arca com suas escolhas, que responsabiliza pelos seus atos, que não lança culpa aos deuses por sua sina ou por sua má sorte. É um ser que carrega o devir da existência, na sua repetição eterna e infinita. É o ser que suporta o eterno retorno e diz sim à vida, ao viver e a tudo o que ela significa.

Quando Nietzsche falou disso no século XIX viram loucura. Quando Sartre falou disso no século XX viram ateísmo. Mas quando Steve Jobs fala sobre isso em sua biografia: “a morte é a maior tecnologia da vida.” Ou ainda: vivam sedentos e não percam a ingenuidade. Vemos isso uma lição a ser seguida e já não era sem tempo. A morte de Deus em Nietzsche é o espaço fundamental para que cresçamos, sejamos, nos responsabilizemos por nossas escolhas. A vida sem Deus de Sartre é uma das orações mais lindas que já foi pronunciada, é um mergulho profundo no mistério da vida, é a tentativa de dar sacralidade a todos os atos da existência. Na sua vida, obra esta inscrita uma imensidão de amor pela humanidade.

E essa absoluta coerência do meu amigo francês chega a ser desesperador, mesmo quando, na iminência da morte, nega-se a acreditar em outra vida. E na Cerimônia do Adeus de Simone de Beauvoir, ela começa se despedindo e registrando: jamais nos encontraremos... É a visão materialista que vê no fim do corpo o fim de tudo. Mas, isso longe de ser uma blasfêmia, por maior que seja o equívoco, é um hino de amor a terra, à vida, ao existir, ao ser no mundo. Não consigo parar de reputar lindo e genial.

O reconhecimento de que somos seres condenados a liberdade postula que antes de sermos livres, ou para sermos livres, precisamos assumir que somos. Assumir que somos implica em assumir que somos seres para a morte. De maneira que aquele que não flertou com o pensamento da morte, com a iminência da morte, ainda não atingiu a autenticidade da existência. Esta não começa com o primeiro suspiro, de forma automática. A existência se inicia no primeiro desejo, na primeira vontade, na primeira frustração. Mas se plenifica, somente quando, somos movidos por um pensamento perturbador e amedrontador: “e se eu morrer amanha!!!”

Suportar o peso da morte aceitá-la rondando a existência é que nos faz atribuir sentido a vida. Faz-nos ser autoral. Faz-nos ver que morremos sozinho e que negar, fingir, mentir não tem sentido, talvez porque o único sentido da existência é ser aquilo que somos. O que somos? Quem somos? É esta descoberta que só a iminência da morte, a perda do amor nos faz procurar. E qualquer oráculo que nos retire dessa imersão na tentativa de aplacar a angustia, na tentativa de não nos remeter ao absurdo (conceito existencialista) falseia a existência.  

É nessa direção que os destemidos filósofos aqui apresentados apontaram. E o último deles pôde dizer, como que em resumo aos anteriores: “estamos condenados à liberdade.” Todavia, prefiro pensar a fatalidade da escolha pela ótica do poeta: o que pode uma criatura senão entre outras criaturas amar...

E em verdade, não podemos. Estamos condenados a amar. E no amor, o máximo de liberdade pode ser se aprisionar junto ao algoz. No amor, o ápice da escolha pode ser o que Nietzsche denominou de eterno-retorno, no caso, viver tudo de novo, outra vez, mais uma vez, porque por um segundo, por um minuto de toda angustia, de toda dor, de muito mal, a gente amou e foi amado. E isso faz tudo valer à pena, nos leva a suportar tudo de novo se por um segundo aquele instante se repetir. Absolutamente tudo, até mesmo a repetição eterna e ad infinitum dessa mesma vida.

O existencialismo assim na sua máxima: “a existência precede a essência” nos chama para a vivência da vida na sua plenitude. Não há céu, não há inferno, não há deuses nem diabos para te absolver ou te condenar. Há apenas a tua consciência diante da vida e do viver. Você dá conta?

Essa proposta nietzscheana, sartreana é para mim o convite mais belo que se fez a existência. Nunca viver foi tão bonito. Nunca a vida foi tão desesperada, já que sem Deus, como disse o outro: “tudo é permitido.” Mas nesse leque de possibilidades infinitas, quantos conseguem ser livres para amar? Para praticar o bem? Para lutar pelo justo? Para promover o belo? Por que diante dessa liberdade, escolhemos a banalização do mal? A superficialidade da vida? A maldade gratuita? A inveja deliberada? A indiferença agraciada? O egoísmo triunfante?
Em suma, porque nunca escolhemos por nós mesmos e estamos desacostumados a escolher pensando em como minha ação afeta aos demais. Para a maioria escolher é uma angustia infinita, quando não passa de um prazer estrondoso. No universo inteiro apenas o homem escolhe. Anjos e bichos têm seus destinos traçados, os primeiros pela marca do amor, que não lhes possibilita nada a não ser amar. Os segundos pelo determinismo.

Quando o arcanjo escolhe não servir aos homens como se eles fossem deuses, a alegoria mítica conta que ele despenca do céu e arrasta junto a si uma legião. Dentro dessa mesma alegoria, o papel dessa legião é atiçar os homens a escolher contra Deus. Lúcifer, o arcanjo caído, quer mostrar para Deus que cada humano é um erro, um ato de traição, um equívoco no qual não se poderia ter dado tanto poder. Mas qual poder é este perguntei ao meu irmão, arcanjo ferido e ele disse: “ a escolha”. Podem escolher onde a nós só cabia a obediência. Veja então que Lúcifer mesmo desobedecendo não pode deixar de ser, ele é ainda amor ao criador. Mesmo que esse amor se faça ódio e raiva às criaturas, ele ama o Criador e quer mostrar isso a ele. Mas essa é outra história, que me faz lembrar Zaratustra:

(...) onde no mundo se cometeu mais loucuras do que entre os compassivos? E há no mundo maior causa de sofrimentos do que as loucuras dos compassivos? Infelizes dos que amam e não tem uma altivez que paira acima da sua compaixão! Assim, falou-me um dia o diabo: - ‘Deus também tem seu inferno é seu amor pelos homens.’ E recentemente ouvi-lhe dizer esta frase: - ‘Deus morreu; matou-o a sua compaixão pelos homens’.”  (Dos Compassivos. Assim Falava Zaratustra).  

Bjs em todos. 

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