2º MOVIMENTO:
Como estamos falando de
Primavera, sou remetido a falar de Demeter, deusa da agricultura e especialmente
da sua filha com Zeus, Perséfone, a esposa de Hades, deus do mundo subterrâneo.
A partir deles pretendo falar do restante das estações e dos processos que se
desenrolam no subterrâneo da nossa psique: medo, auto sabotagem, entrega.
Demeter é linda como um
dia ensolarado. Perséfone é fruto do amor e da conexão de Demeter com o
universo. Homens compreendem pouco dessa profundeza, dessa interação tão
intima, rítmica entre mãe e filha. E devido a essa incompreensão, Hades “rapta”
Perséfone para viver com ele nos mundos subterrâneos. O que eu escrevo agora
são as biografias não autorizadas de cada um desses personagens. E conto,
porque eu vivenciei todas essas histórias, acompanhei e negociei cada capítulo
e momento de tensão.
Quando Hades “rapta”
Perséfone, uma tristeza de morte invade Demeter. Uma tristeza, uma culpa que é
anterior a Eva, é quase maldição de Pandora. É uma dor que antecede e gruda em
todas as que nascem com a abertura do triunfo. E esse sentimento devastador,
desolador, Demeter e nenhuma outra deusa conheciam. E aqui é a densidade da
história.
Hades conhecia, mas
ninguém acreditava nele. Os irmãos olímpicos nunca compreenderam muito aquela
sua invisibilidade diante da vida, acompanhada de uma fúria irascível perante
os acontecimentos. Mas, uma garotinha, por mais feiúra e monstruosidade esse
tio pintasse, ou fosse pintado pelos outros, via uma beleza, que nem o próprio
Hades enxergava. Esses olhares femininos!!!
Foi assim, que ao fazer
15 anos, Perséfone foi conduzida ao Hades. E aquele mundo no qual todos se
assombravam, que quem entrava não saía, que era repleto de dores e ranger de
dentes, ela colocou leveza, desculpe-me Afrodite, ela levou beleza. O Hades
nunca foi o mesmo, nem enquanto espaço, nem enquanto tempo, nem enquanto ser.
Uma única presença e alterou tudo, como se antes de ela nascer, ela já estivesse
fadada a ser esse ponto de equilibro, de tensão entre dois mundos.
Nunca disse, mas amo
Perséfone. Não apenas por carregar um Hades inteiro dentro de mim, mas por ela
não correr das cicatrizes, machucados, feridas que trazemos de batalha. Por ela
conseguir amar e olhar para além da armadura que colocamos e do elmo de
invisibilidade que temos. Sim, se Perséfone é a Primavera e com isso traz o
feminino. Hades é o inverno e por vezes o masculino. O outono e o verão serão
as estações negociadas entre Hades e Demeter. São os pontos em nossa psique que
podem ser negociados, compartilhados, quiçá entregues.
É impossível não ser
seduzido pela “inocência e candura” de Perséfone. Falamos das deusas para que
cada mulher nas suas múltiplas faces se reconheça Perséfone, Demeter, Afrodite
e outras tantas. De igual modo que compreendam seus filhos, maridos, namorados
como Hades, Zeus e alguns outros. Percebam como representação. Demeter é o
atributo da mãe, da geradora, da cuidadora, da criadora. Perséfone é o atributo
da filha, aqui quero vê-la como a desviada, a menina doidinha que ninguém
entende o que esta fazendo: se ela tem tudo, por qual motivo ela esta se
envolvendo com esse povo barra pesada do Hades?
Porque ela tem o vazio
existencial. Porque ela sabe e sente que tem mais coisas entre os campos de
centeio e os mundos infernais do que está sendo mostrado, esta sendo dito pelos
seus pais. Porque há uma parte de nossa alma que necessita se alimentar e por
vezes se nutrir desse universo mais denso, pesado, trágico. Porque ela tem a
curiosidade das buscadoras da verdade. A mãe dela quer ir fazer compra no
shopping, quer que ela seja bailarina, quer que ela case com um bom partido,
mas ela necessita de outra dosagem de adrenalina. Demeter espera que sua filha
reine sobre a Terra, Zeus, seu pai espera que ela viva no Olimpo, nos céus; e é
curioso como que a partir do céu e da Terra, ela esta destinada a imperar nos
mundos subterrâneos, que é quase a justa medida entre o reino dos seus pais.
Há uma Perséfone em cada
mulher. Uma que necessita transgredir, ir além do mundo demarcado pelos pais,
pela família, pela própria sexualidade dela. Perséfone é a puta no sentido mais
sagrado do termo. É a que vai se fazer mulher desafiando os limites dos pais,
rompendo e quebrando fronteiras, até que seja capaz de os reconciliar. O
trágico disso é que nem todas conseguem a reconciliação, seja com elas, seja
com os mundos que elas passam a dividir, ou se expulsam, exilam; de todo
modo... O trágico é a auto sabotagem que nos infligimos. Quantas descem ao
Hades e não mais retornam? Se perdem? Quantas esquecem o movimento das estações
nelas mesmas e passam a se nutrir apenas se envenenando?
Perséfone é aquela que se
deixa raptar por Hades, porque ela também tem o seu inferno, sua dor, sua
falta. Perséfone é a menina que precisa encontrar seu lado mulher e fará isso
com um homem que vê nela muito mais do que doçura e travessuras.
Se reconhece?
Falaremos do medo.