segunda-feira, 17 de março de 2014

Priapo interrogado por uma mulher: "Por que vocês (homens) são tão egoístas?" uma pergunta para além da biologia.

Ela me olhou, diretamente, nos olhos. Um olhar penetrante como uma adaga cigana.  Um olhar que escondia uma fúria contida, reservada, indignada. Um olhar que era na verdade, uma unhada, um estrangulamento. Em meio a esse olhar, ela lança a pergunta: por que vocês homens são tão egoístas?

Desviei o olhar como faz todo bom covarde. Busquei ar como tenta um afogado num último suspiro. Busquei encontrar refresco, fôlego como um boxeador nas cordas. Mas, não tinha jeito, ela me nocauteou. A pergunta não desgruda de mim, não sai de mim. Ficou impregnado em tudo o que eu sou, ou em tudo o que eu era. Depois de perguntas como essas, não voltamos a ser como antes, pelo menos, não de imediato. Algumas perguntas mudam nossa forma de ver o mundo. Ou nem tanto.

Nem tanto, porque fui remetido a Priapo e o seu pênis gigantesco. O seu desejo dionisíaco de devorar a existência, de possuir o infinito. O seu falo fascinante que hipnotizava mulheres, seduzia donzelas. Essa figura mitológica que tanto nos diz sobre o egoísmo masculino. Egoísmo que vou identificar, rapidamente e sem muito aprofundamento ao conceito de "vontade de potência" de Nietzsche. Não consigo parar de observar a relação entre o conceito do filósofo alemão com esse ente biológico, que por vezes, parece ganhar vida própria, destinação autêntica e cotidiana. 

Minha sorte foi que ela perguntou sobre nós homens, assim, eu pude fazer uso de toda biologia masculina, na verdade, de toda biologia animal. No entanto, o fato é: se o nosso egoísmo no caso especifico sexual, é fator sine qua non no mundo da selva, ele não se justifica no mundo da cultura. Pelo menos penso que não.
No mundo da cultura, na construção simbólica de referências e significados, nosso egoísmo é a prova cabedal do machismo. Seja o machismo de homens, ou de mulheres. É o machismo de fazer do outro não objeto do nosso gozo, algo natural, no mundo da cultura; mas fazê-la menos do que isso ao privá-la de nos deixarmos permitir ser objeto do outro. O filho de Dionísio (Priapo) retorna com toda sua força, mas para nos levar em direção a horda. A mesma horda que vislumbramos nos estupros coletivos praticados na Índia. Mas, se nas regressões à "barbárie" das orgias dionisíacas as mulheres tinham lugar para o gozo, para o prazer, ao que parece, na cultura que erigimos,  condiciona-se as mulheres a submeterem-se ao eterno não gozo, ao eterno não prazer, ao permanente não realizar-se. Enquanto que nós homens podemos transitar entre o retorno à horda ou se desejarmos uma barbaridade mais confortável, submeter a mulher ao mundo da cultura e da civilização, isto é, o espaço do não ser sexual. Mas, se esse é o dilema, como se encontra solução? Qual é a solução?


A biologia masculina, mais precisamente, do macho é diferente. Somos encantados pelo nosso esperma. Não o esperma em si, mas aquele procedimento que nos leva a sua produção e ao seu derramamento. Essa potência fertilizadora espalhada pelo cosmos e potencializada ao infinito é algo fascinante, tenhamos ou não consciência disso. Da primeira masturbação até o momento no qual o ato sexual é mera lembrança, recordação, nostalgia, todo fazer sexual dos homens se direciona ao derramamento, ao orgasmo, ao gozo. Sexo para nós tem como meta, as vezes missão, gozar. E quando encontramos a forma que nos possibilita isso, não a retardamos, pelo contrário, aceleramos o processo. E quando atingimos o objetivo, um relaxamento natural acontece e tendemos a quietude. No mundo da cultura isso pode ser observado como sendo egoísmo puro, mas no da natureza, absolutamente natural. O ponto é que seja na natura dionisíaca, seja na cultura a vontade de potência dos homens permanece. Essa é a nossa força e o nosso encantamento, nosso deslumbramento e também nossa perdição. 

Nas mulheres essa relação é obnubilada, literalmente, e não apenas. Primeiramente, porque mulheres são/foram ensinadas a não gozarem, não poderem ter orgasmo. Mulheres por muitos séculos não podiam se tocar e encontrar prazer na vida, menos ainda no ato sexual. Poderíamos dizer que isso é coisa do passado, mas... ledo engano. A culpa persiste, existe e parece que cada filha de Eva nasce com essa ferida aberta. Enquanto a anatomia masculina nos dota desse princípio ativo, dominante, externo a anatomia feminina se mostra escondendo, se revela ocultando. Se faz semelhante a uma fenda passaporte de emancipação em algumas, ferida e dor de morte, de culpa para várias. Em algumas, essa ferida, vai se abrindo e estanca, em outras, vai se fechando e se faz hemorrágica. Estou pensando na percepção interna, intima, que cada mulher vai ter da sua vagina e em sua relação com ela e o mundo.

Mas, a dificuldade de encontrar o gozo, o orgasmo, enfim o "egoísmo" do prazer,
caminha na direção das próprias mulheres saberem qual a finalidade do ato sexual. Se realizamos essa pergunta a um grupo de dez homens 12 dirão gozar. Num grupo de dez mulheres teremos vinte respostas diferentes. Vinte, porque a cada duas, uma muda de resposta de acordo com a lua. Umas responderão mexendo os ombros e a cabeça: “sexo não tem finalidade”. Outra numa resposta próxima a da primeira dirá: “ a finalidade do sexo é não finalizar nunca.” Uma terceira dirá tentando ser pragmáticas: “companheirismo”. Uma quarta: amor. Ouviremos milhares de respostas, mas quase nenhuma: gozar. Seja por medo, seja por culpa.



