Poucas pessoas trataram
com tamanha elegância os dilemas da permanência e da mudança quanto Milton
Bonder em “A Alma Imoral”. De uma maneira inusitada, ele mostra a busca do
corpo pela permanência, pela manutenção, na sua aposta de transcendência pela
perpetuação de si mesmo- a reprodução. Por esse apelo, segundo o rabino, o
corpo é a tradição. Aquela que mantém as coisas como estão, que luta para
deixar e manter as coisas como são. Nossa fidelidade ao corpo se mostra na
fidelidade aos ritos, a cultura, as construções da civilização nos seus
momentos de perpetuação.
Paralelamente, a essa condição
de permanência a necessidade de irreverência, a postura iconoclasta da cisão,
da fissura, da ruptura. A alma seria e é aquela que rompe com a tradição, que
tenta ajustá-la ao tempo, ao agora, ao momento. O corpo é o passado e o anseio
futuro. A alma é o presente, é o agora. É o significado e o sentido da existência.
Por tudo isso a alma é transgressora, imoral. A sua transcendência se faz na
plenitude do agora.
Estamos diante de uma
contradição clássica, mas que elegantemente, muitas vezes à Nietzsche, Bonder
desnuda a alma, aclara o corpo, nos mostrando como somos seres que a todo instante
nos perdemos na ruptura e na permanência. Mas, escrevo tudo isso para falar de
relacionamentos.
Quando estive fora tive o
prazer de ficar na casa de quatro casais. Cada um com sua dinâmica, cada par
com seu ritmo, sua dança, seus equilíbrios, suas tentativas de permanecer
dançando essa música invisível e por vezes inaudível. Música que ora é da vida,
ora é de cada um de nós. Música que por vezes é harmônica a do outro, outras
vezes desafina e não se harmoniza com a do outro. De todo modo, o que observei
nos casais mais felizes é que eles nunca deixaram de ser namorados e nos casais mais
taciturnos é que o espaço para o namoro havia se fechado.
Chamo de namoro o prazer
que cada um mantém de dançar o ritmo que o outro propõe. O namoro é esse equilíbrio
alegre de bailar sem exigir partitura, roupa apropriada, local preparado. O namoro
respeita o improviso e o inesperado como quem abre os braços para acariciar o
vento. O namoro é o espaço no qual cada um pode ser um e ainda é acolhido pelo
outro, recebido pelo outro. E, tudo isso é diferente dos casais que perpetuam a
imagem congelada do que foram.
Imagem congelada é aquela
percepção, entendimento que se guarda do outro, que aprisiona o outro, que não
permite ao outro mexer um milímetro fora dessa imagem que nós construímos na
nossa cabeça e não deixamos o outro escapar. Imagem congelada é a camisa de
força que colocamos o outro. Ela é mental, emocional, invisível, mas muitas
vezes perceptível.
E aqui retomamos a ALMA
IMORAL. Estamos diante do nosso medo de mudança. Queremos tanto o outro, a
imagem do outro, que não o vemos mudando diante de nós, dos nossos olhos. Reclamamos
e clamamos a este outro que ele volte a ser o que ele era, mas como isso é
possível? Como impedir o outro de crescer, ser, mudar, se é essa a essência da
vida, seja enquanto alma, seja enquanto corpo, seja enquanto congraçamento
desses dois aspectos? Na verdade, porque tememos tanto as mudanças, especialmente
afetivas?
E o que vejo nas
separações ora são as traições, o terceiro(a) que surge no meio da relação, ora
são esses afastamentos que vão aumentando, ampliando até um momento no qual a
distância se faz abissal, sepulcral. E o que fazer?
Aceitar a dança da vida. Aceitar
o bailar do outro. Aceitar as alternâncias de ritmos. Quando não for possível aceitar
determinados ritmos que o outro evoca, ser claro o suficiente para alertá-lo que
ali, ele(a) deve bailar sozinho. Dar e garantir o direito a individualidade
para que a alma não se ressinta e que a dinâmica do casal não se anule. Em casos
mais extremados, serem capaz de dizer que houve incompatibilidade rítmica e
agora nada mais resta a cada um, do que encontrar novos bailados.
Mas, de forma alguma, deveríamos
desqualificar os movimentos que realizamos, os passos que damos com esse
outro(a). Menos ainda deveríamos impedir o outro de ser o que ele é, o que ele
pode ser, porque fizemos dele(a) uma imagem nas nossas cabeças.
Nenhum comentário:
Postar um comentário