A idéia é
paradoxal: condenados à liberdade. Mas, nela se espelha a tensão mais íntima da
antinomia kantiana: liberdade x necessidade. E Sartre diante dessa tensão
dialética nos solta a frase lapidar: estamos condenados à liberdade.
A frase como
todo o pensamento do filósofo francês é linda. Sartre é lindo. E a sua beleza
esta em fazer com que sua obra não encontrasse hiato entre sua forma de pensar
e o seu pensar da sua maneira de agir. Pensar-escrever-agir e ser foram em
Sartre um continuum. Desde as suas menores escolhas amorosas até as suas
grandes posições políticas. A coerência de se pautar pelo seu senso de
liberdade foi pleno.
Poderão pensar e
querer enquadrar esse livre-pensador na apoteose do individualismo, mas longe
disso, Sartre refletiu sobre a tensão do sujeito que pensa, que age, que sente,
que delibera em ressonância com o grupo, a sociedade, o mundo do qual enquanto sujeito
faz parte. A escolha em Sartre, longe de ser uma ação individualista, era um
engajamento. Cada ação era uma escolha do mundo e no mundo. Em cada ato, no
melhor sentido kantiano do imperativo categórico, relembrando: “Age como se a máxima de tua ação devesse
tornar-se, por tua vontade, lei universal da natureza.” Em cada ato, em
cada escolha esse imperativo se fazia presente, mas diferente de Kant não há nenhum
“Tu Deves” a demarcar a ação. É esta a liberdade, que Sartre alcançou e postulou,
porque herdou um mundo sem Deus. Um mundo no qual não há nenhuma voz maior que
a própria consciência do homem, demandando aquilo que somente ele, enquanto
humano, pode escolher. Nesse mundo sem Deus também não há culpa e castigo.
É aqui que a
condenação sartreana da liberdade abraça ou traz implícito o Ubermensch, o
super-homem, o além do homem nietzscheano. Esse ser que vivendo em um mundo sem
Deus, tem que encontrar em si mesmo, a sua própria liberdade. Tem mais, vivendo
em um mundo sem Deus tem que se responsabilizar pelo seu próprio ser no mundo e
precisa responsabilizar pelo que e pelo como esses sujeitos livres constroem o
mundo, vivem o mundo, praticam a humanidade. Longe de um movimento totalitário
como quis ver Heidegger e os nazistas, este super-homem é um sujeito que arca
com suas escolhas, que responsabiliza pelos seus atos, que não lança culpa aos
deuses por sua sina ou por sua má sorte. É um ser que carrega o devir da existência,
na sua repetição eterna e infinita. É o ser que suporta o eterno retorno e diz
sim à vida, ao viver e a tudo o que ela significa.
Quando Nietzsche
falou disso no século XIX viram loucura. Quando Sartre falou disso no século XX
viram ateísmo. Mas quando Steve Jobs fala sobre isso em sua biografia: “a morte
é a maior tecnologia da vida.” Ou ainda: vivam sedentos e não percam a
ingenuidade. Vemos isso uma lição a ser seguida e já não era sem tempo. A morte
de Deus em Nietzsche é o espaço fundamental para que cresçamos, sejamos, nos
responsabilizemos por nossas escolhas. A vida sem Deus de Sartre é uma das orações
mais lindas que já foi pronunciada, é um mergulho profundo no mistério da vida,
é a tentativa de dar sacralidade a todos os atos da existência. Na sua vida,
obra esta inscrita uma imensidão de amor pela humanidade.
E essa absoluta coerência
do meu amigo francês chega a ser desesperador, mesmo quando, na iminência da
morte, nega-se a acreditar em outra vida. E na Cerimônia do Adeus de Simone de Beauvoir,
ela começa se despedindo e registrando: jamais nos encontraremos... É a visão materialista
que vê no fim do corpo o fim de tudo. Mas, isso longe de ser uma blasfêmia, por
maior que seja o equívoco, é um hino de amor a terra, à vida, ao existir, ao
ser no mundo. Não consigo parar de reputar lindo e genial.
O reconhecimento
de que somos seres condenados a liberdade postula que antes de sermos livres,
ou para sermos livres, precisamos assumir que somos. Assumir que somos implica
em assumir que somos seres para a morte. De maneira que aquele que não flertou
com o pensamento da morte, com a iminência da morte, ainda não atingiu a
autenticidade da existência. Esta não começa com o primeiro suspiro, de forma automática.