Tudo leva a percepção que o orgasmo para os homens é uma meta, já para as mulheres é um meio, por vezes, até um acaso. A maioria delas reconhece um prazer igual na satisfação do parceiro, namorado, amante do que no orgasmo em si. Uma grande parte tem culpa em alcançar o prazer orgástico com alguém que não se ama e não conseguir o mesmo feito e efeito com alguém que se ama. Situação impensada a grande parte dos homens.

Por outro lado, mulheres que sabem como chegam ao orgasmo, direcionam os parceiros para determinados pontos, toques, encaixes e deixam claro isso: "assimm, assimmm, aí, aí, não pára, não mexe. Vai. Mais forte. Mais rápido". Enfim... Elas têm o mesmo "egoísmo" masculino de em determinado momento se perder do outro, ir embora sozinho, sem medo de não ter como voltar. Elas têm aquela vontade de potência de se realizar, se afirmar, ser. 

E aqui é o conflito. Permitimos as mulheres terem esse "egoísmo"? Terem esse prazer individualista, de olhar apenas para si mesma e se permitir, se deixar, ir... mesmo sabendo que foi com a ajuda do outro que chegou-se até lá, mas em determinado momento é preciso largar da mão dele? Talvez sustentar isso seja a grande pedida e o grande ensinamento. Talvez seja esse aspecto, ranço que trazemos desde a horda, passando pela natureza e chegando a cultura. Nosso princípio de potência permanece ativo. Nossa identidade masculina se faz nele, seja enquanto machos, seja enquanto homens.  

A leitora atenta chama minha atenção dizendo que desviei a resposta de uma solução para as mulheres e não respondi a pergunta que cabe a nós homens: afinal, porque somos tão egoístas?

Tentei uma explicação, uma alternativa, mas tenho que reconhecer e comentar que no mundo da cultura, essa justificativa não cabe, não se legitima, seja por amor, seja por cumplicidade, seja por parceria. O sexo é um prazer e como todo bom prazer, ele é compartilhado. É impensado no mundo masculino, num relacionamento entre homens/iguais, somente um ter prazer sempre. Não estou pensando no ato genital, estou pensando em uma ida ao bar, numa pelada de futebol, num universo de compartilhamento masculino. Nesse universo o mais natural é a troca, o compartilhamento; hoje eu pago a conta, amanhã é você. Hoje meu time ficou mais forte, amanhã é o seu. Não se sustenta nenhuma relação entre homens na qual um leva vantagem sempre, ou ganha sempre, muitíssimo pelo contrário. A solidez das amizades masculinas esta intricada nessa igualdade dos dois se darem mutuamente, na mesma intensidade, com a mesma medida. No entanto, quando nós homens nos relacionamos com as mulheres isso escapa. Poucos de nós estabelecem essa relação de parceria e cumplicidade com as mulheres. Sexualmente então fica-se ainda mais difícil. 

Quando muito, pergunta-se para a parceira, namorada, amante, esposa: “gozou? Ou foi bom para você?” E com isso deseja-se mais sondar a performance do que se ela se divertiu também no ato. Assim, se pensarmos o sexo como uma diversão, como um prazer compartilhado, nosso egoísmo é feio, grotesco, nojento, abjeto. E no fundo, talvez, ele esteja dizendo, mesmo quando o texto diz o contrário: “o dever da mulher é dar prazer ao homem”. O lugar das fêmeas é submeterem-se completamente aos machos. Nessa lógica toda mulher é prostituta, ou menos do que isso, é coisa mesmo. É objeto de uso descartável. Na verdade, é menos do que isso. É um lugar de desvalia, de desqualificação. É um lugar claro para homens e mulheres. Um lugar que precisamos começar a mudar, a alterar. Um lugar que quando mulheres no melhor estilo Lilith mudam a posição levam a maioria dos homens a "impotência da ação". Essa impotência diz respeito ao receio, ao temor, a dificuldade de lidar com uma situação na qual a outra se faz igual, se iguala no discurso, no poder, na vontade de potência. Não como Priapo e o seu falo imenso. Mas, como desejo úbere que umedece o infinito para a existência ser fecundada. Essa parceria esta se construindo, mas ainda assusta. Sendo que quando focamos apenas o ato sexual, quando por anos a fio, transa a transa, não compartilhamos o gozo, o orgasmo com a parceira, a esposa, a mulher, a amante, o que inconscientemente estamos dizendo, tenhamos mais ou menos clareza disso, é que cada mulher é menos do que somos. 

Enfim.... Como não tenho justificativa válidas para o mundo da cultura, só posso pedir desculpas. Só posso fornecer meios para que em cado ato sexual e não apenas nele consigamos criar a relação de desejo, prazer mutuo. Onde cada um de nós brinda o outro com sua vontade de potência, com seu desejo de desejar o outro e o infinito. Queria assim, me desculpar em nome de todos os homens, os que já gozaram e não gozam mais, os que gozam, os que vão gozar. Mas, mais do que desculpas sugiro promessas, novos desejos, novas fertilizações, uma esperança de que nosso gozo seja como um gol: aquela sensação orgástica de se abraçar o estranho(a). Aquela sensação coletiva, dionisíaca de se comemorar e compartilhar a alegria, o entusiasmo que o gol provoca, que o orgasmo proporciona. Estabelecendo uma relação de parceria, cuidado, respeito, amor, inclusive no ato sexual. Na atenção da parceira, namorada, amante, esposa, encontrante; mulher. Espero levar essa alegria ao encontro da Primavera. Esse prazer de comemorar um gol juntos, abraçados. Esse prazer que deve ter tido Dionísio e Afrodite ao gerar Priapo. 






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