É difícil explicar o que Hanna denominou a “Banalidade do Mal”.
Assim, as respostas fáceis, prontas, coloridas, acabadas nos trazem alivio,
apaziguamento. Nos dão uma compreensão que mesmo equivocada, pálida, tênue, nos
confortam. O filme tenta nos tirar desse conforto. Dessa estabilidade, o que
uma amiga em sua análise do filme chamou de ‘normose’.
Tentarei evitar as análises ao meu ver equivocadas, apressadas,
superficiais que foram feitas ao conjugarem psicopatia com portadores de
sofrimento e transtorno mental. Essa é uma discussão que eu gostaria
imensamente em me ater, em aprofundar, em abordar, porém talvez passe a reboque
dela.
Quero acreditar que as identificações da violência com a miséria,
com o sofrimento mental, com a psicopatia fazem parte desse pensamento rasteiro,
desejante de explicação. Esse pensamento que não suporta o ‘contato furioso da
existência’, que recorre a palavras mágicas, entendimentos breves, para lhes
poupar do breve flerte com o ABSURDO.
O absurdo é esse olhar para o abismo e de repente sentir o abismo
devassando sua alma, procurando espaços nos quais pensava não ter, como nos diz
Nietzsche. Diante desse nada, queremos terra firme, ares tranquilos, mares
calmos. Desejamos explicações racionais. Elegemos salvadores da pátria. O filme
tenta não nos deixar cair nisso. Nos desaloja desse encontro fácil, dessa
resposta fácil e rápida. O filme desaloja.
Mas, para onde vamos? Para onde tem ido muitas das análises: para
as explicações reconfortantes e acalentadoras. Os Incels americanos e talvez
mundiais se identificaram com o Coringa, mas eles entenderam? Eles entendem
alguma coisa fora do pobre e desértico universo subjetivo deles? É culpa nossa,
eles serem assim? As perguntas evocam questões, igualmente complexas, novamente
polêmicas, que nos conduzem para novas e outras análises, tais como: a ficção
pode influenciar a realidade? A arte, no caso um filme, pode mesmo levar uma
pessoa a cometer crimes? Qual é esse limite entre o imaginário subjetivo e o
transpessoal, coletivo? Como que algumas pessoas esbarram nessa realidade como
se estivessem chocando com uma parede cinza de concreto e outras a atravessam
como se estivessem passando por uma nevoa?
É inegável que há pessoas, geralmente, artistas, que ao falarem do
seu imaginário abrigam em si toda uma geração, toda uma humanidade. Poderia
ficar aqui até o restante do texto dando exemplos, mas eu quero nesse momento,
pensar naqueles que esmagados por uma realidade cinzenta, não conseguem
libertar seus sonhos, fantasias, sua vida de uma realidade concretada. Simplesmente,
não conseguem. A realidade para eles é mais densa, espessa, sombria. O mundo
interno deles é tão solitário quanto o externo. Aquilo que rodopia por um
segundo em sua malha intelectiva é deglutido como se fosse um buraco negro.
Consomem o outro ser por inteiro e ao final não resta nada, ninguém. Nem ele,
nem o outro. Se o artista constrói pontes e muros, algumas dessas pessoas dinamitam todas as relações, inclusive, a delas com elas mesmas.
"Para mim, a arte pode ser complicada e, às vezes, a arte é feita para ser complicada. Se você quer arte descomplicada, talvez você deva ter aulas de caligrafia, mas fazer cinema é sempre uma arte complicada". Todd Philips
Assim, nos preocupam os rótulos, os clichês, um pouco similares
aos que fiz acima e venho desconstruir aqui. Coringa é um psicopata? Coringa é
um louco? É ele um doente mental que não gosta de ricos? Coringa é um doente
mental, pobre, fracassado, que não gosta de ricos e mata sem sentir culpa?
