Ontem, 18/8/2013 fui com
Primavera ver uma peça teatral- Horácio. A peça aborda as reflexões de um homem
em três momentos da sua vida. HORA/CI/O. Esta é uma abordagem comum, acompanhamos esses temas na
literatura e no cinema. A novidade é que as reflexões são realizadas por três artistas
o que dá a encenação a dinâmica da simultaneidade, da multidimensionalidade. O mais
interessante ainda é que embora conflituosos, eles se escutam, não concordam,
mas se escutam, estreitando um diálogo entre cada um deles. Na peça não seria
nenhum exagero ver nesse diálogo a relação freudiana entre Id, superego e ego.
A peça por si só é boa,
não apenas pela trama, mas como essa trama é emaranhada pelos objetos cênicos,
no caso espelhos que HORA refletem o próprio personagem, HORA reflete a face de
um dos seus outros momentos. Um pêndulo que oscila, malditamente, sem parar,
ainda que bem no fundo do palco, imperceptivelmente.
Fato é que as abordagens
são inúmeras, desde a que esta relacionada ao tempo cronológico,
linear, que caminha para a finitude- passado, presente, futuro- simbolizado, respectivamente
por: um jovem que sonha ser poeta; por um adulto que se torna advogado; por um
idoso que se encanta e desencanta com a vida e tenta elaborar a síntese, a
reflexão final.
Uma dessas reflexões é a
traição. O Horácio velho acusa o Horácio adulta de ter traído a ele e ao jovem.
De ter matado os sonhos deles virem a ser poeta. A marca dessa traição
localiza-se num acontecimento traumático, um acidente fatal que culmina com a
morte do pai de Horácio. Mais do que a fatalidade do acontecimento, o drama, o
trauma repousa na forma, que segundo o Horácio adulto relata a ordem recebida pelo policial para que ele leve a moça que acompanhava o pai na viagem e deixe o velho, no caso o pai dele.
A partir desse
acontecimento, HORAcio muda toda a sua vida. E nessa mudança com inúmeras reflexões
sobre a vida, a morte, a finitude, o tempo, que a peça se desenvolve, mas não
linearmente, e sim, ciclicamente, já que a reflexão final retoma a inicial, mas
agora de maneira mais profunda com o HORÁcio velho, sentado,
na verdade, “infartado”, reflete sobre qual a diferença entre morrer na beira
da estrada ou com plano de saúde? Interroga a si mesmo e ao seu interlocutor
adulto sobre o sentido da vida, naquilo que ela tem de mais pessoal- a própria existência.
Se valeu a pena ter deixado de ser poeta, vivido na sarjeta para se tornar um
advogado respeitável, quando no final das contas.... o fim chega para todos? A
morte é igual para todos, deixando como legado aquilo que fizemos, ou no caso,
deixamos de fazer. A grande pergunta, tácita é se vale a pena não vivenciar os
sonhos?
Essa é a grande pergunta
e é sobre ela que falaremos do espaço terapêutico.
II O eu terapêutico.
Dentro do espaço terapêutico
é indubitável que temos muitos eus e não estou falando de vidas passadas. Estou
falando desses eus, que a peça HORAcio explora tão bem.
Embora haja,
invariavelmente, uma justaposição de um eu sobre outro, muitas vezes, não
vemos e nem percebemos esse acontecimento. Nem observamos como que determinadas situações evocam
nossa criança, outras, nosso adolescente, outras nosso jovem. Como que pulamos
de tempo para tempo tentando alinhavar tudo entorno de uma ordem, de uma coerência
que no final da contas não podemos afirmar que existe, a não ser para nossa
cabeça. Essa busca cria muitas tensões.
Mais do que tensões,
geram conflitos, porque há uma falta de relação e sintonia entre o que eu penso
e o que meu corpo sente. Entre a minha experiência sensória e a minha idealização imagética.
E de forma geral por desprezarmos o corpo queremos, de todo modo, a todo custo,
que a vida se adapte as nossas exigências. Queremos que a vida siga nossas
regras, ainda quando o corpo, o outro, o mundo, a vida esteja nos mostrando que
estamos em desarmonia.
Os exemplos são milhares
tanto pessoais quanto de amigos, conhecidos, de livros, filmes, etc... Mas, vou
citar como exemplo um amigo que em sonho se viu casado, noivo de uma menina que
não tinha mais do que 13 anos. Por muito tempo, ele quis se ver como pedófilo,
mas essa conceituação não era condizente ao momento no qual ele vivenciou a
estória, século XIII, XIV. De forma que em nossos deslocamentos trazemos esses
olhares descontextualizados e produzimos uma carga imensa, enorme, sobre nos mesmos,
quando o sentido seria esvaziarmos desses pesos.
