sábado, 18 de janeiro de 2014

Criança Interior


"Em todo adulto espreita uma criança - uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo, e que solicita, atenção e educação incessantes. Essa é a parte da personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa"Carl Gustav Jung psquiatra suiço (1875-1961)

A ‘criança interior’ é um ente complexo já que se mistura, se confunde, se esconde na criança que fomos. Como, biologicamente, a infância passa, acreditamos, piamente, que essas marcas do interno foram apagadas, esquecidas, superadas. O que queremos destacar é que a complexidade desse movimento evidencia que a idade cronológica em nada tem a ver com a idade psíquica, mais precisamente a idade emocional. Aquilo que fomos, que experimentamos de fato, que vivemos mesmo, se confunde e mescla com o que fizemos, como lidamos, como percebemos cada um desses acontecimentos. O real e o imaginário se coadunam.


Emocionalmente, a maioria de nós, não saiu da infância. Por isso lidamos tão mal com a separação, a traição, as conquistas, o poder. Em cada uma dessa e outras situações retorna a nossa mente o sentimento de abandono, desamparo, fraqueza, impotência experimentado na infância. Em cada uma dessas e outras situações, não é o adulto que está na situação e sim uma criança assustada, indefesa, desamparada. É ela que imerge do fundo de nós mesmos e tenta dar conta da dor de antes. É nesse irromper, é diante dele, que pensamos em uma maturidade emocional. Muito diferente da que reputamos importante, se tornar adulto, isto é, adulterar a criança. Corromper o que tem de mais puro e melhor em nós.

Assim nos colocamos diante de duas posições: a criança e a infância. Vamos tratar a criança como um ente real, objetivo, transitório, algo que fomos. Já a infância é um componente subjetivo, imaginário, por vezes fantasioso. A criança interior é esse ente que pode ser localizada dentre de um tempo cronológico, situado, ao mesmo tempo em que vivencia o não tempo, o não lugar do imaginário. De forma que embora desprezada, ignorada, ela dita as regras de funcionamento interno da nossa psique. Ela é uma das peças chaves dessa engrenagem.

A proposta junguiana, ou melhor, a idéia da citação é encontramos esse espaço em nós. É nos abrirmos à sabedoria dessa criança interior. Ela é uma das peças de integração da nossa psique como temos comentado desde o post passado.



Historicamente, a infância é recente. Estas foram tratadas em nossa cultura ocidental como adultos em miniatura, desde a vestimenta até os hábitos e anseios. De modo que é recente o olhar que lançamos sobre a infância e as crianças. Hoje, elas denotam uma fase especial, um momento único. Em todo o reino animal, em toda natureza, a ‘infância’ dura meses, poucos e escassos anos. Biologicamente, em poucos meses, as crias são adultas e podem até mesmo reproduzir tendo os seus progenitores. Nos homens a infância dura décadas e agora temos descoberto que ela não acaba, não cessa, não finda, ela perdura dentro de nós até que consigamos realizar uma aproximação do nosso adulto com essa criança interior.

II

E as formas com que a vida nos coloca diante dessa integração, desse reencontro são inúmeras. A mais comum é nos tornando pais. Quando nos tornamos pais, mais do que educar os nossos filhos, nós estamos nos educando. Estamos aprendendo a lidar conosco, a enfrentar nossas carências, nossas angústias, nossos vazios. A vida nos dá a chance e oportunidade de suavizarmos onde fomos severos, de endurecer onde fomos mole.

Essa sabedoria da vida é formidável e sensacional, porque enquanto acreditamos que estamos realizando algo pelo outro, fazendo pelo outro (filhos), sendo importante para esse outro, a vida está nos dando a oportunidade de nos reinventarmos, de unir as linhas da história que rompemos por um lado, ao mesmo tempo em que podemos romper completamente com outras.

Todos nós que somos pais dizemos: “não farei com meus filhos o que meus pais fizeram comigo. Ou farei para os meus filhos, o que meus pais fizeram por mim.” Em cada uma das situações temos o ensejo da tradição e traição (Bonder), da permanência e da ruptura com nossa história, com nossa jornada. Mas, independente dessa relação, o movimento que esta se dando, é uma conversa, um diálogo entre o adulto e sua criança interior. É assim, que ao nascer um filho muitos pais se renovam, se remoçam, se desarmam, se abrem para vida. É assim também que muitos se fortalecem, se armam, se fecham, parte para o mundo para trazer o sustento a esse novo ente. A criança física renova todas as crianças que foram e não estavam sendo. O nascimento de uma criança embala e reestrutura toda energia da família. É um processo belo, lindo.

Pelo menos é essa visão que psicólogos e terapeutas recuperam quando olham para dentro dos seus partilhantes. Embora, eles estejam de frente para homens, mulheres, jovens, nas mais diversas idades, sobrepostas holograficamente a cada um deles, têm uma criança querendo falar, dizer, se expressar. A construção do nosso caráter, da nossa estrutura de pensamento dialoga estritamente com a criança que fomos, com a infância que desejamos, com aquilo que não gostaríamos de ser. Toda essa miscelânea junta, reunida nos coloca frente a frente ou de costas a educação, a formação que recebemos e o que fizemos dela. Essa atemporalidade psíquica é ‘absurda’, mas ajuda a mostrar a outra lógica que cerca o universo psíquico. Das brincadeiras de vencedores e vencidos, polícia e ladrão, passa-se as competições por melhores cargos, salários, status, reconhecimento. De brincadeiras com bonecas passa-se a criar filhos, de brincadeiras com carrinhos passa-se a adquirir, trocar, acariciar, preservar, carros de verdade. Em cada uma dessas interações tem uma criança atenta, conduzindo o adulto no seu fazer e no seu realizar. Ela esta presente dando confiança, pedindo confiança, mas quem escuta criança? Quem dá atenção de fato aos desejos de uma criança? Nós as cercamos de cuidado, de preocupação, de atividades, mas damos pouca atenção, no sentido de suprir o real desejo. Escutamos e sabemos pouco sobre o que de fato queremos, desejamos, menos ainda as crianças. Tudo isso nos direciona para os modelos educacionais.