Notadamente, ele pode ser tudo isso, mas o filme não nos permite explicações
fáceis e simplistas como essas. O filme nos convida a perceber várias coisas,
em muitas direções e profundidades: o sofrimento mental é um. A falta de apoio
psicoterapêutico e farmacológico diante de uma política pública da indiferença
é outra. Todavia, o que assinalo como mais significativo é como o diretor nos
convida a ‘vivenciar’, perceber o conflito por dentro. E nessa vivência
adentramos níveis para além da nossa epiderme. Vejamos:
Uma primeira camada é a do campo subjetivo. Arthur Fleck com ele.
O segundo é o campo da intersubjetividade, Arthur com o outro, com o mundo. O
terceiro é o desaparecimento de Arthur Fleck e o surgimento da máscara;
Coringa. Essa gradação me fez lembrar de Drummond, na verdade, lembrei-me de
Afonso Romano de Santana que distingue as três fases de Drummond como que
demarcando: a 1ª na qual ele é menor do que o mundo. A segunda na qual o mundo
é grande e pesa mais do que a mão de uma criança. Uma terceira que o poeta, o
eu poético, se iguala ao mundo. Esse é um exercício de folego. É um processo
iniciatico. É belo ver como os artistas conseguem realizar essa transcendência
a partir de imanências, introspecções, mergulhos selvagens para dentro de si
mesmos. Vou tentar correlacionar esses movimentos com a astrologia. Espero
obter clareza. Espero que a linguagem consiga fazer essa travessia das ideias
que me habitam com o filme que nos captura, com a realidade- a cara do absurdo
que nos devora sem dentes. Apenas boca arreganhada que engole o mundo, o eu.
SUBJETIVO
Durante muitas cenas somos movidos para dentro da visão de mundo
de Arthur Fleck e deliramos com ele. Porém, passado poucas cenas, antes
do fim do filme, o diretor nos mostra, que era delírio. Insisto- o diretor nos
mostra. Sem os cortes dele, a edição e retomada das cenas deliramos juntos.
Acreditamos naquilo que Arthur vê, sente, compreende, interpreta o mundo. E
enquanto não há esse corte parece que todos no cinema amam o filme. É como se
aquela dor, sendo sofrida em silêncio, calada, intimamente, nos condoesse. Eu telespectador me
condoía, me solidarizava. Queria correr atrás dos meninos que roubaram o
cartaz. Queria que ele soubesse se defender melhor. Que ele se transformasse em
Van Dame, ou Charles Bronson, mas ele é só Arthur. Não haverá reviravolta.
Nenhum mestre Jedi chega, nem de artes marciais. Nem um amigo, nem um colega,
nem um policial. Fleck está condenado a ser ele mesmo: frágil, belo, bem-intencionado,
bonito. Um anônimo. Um ninguém. Alguém que se demitido não faz falta, alguém que seguindo uma pessoa por toda uma cidade, não é visto. Alguém que diante de uma terapeuta não é ouvido. O nada da existência o ronda, se faz indiferença política-social.
Isso para destacar que o delírio é tão convincente, tão real, que
acreditamos. Se o diretor não nos retira, continuamos dentro da realidade dele.
Mas, nós estamos fora, somos outro. Talvez tenhamos nossos próprios delírios e
nos percamos neles. Reconhecemos o dos outros, rechaçamos até. Vivenciamos
delírios coletivos, que se tornam realidades- opressivas, massacrantes. Legitimadas, justificadas o tempo inteiro. Sabemos nos convencer que a desigualdade e a indiferença são innevitáveis.
Fleck é
o cara sensível, amoroso, cuidadoso, que desejava fazer as pessoas rirem e
levar alegria e felicidade para todos. Quase nunca obtinha êxito. As pessoas
não riam para ele, não riam com ele; as pessoas riam dele. Ele era motivo de
deboche, desprezo. Um palhaço sem graça. Um comediante de piadas ruins. Motivo
de zombaria e escárnio, entre os colegas, nas ruas, depois em rede nacional.
Isso não é um delírio no qual ele sai. Essa é a realidade que ele vivencia
todos os dias. É a vida que não desgruda do ser. É a amargura que não sai da
pele. É a dor que vai obnubilando os passos até virar vazio. Se fazer absurdo,
se transformar em nada. E é nesse vazio, no qual o delírio que é parte dele,
age dentro dele, atua nele, ele se identifica com a própria máscara. A persona
assume a identidade. Porém antes de chegar a mascara, preciso passar pela invisibilidade.