A existência se inicia no primeiro desejo, na primeira vontade, na primeira
frustração. Mas se plenifica, somente quando, somos movidos por um pensamento perturbador
e amedrontador: “e se eu morrer amanha!!!”
Suportar o peso
da morte aceitá-la rondando a existência é que nos faz atribuir sentido a vida.
Faz-nos ser autoral. Faz-nos ver que morremos sozinho e que negar, fingir,
mentir não tem sentido, talvez porque o único sentido da existência é ser
aquilo que somos. O que somos? Quem somos? É esta descoberta que só a iminência
da morte, a perda do amor nos faz procurar. E qualquer oráculo que nos retire
dessa imersão na tentativa de aplacar a angustia, na tentativa de não nos
remeter ao absurdo (conceito existencialista) falseia a existência.
É nessa direção
que os destemidos filósofos aqui apresentados apontaram. E o último deles pôde
dizer, como que em resumo aos anteriores: “estamos condenados à liberdade.” Todavia,
prefiro pensar a fatalidade da escolha pela ótica do poeta: o que pode uma
criatura senão entre outras criaturas amar...
E em verdade,
não podemos. Estamos condenados a amar. E no amor, o máximo de liberdade pode
ser se aprisionar junto ao algoz. No amor, o ápice da escolha pode ser o que
Nietzsche denominou de eterno-retorno, no caso, viver tudo de novo, outra vez,
mais uma vez, porque por um segundo, por um minuto de toda angustia, de toda
dor, de muito mal, a gente amou e foi amado. E isso faz tudo valer à pena, nos
leva a suportar tudo de novo se por um segundo aquele instante se repetir.
Absolutamente tudo, até mesmo a repetição eterna e ad infinitum dessa mesma
vida.
O
existencialismo assim na sua máxima: “a existência precede a essência” nos
chama para a vivência da vida na sua plenitude. Não há céu, não há inferno, não
há deuses nem diabos para te absolver ou te condenar. Há apenas a tua consciência
diante da vida e do viver. Você dá conta?
Essa proposta
nietzscheana, sartreana é para mim o convite mais belo que se fez a existência.
Nunca viver foi tão bonito. Nunca a vida foi tão desesperada, já que sem Deus,
como disse o outro: “tudo é permitido.” Mas nesse leque de possibilidades
infinitas, quantos conseguem ser livres para amar? Para praticar o bem? Para
lutar pelo justo? Para promover o belo? Por que diante dessa liberdade,
escolhemos a banalização do mal? A superficialidade da vida? A maldade
gratuita? A inveja deliberada? A indiferença agraciada? O egoísmo triunfante?
Em suma, porque
nunca escolhemos por nós mesmos e estamos desacostumados a escolher pensando em
como minha ação afeta aos demais. Para a maioria escolher é uma angustia
infinita, quando não passa de um prazer estrondoso. No universo inteiro apenas
o homem escolhe. Anjos e bichos têm seus destinos traçados, os primeiros pela
marca do amor, que não lhes possibilita nada a não ser amar. Os segundos pelo
determinismo.
Quando o arcanjo
escolhe não servir aos homens como se eles fossem deuses, a alegoria mítica
conta que ele despenca do céu e arrasta junto a si uma legião. Dentro dessa
mesma alegoria, o papel dessa legião é atiçar os homens a escolher contra Deus.
Lúcifer, o arcanjo caído, quer mostrar para Deus que cada humano é um erro, um
ato de traição, um equívoco no qual não se poderia ter dado tanto poder. Mas
qual poder é este perguntei ao meu irmão, arcanjo ferido e ele disse: “ a
escolha”. Podem escolher onde a nós só cabia a obediência. Veja então que Lúcifer
mesmo desobedecendo não pode deixar de ser, ele é ainda amor ao criador. Mesmo que
esse amor se faça ódio e raiva às criaturas, ele ama o Criador e quer mostrar
isso a ele. Mas essa é outra história, que me faz lembrar Zaratustra:
“ (...) onde no
mundo se cometeu mais loucuras do que entre os compassivos? E há no mundo maior
causa de sofrimentos do que as loucuras dos compassivos? Infelizes dos que amam
e não tem uma altivez que paira acima da sua compaixão! Assim, falou-me um dia
o diabo: - ‘Deus também tem seu inferno é seu amor pelos homens.’ E
recentemente ouvi-lhe dizer esta frase: - ‘Deus morreu; matou-o a sua compaixão
pelos homens’.” (Dos Compassivos. Assim
Falava Zaratustra).
Bjs
em todos.
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