Ainda nessa mesma linha, me recordo de uma mendiga que entrou na lanchonete pedindo alimento, dinheiro. Ninguém
deu e eu ofereci um pastel assado que tinha levado uma minúscula dentada. A moça
olhou para mim, agradeceu com certo desdém e disse que não comia resto. Eu a
compreendi, especialmente, porque no momento no qual ela dizia isso, eu não a
via mais como sendo mendiga, eu a via como uma donzela, de pele muito clara,
cabelos louros, segurando uma sombrinha, com um chapéu e vestido de renda típico
da corte francesa do século XVII, XVIII. Como um negro tem a audácia de dirigir
a palavra para uma donzela e ainda oferecer pastel assado mordido? Sei que na
lanchonete as pessoas me olhavam querendo se desculpar pela humilhação que eu
recebi, mas eu estava super bem. Ela não quis e a vida segue. Para mim, ela
está presa a uma imagem dela do século XVIII. Ela esta presa num desses espelhos da existência.
De modo que, terapeuticamente,
acredito que seja possível colocar um Horácio conversando com outro, ouvindo o
outro, um tomando consciência da existência do outro e curando as feridas e
dores do outro. Podemos exemplificar com a dor da menina abandonada aos 7 anos. Hipoteticamente, ela pode ser acolhida pela mulher de 55 hoje. Ela e mais ninguém
pode pegar essa menina no colo e a acolher, cuidar dela, mostrar como elas
caminham juntas. E a loucura maior é que é essa menina de 7 anos que cura a
mulher de 55 do seu medo de ser traída, abandonada, humilhada. É ela que a auxilia a tirá-la do espelho.
De uma maneira que aqui
não cabe adentrar, os tempos subjetivos não obedecem a linearidade do tempo cronológico.
Todos ao olharem para essa mulher bonita acreditam que ela é uma adulta, que
ela tem 55 anos e resolveu suas questões; todavia, a verdade, é que
emocionalmente, ela esta estacionada nos 7 anos. Quando o bicho pega, é para
esse tempo, para esse lugar que ela retorna. Ela continua se vendo
desprotegida, sem lugar, sem saída. Assim como ela, se dá com cada um de nós. Poucos,
pouquíssimos de nós têm a idade cronológica atrelada à idade mental, emocional,
sexual para falar de meramente três. Esses tempos são outros e muitas vezes não
percebemos.
III Atêlie Interior.
Mas a razão pela qual
escrevo isso é que amo a arte. Amo como a arte, o palco, o teatro, a pintura, a
escultura, a música, o poema esclarecem aquilo que precisamos de muitas páginas
para explicar. Se a peça ficasse mais tempo em cartaz levaria alguns “partilhantes”
para assistirem. No diálogo entre os artistas acredito que ressonaria as vozes
caladas, massacradas do nosso ser que vamos impedindo de falar. Essas vozes
então passam a gritar e ainda assim são ignoradas, assim, elas se distendem e
ainda assim não são percebidas, até que elas se separam, aí, geralmente, é
tarde para uni-las. Em todos esses movimentos, fica notório, que o tom aumenta
quanto menos se dá vazão e escuta a essas vozes. E, em certa medida, todo
trabalho terapêutico, consiste em harmonizar cada uma delas. Dar espaço para
cada uma delas. Permitir que cada uma delas seja o que elas são.
HORAcio toparia ser
advogado, ele aceitou a advocacia, mas o que o matou foi ele não ter dado
espaço para o seu poeta. O poeta de Horácio não podia morrer. Talvez, ele não fosse
Drummond, nem Castro Alves, mas seria Horácio e isso se não valesse de nada
esteticamente, seria a redenção dele, existencialmente. O vazio existencial
dele não seria tão grande, tão forte, tão imponente. Bastava, ele ter escrito e
publicado os seus poemas, deixado essa energia fluir, permitido essa energia caminhar.
E esse é o ponto
interessante, que durante a apresentação da peça me reportou diretamente a uma
conversa que tive com um dramaturgo brasileiro meses atrás. Como não me canso
de dizer, os artistas desencarnados continuam suas atividades, mediante, oficinas, palestras,
cursos, workshops e outras variedades de facilitação interior. E é muito salutar visualizar como essas oficinas são desdobradas no plano físico. É muito legal perceber essas intercessões entre os dois lados.
Uma dessas intercessões denominei de Ateliê do Espaço
Interior cujo foco sempre foi com os poetas, músicos e artistas plásticos. O trabalho com os dramaturgos é recente, esta em gestação e tenho que afirmar, que terapeuticamente, tem alto impacto na transformação e conscientização das pessoas. A técnica, hoje, amplamente
utilizada no plano físico consiste no desdobramento da personalidade da pessoa
para que ela se veja representada, encenada no palco da existência. Ou seja,
desdobra-se a personalidade para que ela seja projetada, exteriorizada. De modo
que olhando para si mesma, ela consegue integrar aspectos, partes que antes
andavam soltas, sem lugar.
A peça me remeteu, diretamente,
a essas práticas, a essas possibilidades de se auxiliar o outro mediante
práticas teatrais.
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