INTERSUBJETIVO
Se a dor fosse só de Arthur, se essa miséria de vida, fosse só
dele, o filme não causaria polêmica, nem criaria alarde. Fleck nasceu, como
disse sua mãe, para levar felicidade e alegria para o mundo. A vida dele
gravita em torno dessa fantasia, na qual ele faz de tudo para ser realidade.
Ele é o cara bom. Tão bom que chega a ser bobo. Tão bobo que é visto como ingênuo.
Desculpem, ele não é psicopata. Ele tem uma inadequação completa para vivenciar nossa realidade. Ele não tem punhos,
nem dentes, não morde, não unha, não grita de raiva, não fala palavrão. Ele
apanha e volta a levantar. Ele é trapaceado e volta a sonhar. Ele é ignorado e
continua acreditando. Ele é brasileiro. Ele é o cidadão comum. O padeiro, o
professor, a dona que vende bala no sinal com o filho no colo. E nós não
ligamos para nenhuma dessas dores, dessas vidas, porque temos as nossas, mas
principalmente, porque elas não nos incomodam.
O que perturba em Coringa é que um dia esse cara mata. Não o
vizinho de rua. Não o outro preto que estava de bobeira na quebrada e esqueceu
da guerra das ruas. Não a mulher que o ex marido sentiu ciúme. Perturba porque
ele mata três ricos. Ricos? Mata três caras bem empregados e isso acende uma
questão e se virar moda? E se as pessoas perceberem que a desigualdade não pode ser justificada com o descaramento que utilizamos? E se eles quiserem o que é nosso? Pensam alguns.
Olhando as discussões acerca do filme, a questão não é mesmo sobre
a dignidade humana, ou o valor à vida. A questão é que homens brancos, heteros,
ricos não podem ser mortos como pretos, pobres, trans, no metro do mundo, por
um PALHAÇO. Por que como destaca, maravilhosamente o diretor Todd Philipps:
O que me intriga é sobre essa masculinidade tóxica branca. Quando você diz ‘oh, acabei de ver John Wick 3’, ele é um homem branco que mata 300 pessoas e todo mundo ri, torce e vibra. Por que esse filme é pautado em parâmetros diferentes? Honestamente não faz sentido para mim".
Não deveria fazer sentido para ninguém, mas definitivamente,
algumas vidas valem menos, muito menos do que outras. E essa discussão na
sociedade americana e em todas as outras não poderia deixar de ser feita. Por
que o assédio de três homens no metro a uma mulher não causa indignação? Por
que a agressão de três homens a uma outra no mesmo metro não perturba o sono de
ninguém? Por que a violência dos talks shows que tripudiam de outros é
aceitável? Saindo da ficção, saindo?
POSSO CONTAR UMA PIADA?
Essa frase virou um bordão, que como o filme seria cômico se não fosse trágico. Ou é trágico, porque é cômico. O ponto é que nessas piadas há o surgimento do Coringa. O Coringa nasce, cresce, ganha corpo, alma nas entranhas de Fleck. Coringa é o resultado de relações subjetivas e intersubjetivas. Não nasceu pronto, não está acabado. Mas, foi o que melhor deu um sentido para Arthur. E, comicamente, o sentido é que não tem sentido. O diretor nos traz para dentro do absurdo quando imaginávamos sair.
O Coringa anterior do Ledger encontra sentido no caos, na anarquia, na loucura completa e total. Ele é apaixonante. Mas, esse Coringa não é revolucionário, não odeia ricos, não sabe o que está acontecendo. É só mais um mascarado na multidão. E é aqui que adentro a Trasnspessoalidade.
