A CRIANÇA INTERIOR: o
adulto contra Peter Pan.
Uma restauração do mítico, do imaginal e
do arquetipal supõe uma descida ao interior do reino infantil da criança. A
nossa consciência, fortemente centrada sobre o eu, a coisa que teme mais é uma
tal descida. O pior insulto é alguém passar por ‘imaturo’, ‘acriançado’,
‘infantil’. Nós inventamos portanto todas as espécies de medidas para nos
defender contra a criança – e contra o fantasma arquetipal. Nós chamamos a
essas defesas a consciência do eu forte, madura e desenvolvida.
A citação é forte, clara.
Todo nosso desenvolvimento se faz enquanto negação da criança que fomos. Ser adulto
passa mais por adulterar essa natureza infantil do que amadurecer. Preocupamos muito
mais com esse adulterar, esse trair o que há de mais simples, conectado a
valores nobres em nós do que de fato amadurecermos seja psiquicamente ou não.
Isso me faz pensar no
termo adolescente, adolescer, que simboliza um ritmo, um processo de crescimento do indivíduo demarcado não pela cronologia, mas por um estado interno de interação. A adolescência mais do
que uma fase, representaria um estado, uma forma de estar desenvolvendo o ser. Todavia, infância e
adolescência são duas fases vivenciadas como algo a ser descartado, superado,
alterado. Uma concepção que está ficando cada vez mais célere, conclamando a todos a serem jovens eternamente
O ponto que queremos
tocar nesse post é o de pensarmos a infância como um processo de crescimento- adolescer-
no qual culmina em um adulto capaz de não
trair a criança que ele é. Um adulto capaz de adolescer suas crises de
insegurança, possessividade, rejeição, abandono sem culpar o mundo e o outro por isso. Um adulto que se faça um ser humano melhor durante todo o seu processo- adolescer.
Em certa medida podemos insinuar que é apontando essa direção que o Mestre da Galiléia adverte seus discípulos dizendo: “Em verdade vos digo
que, se não converterdes e não vos tornardes como criança, de modo algum
entrareis no reino dos céus.” É em certa medida a isto que Jung está explanando
na sua citação acima também.
Psiquicamente, a criança
alinhava nossas carências emocionais mais recônditas com o adulto que somos, com
as coisas que fizemos e fazemos. Em nada, um se distingue do outro. E, talvez
para pensar todo esse cenário, nada mais ilustrativo, do que a figura de Peter
Pan. Há uma síndrome com esse nome que se refere a pessoas que se recusam a
crescer. É uma analogia fantástica, muito condizente com a proposta dos
quadrinhos.
Nessa analogia,
portadores da síndrome de Peter Pan seriam adultos que se recusam a crescer,
que se recusam a viver o mundo dos adultos, o mundo real, concreto, objetivo. Outro
lado mais acentuado da síndrome, segundo os psicólogos, seria a infantilidade
emocional. A tese é boa, forte, creio que um olhar mais apurado identificaria
muitos casos, mas será que esse é o único olhar possível para Peter Pan? Esse
olhar não pode ser considerado uma critica mais dura a própria criança e a infância?
Por diversos motivos penso que sim e tento mostrar.
I
Recordo-me de um dia, lá
pelos meus onze, doze anos, sem saber como, surgiu uma revistinha que contava a
história desse personagem. Nunca gostei de gibis, mas esse eu li em uma sentada.
Fiquei encantado com a Terra do Nunca. Esse espaço no qual nenhum adulto entra,
acessa. Fiquei ainda mais extasiado, porque ele batia na janela das crianças e
elas saiam voando.
Tudo isso me fazia
recordar os meus amigos que chegavam a noite até a cabeceira da minha cama
tendo atravessado as paredes. Amigos que estiveram presentes durante toda a
minha infância e que naquele momento, tinham reduzido a presença deles perto de
mim. Recordo-me que eles me pegavam pelas mãos e saiamos voando ora furando o
teto, ora atravessando janelas. De forma que “A Terra do Nunca” para mim nunca
foi uma fantasia, uma ilusão. Peter Pan nunca foi um ser que se recusou a crescer,
ele era a personificação dos amigos espirituais que me visitavam. E, parte
desses visitantes os reconheci como sendo entidades que trabalham comigo há
décadas, mas também como filhos, sobrinhos que hoje encarnaram e largaram a
Terra do Nuca.