III  

Acreditamos que sabemos o que é melhor para as nossas crianças. Acreditamos nisso, porque somos adultos e temos o dever de conduzi-las para onde não chegamos, evitar que elas passem por aquilo que passamos. Perceba que já não se distingue mais a criança interior, um ente fabricado por tudo o que fomos, fizemos, deixamos de fazer, gostaríamos de ter feito, nos impediram de fazer; com a criança real, resoluta, histórica que fomos e deixamos de ser. Todo nosso processo de crescimento se faz em oposição à criança real e imaginária que somos. Crescer é negar-se como tentarei abordar no próximo post ao tratar de Peter Pan. Crescer é se afastar daquilo que se é para se tornar aquele ou aquilo que modelaram como sendo melhor para nós. Nós, enquanto individuo familiar, nós enquanto sujeitos, fruto de um tempo e um espaço determinado. Sendo que os processos familiares e pedagógicos castram a infância. Robotizam o ser.

Como professor de Filosofia observo isso constantemente. A maioria dos alunos passa a vida na escola sem jamais terem feito uma pergunta ao professor, saem da escola repletos de dúvidas, porque tem medo e receio de perguntarem. Não conseguem compreender a Filosofia, porque ela na sua ‘atitude filosófica’ enseja que sem perguntar: o que? Como? Por que? não nos Espantamos com o mundo, com o ser, com as coisas. Sem esse Espanto, esse “pasmo original”, não se faz ciência, filosofia, arte, porque elas nascem do Espanto/Thauma, da simples capacidade infantil de indagar, questionar, inquirir, buscar. Assim, essas três perguntas naturais em toda infância, comum para toda criança, enfadonha para cada pai cansado, torna-se o início da castração. Primeiro pelos pais, que cansados com essas perguntas infindáveis, encaminha o filho para escola. Junto ao encaminhamento vai a orientação de que é no espaço escolar, junto a coleguinhas e professora que essas perguntas são e serão respondidas. Essa ilusão perdura até o terceiro questionamento curioso, infantil do aluno(a) e a ira da professora mandando ela(e) calar a boca, prestar atenção e aprender aquilo que para ele(a) não tem sentido, importância, significado. Ele é ensinado a não perguntar, a não questionar, a se conformar com o dado, com o posto, mesmo quando sabemos que toda descoberta, toda criatividade saiu justamente de um novo olhar sobre o dado. Onde todos viam igual um viu diferente e revolucionou nossa percepção. E a revolução não veio de uma resposta, veio de uma simples pergunta. Por exemplo, foi a pergunta de Newton: “que força é essa que atrai os corpos em direção ao seu centro?” Foi a pergunta de Einstein: “será que a queda de um corpo é igual para quem esta caindo e para quem esta vendo?” Foram essas perguntas ridículas, que qualquer estudante médio tinha a resposta, que revolucionaram nossa forma de ver o mundo. Eles estavam diante do mesmo, eles sabiam as respostas oficiais, mas desconfiaram dela, desconfiaram do mundo, desconfiaram de todos, apostando na criança interior delas e no universo de Deus. Tentaremos falar dessa integração quando tratarmos do Peter Pan. De como se deixar fiar por essa criança interior é a fonte de segurança, coragem e criatividade que temos em nós.

De modo que a escola longe de potencializar o desenvolvimento da criança interior se faz o espaço da castração, eu a vejo por anos. Nenhum lugar privilegia tanto a burrice quanto a escola. Nela não há lugares para perguntas novas e sim para as respostas de sempre, de ontem, que mantiveram a escola onde está e como esta. Esta é a mesma situação das religiões, assim como do espaço familiar. Não é de graça que são instituições em crise, elas não acompanham as mudanças, elas não abrem espaço para a espontaneidade, o inusitado, o casual, o imprevisto, o inesperado. Ela não dá condições de cada um ser visto como si mesmo.

Para finalizar essa parte, atualmente, nas escolas de BH estão achando avanço pedagógico ensinar crianças de 3 anos reconhecer o alfabeto, ler aos cinco, estar alfabetizada aos seis. Essas crianças que deveriam estar brincando, cantando, dançando estão aprendendo algo que se elas aprenderem seis anos, cinco anos depois não vai fazer nenhuma, absolutamente, nenhuma diferença na vida delas, aliás, a única diferença é que elas não terão tido a infância estuprada.

IV

Enfim, de modo geral, nós evoluímos. Combatemos as violências físicas, por vezes psicológicas realizadas contra as crianças reais e isso é um avanço. Mas, no que se refere às violências contra as crianças interiores estamos mais distantes. Porque, de modo geral, para se proteger a criança interior tem que se insuflar de um amor por si mesmo, por um respeito pelo que se é, por um senso de honestidade, de moralidade que somente uma criança sabe ter e tem. E essa criança como vimos esta morta, desiludida, abandonada dentro da maioria de nós. É essa criança interior que conduz os adultos, nossa felicidade. 





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