Essa frase virou um bordão, que como o filme seria cômico se não fosse trágico. Ou é trágico, porque é cômico. O ponto é que nessas piadas há o surgimento do Coringa. O Coringa nasce, cresce, ganha corpo, alma nas entranhas de Fleck. Coringa é o resultado de relações subjetivas e intersubjetivas. Não nasceu pronto, não está acabado. Mas, foi o que melhor deu um sentido para Arthur. E, comicamente, o sentido é que não tem sentido. O diretor nos traz para dentro do absurdo quando imaginávamos sair.
O Coringa anterior do Ledger encontra sentido no caos, na anarquia, na loucura completa e total. Ele é apaixonante. Mas, esse Coringa não é revolucionário, não odeia ricos, não sabe o que está acontecendo. É só mais um mascarado na multidão. E é aqui que adentro a Trasnspessoalidade.
Coringa é uma carta na manga. Um palhaço. Um bobo. Um arquétipo.
Coringa é o avesso do avesso do avesso. É então a realidade negada, é o desejo
não manifesto. Coringa é o reprimido, o censurado. Nessa combinação, ele se faz
clareza e transparência da nossa insanidade. Ele nos devolve a nossa realidade.
O autor nos fez isso, quando ele nos mostra que Arthur Fleck delira, ele ao
mesmo tempo, nos esbofeteia com a insanidade do nosso cotidiano. E, claro,
pode-se ver nesse movimento uma apologia à violência, ou uma banalização do
sofrimento mental com a psicopatia. Não me pareceu isso, nem um pouco. O movimento
da câmera retira o cimento que impede algumas pessoas de verem o absurdo da nossa escolha de vida. O filme
transpassa do subjetivo de alguém que é portador de sofrimento mental, para uma
sociedade que é insana, com muita delicadeza. Uma delicadeza tão grande que nos perdemos. E a loucura começa, justamente, quando as pessoas
atacam o filme, o diretor para protegerem a realidade.
Plinio Marcos teve sua peça Navalha na Carne censurada na década de 1970. Nélson Rodrigues faz uma crônica contando de uma mulher que adentra a redação desesperada pedindo ajuda. O marido dela, taxista tinha sido preso arbitrariamente, acusado arbitrariamente e na cela fora possuído por outros homens. Ela estava desesperada, porque o seu marido dias depois foi libertado, mas continuava preso. Nélson então termina nos mostrando como que censuramos a arte enquanto ignoramos, banalizamos a realidade.
Plinio Marcos teve sua peça Navalha na Carne censurada na década de 1970. Nélson Rodrigues faz uma crônica contando de uma mulher que adentra a redação desesperada pedindo ajuda. O marido dela, taxista tinha sido preso arbitrariamente, acusado arbitrariamente e na cela fora possuído por outros homens. Ela estava desesperada, porque o seu marido dias depois foi libertado, mas continuava preso. Nélson então termina nos mostrando como que censuramos a arte enquanto ignoramos, banalizamos a realidade.
Há insanidade maior? Há prova de loucura melhor? Condenar a arte por ela espelhar uma visão de mundo? Arthur Fleck é
bom. É um cara legal. Digo mais, ele é sensível as dores do mundo. Ele deseja
fazer as pessoas rirem. Rirem com ele, rir das piadas dele, mas a gente só ri
dele. Debocha, humilha, espanca. Se ele estivesse medicado ele teria dado
tiros? Claro que não. Mas, a insanidade maior dessa sociedade, a nossa, é que
só vemos as pessoas quando elas vão para o campo da raiva.
Quem nunca pediu por favor, pelo amor de Deus, pela Ave Maria, ajoelhado no milho e
não foi ouvido, pelo contrário, foi ignorado, desprezada. Quantos pais tiveram que voltar a um estabelecimento para o filho ser atendido? Quantas vezes as pessoas não tem que se passar por filho de idosos para eles serem respeitados? Quantas vezes na sua vida, no seu dia-a-dia você só foi ouvido depois de
um grito, um tapa na mesa, um palavrão? Aí as pessoas se voltam para atender os
pedidos como se estivessem diante de uma majestade? Isso não é insano? Não é doentio?