Assim, para falar de Peter Pan, para ser justo com tudo o que
acredito, só posso escrever isso sobre outra ótica, uma versão que contraria a
interpretação psicológica na sua concepção inicial, mas estreita diálogo com
ela mais no fundo, vejamos.
A representação psíquica
estendida para Peter Pan é a de que ele é uma criança que se recusa a crescer e
quer de todas as formas, de todos os jeitos busca parceiros para não ficar
completamente só. Peter assim é associado a adultos que fogem das relações
afetivas, emocionais, profissionais, recusando-se se tornar adulto e ser
adulto. De certa forma isso pode ser observado em várias pessoas. O que
filosoficamente me ocorre é a possibilidade de existir Peter em cada um de nós.
Não completamente, como em alguns, mas em alguns pontos. E é esse Peter Pan que
nos mantem saudáveis psiquicamente. É a terra do nunca em cada um de nós, seja
lá a forma com que cada um lida com ela, que nos mantém vivos, felizes,
saudáveis.
O que chamamos de
crescimento, de ser adulto é algo que em suma perverte e mata a criança na sua
beleza, humildade, sinceridade, espontaneidade, veracidade; mesmo quando mente,
tenta enganar, se envaidece. De modo que acho possível ler Peter Pan, a Terra
do Nunca como, respectivamente, nosso amigo espiritual que não precisa mais de
reencarnar e nem quer reencarnar e a nossa casa espiritual.
Veja que pode parecer
então imaturidade, mas no caso não é. Muitos de nós não queríamos reencarnar e
viemos porque tínhamos algo a oferecer, a ofertar e principalmente a ganhar. Os
amigos que ficaram nunca nos deixaram sozinhos, eles sempre estiveram e estão
conosco, brincando, cantando, se divertindo, sem perder o senso de humor, sem
perder a humildade, sem deixarem de ser espontâneos, sinceros, verdadeiros.
Eles são Peter Pan. E alguns de nós já fomos, desejamos ser. Em certa medida é
nossa destinação, pelo menos é assim que iremos interpretar a fala do Mestre da
Galiléia: “em verdade vos digo que não serdes como essas criancinhas, não
entrareis no reino dos céus.”
É a essa circularidade psíquica
que Jung apostava uma integração. Sermos capazes de mesmo adultos manter a
nossa criança interior, que em outras palavras representa nossa espontaneidade,
humildade. A criança interior é a nossa parte pura, integra, incorruptível que
não se esquece de onde veio, não se esquece de quem é, mesmo que ela não saiba
definir, classificar como somente o adulto vai aprender mais tarde. A criança
interior é a parte que nos mantém em contato com nosso Eu Superior, nosso Anjo
da Guarda, Mentores Espirituais, Gurus, Centelha Divina dêem o nome que acharem
relevante, a essa fonte de água limpa. Independente do nome, é ela que nos propicia parte significativa da
nossa cura psíquica.
É a nossa criança
interior que nos leva a conectar com o Sublime, com o fantasioso, com o invisível.
É ela que melhor representa e simboliza nosso conceito de fé: acreditar naquilo
que não se vê, para ver aquilo que se acredita. Essa confiança e entrega a
essa força sem duvidar por um segundo é a criança interior que proporciona. E fico
pensando que toda a nossa jornada da infância a maturidade é o percurso interno
de retornarmos essa confiança, de restabelecermos essa conexão.
De forma que se no plano
material ser Peter é uma maldição, um estrago, já que representa uma eterna
criancice, uma perene meninice, no plano espiritual não há nada além para ser
alcançado. Sendo que a tristeza, a recusa de Peter Pan não é a de crescer e
sim a de reencarnar e deixar para trás sua verdadeira identidade.
E é a formação dessa
identidade que é o ponto de discussão. Temos educado para negarmos nossa
identidade. Cada vez mais cedo estamos ensinando identificações na qual a
criança se perde, é corrompida e com ela a nossa conexão com a fantasia, com o
invisível, com o sublime. Ao ferirmos a criança interior, ao alijá-la da sua fonte de conexão perdemos a humanidade, ou melhor, aquilo que nos torna humanos.
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