O que mais desespera no filme é ele ter encontrado essa solução no disparo da arma. Ali, naquele homicídio triplo, ele matou 4 pessoas e talvez a mais bela de todos; ele mesmo. O assassinato dos moços, num ato de medo, defesa, crueldade, prazer, ele vai se aproximando do Coringa. O Coringa encontra uma forma de se aproximar dele. É uma pena, porque ali perdemos um ser bonito. E quantos perdemos por dia? Por ano? Quantos nós deixamos cair nesse universo turbulento devido a nossa indiferença? Há milhares de médicos em depressão, centenas de padres e pastores cometendo suicídio, milhares de professores com pânico, dezenas de policiais com tendências suicidas. No outro lado da ponta: milhares de pacientes com doenças psicossomáticas, centenas de fiéis em desespero, milhares de alunos com problemas psíquicos. Todo mundo tomando remédio, uns para acordarem, outros para dormirem, outros para relaxar, outros para tensionar. E, todos como Arthur acreditando que o problema é ele, que é uma questão individual, que se ele se esforçar, melhorar, tudo vai se resolver. Ninguém percebe que o sistema enlouquece, entristece, emburrece, instabiliza. O sistema precisa da indiferença. E a opressão maior é transferir todo esse peso para as costas do individuo, sem nunca questionar, o sistema. Sem nunca se perguntar: E, se....?
O que mais desespera no filme é ele ter encontrado essa solução no disparo da arma. Ali, naquele homicídio triplo, ele matou 4 pessoas e talvez a mais bela de todos; ele mesmo. O assassinato dos moços, num ato de medo, defesa, crueldade, prazer, ele vai se aproximando do Coringa. O Coringa encontra uma forma de se aproximar dele. É uma pena, porque ali perdemos um ser bonito. E quantos perdemos por dia? Por ano? Quantos nós deixamos cair nesse universo turbulento devido a nossa indiferença? Há milhares de médicos em depressão, centenas de padres e pastores cometendo suicídio, milhares de professores com pânico, dezenas de policiais com tendências suicidas. No outro lado da ponta: milhares de pacientes com doenças psicossomáticas, centenas de fiéis em desespero, milhares de alunos com problemas psíquicos. Todo mundo tomando remédio, uns para acordarem, outros para dormirem, outros para relaxar, outros para tensionar. E, todos como Arthur acreditando que o problema é ele, que é uma questão individual, que se ele se esforçar, melhorar, tudo vai se resolver. Ninguém percebe que o sistema enlouquece, entristece, emburrece, instabiliza. O sistema precisa da indiferença. E a opressão maior é transferir todo esse peso para as costas do individuo, sem nunca questionar, o sistema. Sem nunca se perguntar: E, se....?
Quando ele se identifica com a máscara, ele deixa de ser ele e
passa a ser o CORINGA.
E o Coringa é psicopata? É louco? Odeia os ricos? O Coringa é uma
persona, uma mascara, ele é mais do que o palhaço. Ele é o receptáculo de
forças que ele não controla, não conhece, não se importa e vai se manifestar
nele, por ele. Poderia ter sido outro. Poderia ter sido ‘qualquer um’. O Joker é a somatória desses elementos. Ele é o cara que rompeu com as regras, na verdade, o rompimento se dá dentro para fora. O psiquismo dele é rasgado, fissurado e de dentro dessa fenda sai a mascara que melhor retrata a leitura que ele tem da sociedade. E aqui
falo, brevemente de representação, atuação e sigo, finalmente para astrologia.
Um personagem não é o ator. O ator dá vida, pele, consistência a
essa persona/mascara. Por vezes, essa mascara ganha vida própria. Coringa tem
vida própria. Jack Nicholson não cansa de avisar, falar. Essa persona por vezes
não desgruda mais do ator, tira o eu dele, o rouba. Milhares de pessoas estão
perdidas numa persona. Fleck parece nunca ter tido uma. Olhando para ele dá
impressão de que ele estava no mundo de peito aberto, nu, escancarado. Quando,
ele encontrou uma persona, essa o tomou por inteiro.
TRANSPESSOALIDADE: o fim.
Para quem não sabe, essa imagem acima é do Arcano, o Louco no Tarot. O mundialmente conhecido nas ruas como 22. No tarot mesmo, essa carta não é numerada, porque ela não é serial. Ela é o inicio e o fim. O meio também como cantaria Raul, um 22. Uso o arcano, por razões óbvias. O arcano flerta com a personagem.
Eu escrevi tudo isso, porque enquanto via o filme, as pessoas com as máscaras de Palhaço, eu ia recordando do filme V de Vingança, da máscara que viralizou. Ia vendo os conflitos no filme e elas eram sobrepostas na minha mente com as convulsões sociais no Chile, no Equador, em Hong Kong. E então pensava na astrologia, no tarot, respectivamente, em Urano e o Louco. Ficava pensando, como que os artistas conseguem captar, capturar esse imaginário? Como que eles acessam isso?
Eu escrevi tudo isso, porque enquanto via o filme, as pessoas com as máscaras de Palhaço, eu ia recordando do filme V de Vingança, da máscara que viralizou. Ia vendo os conflitos no filme e elas eram sobrepostas na minha mente com as convulsões sociais no Chile, no Equador, em Hong Kong. E então pensava na astrologia, no tarot, respectivamente, em Urano e o Louco. Ficava pensando, como que os artistas conseguem captar, capturar esse imaginário? Como que eles acessam isso?
O filme é lançado já causando polêmica. E para mim é impossível não
falar do filme sem trazer para as demandas sócio-econômicas que temos
vivenciado com a politica neoliberal. Como desassociar? Como não relacionar
agora sim, ficção e realidade? Sim, por mais que defendam a lógica neoliberal, ela é insana. Não há loucura maior do que acreditar na Bolsa de Valores, em lucros e divivendos e pautar medidas reais baseando-se nisso. Isso é insano. Mas, legitimamos. Cortamos gastos, reduzimos custos, privatizamos para que alguns ganhem. Essa lógica da exploração é desumana.
Nesse âmbito desse flerte entre o filme e acontecimentos sociais, ele passa a ser ainda mais emblemático, letal. E se....?
A astrologia fala de planetas transpessoais, também conhecidos
como geracionais. Geracionais porque são planetas cuja orbita é tão demorada
que acaba influenciando gerações inteiras, estamos falando de Urano, Netuno e
Plutão. Transpessoais porque eles estão além do eu. Não é mais seu, pessoal. Eles
transpassam essa dimensão. Passam por nos, mas atravessam. O que eles expressam
nos mobiliza, nos conduz, mas não deveria nos prender, apreender. Tentaremos
deixar isso mais claro. De modo que o simbolismo desses planetas se conecta ao
que estava acontecendo no mundo à época do seu descobrimento.
A descoberta de Urano em 1781 está relacionada à Revolução
Francesa em 1789 e podemos estender para a Independência Americana, a
Conjuração Mineira, a revolução Haitiana. Todas elas têm como centralidade uma
luta pelos fins dos privilégios de um determinado grupo. Em verdade, os ideais
de liberdade, igualdade, fraternidade acaba por caracterizar esse planeta e a
conexão dele com a Terra. De modo que quando falamos de Urano estamos falando
num primeiro momento desses acontecimentos coletivos de transformação. Estamos
falando de eletricidade, de racionalidade numa oitava acima da que funcionamos,
normalmente. É uma inteligência coletiva, mas impregnada pela individualidade.
Por tudo isso, o signo que é regido por Urano é aquário. Um signo de elemento
ar, com grande capacidade de captar ideias à frente do seu tempo, por vezes do
seu espaço. Aquário e Urano no mapa representam, respectivamente, lugares nos
quais somos mais iconoclastas, mais propensos a desviar do padrão. Isso se dá
ao mesmo tempo em que Urano no mapa representa essa tendência, propensão
coletiva que temos de fugir às regras, de criar, inspirar, se deixar inspirar
por novos movimentos. Quando pensamos na famigerada era de aquário estamos
falando da inspiração desses novos valores de igualdade, de liberdade, de
fraternidade.
Pois bem, os signos de elemento ar (gêmeos, libra, aquário) nos
apresentam duais, como se não tivessem peso, fossem leves e de fato tendem a
ser até essas ideias quererem se fazer matéria, realidade. Gêmeos caminha
pela indecisão, pela dualidade. Libra pelo esforço de pesar e encontrar a
medida correta. Aquário coloca 'fim' à contenda ao encontrar a melhor maneira do indivíduo
se posicionar coletivamente. É uma operação matemática tensa, confusa, árdua, cujos movimentos são, inevitavelmente, transformadores, revolucionários, inquietantes.
Aquário pensa em conjunto e age coletivamente. É aqui que vamos vendo a força
eletromagnética de Urano na construção de campos, invisíveis, por vezes não
mensuráveis, que de repente irrompem em revolução. Na França dizem que foi por
brioches. No Brasil de 2013 por 0,20 centavos. No Chile pelo aumento das
passagens do metrô. No Equador, na Bolívia, em Hong Kong, simplesmente irrompe
um estopim e por vezes inflama.
O mundo está vivendo esse transito de Urano em Touro, promovendo fissuras em nossas estruturas de posse, de controle, de bens, de riqueza, de segurança. Tanto numa perspectiva econômica, quanto numa perspectiva psíquica. Essa duplicidade do dentro-fora, interno-externo, subjetivo-objetivo é onde o filme passeia com maestria e é também onde os movimentos sociais, coletivos, vem fazendo suas reivindicações.
Por um lado, jovens, estudantes, (urano) questionando com valentia, uma lógica distributiva (Chile, Equador) que eles não veem sentido. Uns com muito, outros com pouco (racionalidade coletiva). A operação não fecha. Por outro lado há toda uma lógica e racionalidade de segurança, de bem estar, apoiado em posses e valores de mercado mais tradicionais (touro). Aqui há uma associação com o tradicional, os adultos/velhos e seus ideias e cosmovisão que contrasta com a deles. Visualizado em Hong Kong nos quais a questão da extradição, segurança foi o estopim.
O filme consegue dialogar com esse momento, trazendo um ícone que
simboliza demais o que é esse momento Urano em touro. Ele é Coringa. E aqui
podemos pensar o Joker como carta mesmo no baralho, dependendo do contexto, ele
muda as feições, porém traz a marca transformadora, inquietante, desafiadora.
Artur Fleck é o porta-voz do Coringa. O cara invisível, sem voz,
que se encontra numa máscara. Mas, se o Coringa se utiliza de Fleck para se
expressar e vice-versa; o palhaço é a máscara de milhares de Flecks. E nessa
máscara, voltando as convulsões pelo mundo, ela é coletiva. Não se aponta uma
liderança. A revolta não para, ou cessa capturando, prendendo, matando,
degolando um ou muitos deles. O movimento é coletivo, aparentemente guiado por algo que paira no ar. Em 2013 nunca vimos tanta gente. Era fruto de uma insatisfação, qual? Todas. Qual rosto, qual liderança? Parece não ter. É anônimo.
O filme Coringa é o ícone de um sentimento inominável, indefinido,
amorfo, sem cara, até que ele dispara tiros no metro matando três cidadãos de
bem. Ali a ideia começa a ganhar forma, na verdade, ganha um rosto, mais
precisamente: uma mascara. Talvez na primeira onda de protesto contra a
exibição do filme, ele ganha o mundo.
Seria importante falarmos de Netuno e Plutão, mas ficara para uma
próxima vez. O filme é netuniano, no sentido estético do termo. Na forma com que atravessa telas, sonhos, desejos e transpassa imaginários, os aglutinando em torno de várias miragens, ou seriam delírios? Ou seria mesmo, realidade? A ficção e a realidade se confundem numa interdisciplinaridade ébria. Mas, isso fica para outra
vez. Coringa é a mascara do que colocamos nele, como todo bom filme. O Coringa mesmo, talvez seja um delírio no qual ainda não saímos.
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