sexta-feira, 25 de outubro de 2019

CORINGA: a máscara de Urano.


É difícil explicar o que Hanna denominou a “Banalidade do Mal”. Assim, as respostas fáceis, prontas, coloridas, acabadas nos trazem alivio, apaziguamento. Nos dão uma compreensão que mesmo equivocada, pálida, tênue, nos confortam. O filme tenta nos tirar desse conforto. Dessa estabilidade, o que uma amiga em sua análise do filme chamou de ‘normose’.

Tentarei evitar as análises ao meu ver equivocadas, apressadas, superficiais que foram feitas ao conjugarem psicopatia com portadores de sofrimento e transtorno mental. Essa é uma discussão que eu gostaria imensamente em me ater, em aprofundar, em abordar, porém talvez passe a reboque dela.

Quero acreditar que as identificações da violência com a miséria, com o sofrimento mental, com a psicopatia fazem parte desse pensamento rasteiro, desejante de explicação. Esse pensamento que não suporta o ‘contato furioso da existência’, que recorre a palavras mágicas, entendimentos breves, para lhes poupar do breve flerte com o ABSURDO. 



O absurdo é esse olhar para o abismo e de repente sentir o abismo devassando sua alma, procurando espaços nos quais pensava não ter, como nos diz Nietzsche. Diante desse nada, queremos terra firme, ares tranquilos, mares calmos. Desejamos explicações racionais. Elegemos salvadores da pátria. O filme tenta não nos deixar cair nisso. Nos desaloja desse encontro fácil, dessa resposta fácil e rápida. O filme desaloja.

Mas, para onde vamos? Para onde tem ido muitas das análises: para as explicações reconfortantes e acalentadoras. Os Incels americanos e talvez mundiais se identificaram com o Coringa, mas eles entenderam? Eles entendem alguma coisa fora do pobre e desértico universo subjetivo deles? É culpa nossa, eles serem assim? As perguntas evocam questões, igualmente complexas, novamente polêmicas, que nos conduzem para novas e outras análises, tais como: a ficção pode influenciar a realidade? A arte, no caso um filme, pode mesmo levar uma pessoa a cometer crimes? Qual é esse limite entre o imaginário subjetivo e o transpessoal, coletivo? Como que algumas pessoas esbarram nessa realidade como se estivessem chocando com uma parede cinza de concreto e outras a atravessam como se estivessem passando por uma nevoa? 

É inegável que há pessoas, geralmente, artistas, que ao falarem do seu imaginário abrigam em si toda uma geração, toda uma humanidade. Poderia ficar aqui até o restante do texto dando exemplos, mas eu quero nesse momento, pensar naqueles que esmagados por uma realidade cinzenta, não conseguem libertar seus sonhos, fantasias, sua vida de uma realidade concretada. Simplesmente, não conseguem. A realidade para eles é mais densa, espessa, sombria. O mundo interno deles é tão solitário quanto o externo. Aquilo que rodopia por um segundo em sua malha intelectiva é deglutido como se fosse um buraco negro. Consomem o outro ser por inteiro e ao final não resta nada, ninguém. Nem ele, nem o outro. Se o artista constrói pontes e muros, algumas dessas pessoas dinamitam todas as relações, inclusive, a delas com elas mesmas. 

"Para mim, a arte pode ser complicada e, às vezes, a arte é feita para ser complicada. Se você quer arte descomplicada, talvez você deva ter aulas de caligrafia, mas fazer cinema é sempre uma arte complicada". Todd Philips
 Assim, nos preocupam os rótulos, os clichês, um pouco similares aos que fiz acima e venho desconstruir aqui. Coringa é um psicopata? Coringa é um louco? É ele um doente mental que não gosta de ricos? Coringa é um doente mental, pobre, fracassado, que não gosta de ricos e mata sem sentir culpa? Notadamente, ele pode ser tudo isso, mas o filme não nos permite explicações fáceis e simplistas como essas. O filme nos convida a perceber várias coisas, em muitas direções e profundidades: o sofrimento mental é um. A falta de apoio psicoterapêutico e farmacológico diante de uma política pública da indiferença é outra. Todavia, o que assinalo como mais significativo é como o diretor nos convida a ‘vivenciar’, perceber o conflito por dentro. E nessa vivência adentramos níveis para além da nossa epiderme. Vejamos:



Uma primeira camada é a do campo subjetivo. Arthur Fleck com ele. O segundo é o campo da intersubjetividade, Arthur com o outro, com o mundo. O terceiro é o desaparecimento de Arthur Fleck e o surgimento da máscara; Coringa. Essa gradação me fez lembrar de Drummond, na verdade, lembrei-me de Afonso Romano de Santana que distingue as três fases de Drummond como que demarcando: a 1ª na qual ele é menor do que o mundo. A segunda na qual o mundo é grande e pesa mais do que a mão de uma criança. Uma terceira que o poeta, o eu poético, se iguala ao mundo. Esse é um exercício de folego. É um processo iniciatico. É belo ver como os artistas conseguem realizar essa transcendência a partir de imanências, introspecções, mergulhos selvagens para dentro de si mesmos. Vou tentar correlacionar esses movimentos com a astrologia. Espero obter clareza. Espero que a linguagem consiga fazer essa travessia das ideias que me habitam com o filme que nos captura, com a realidade- a cara do absurdo que nos devora sem dentes. Apenas boca arreganhada que engole o mundo, o eu.

SUBJETIVO



Durante muitas cenas somos movidos para dentro da visão de mundo de Arthur Fleck e deliramos com ele. Porém, passado poucas cenas, antes do fim do filme, o diretor nos mostra, que era delírio. Insisto- o diretor nos mostra. Sem os cortes dele, a edição e retomada das cenas deliramos juntos. Acreditamos naquilo que Arthur vê, sente, compreende, interpreta o mundo. E enquanto não há esse corte parece que todos no cinema amam o filme. É como se aquela dor, sendo sofrida em silêncio, calada, intimamente, nos condoesse. Eu telespectador me condoía, me solidarizava. Queria correr atrás dos meninos que roubaram o cartaz. Queria que ele soubesse se defender melhor. Que ele se transformasse em Van Dame, ou Charles Bronson, mas ele é só Arthur. Não haverá reviravolta. Nenhum mestre Jedi chega, nem de artes marciais. Nem um amigo, nem um colega, nem um policial. Fleck está condenado a ser ele mesmo: frágil, belo, bem-intencionado, bonito. Um anônimo. Um ninguém. Alguém que se demitido não faz falta, alguém que seguindo uma pessoa por toda uma cidade, não é visto. Alguém que diante de uma terapeuta não é ouvido. O nada da existência o ronda, se faz indiferença política-social. 

Isso para destacar que o delírio é tão convincente, tão real, que acreditamos. Se o diretor não nos retira, continuamos dentro da realidade dele. Mas, nós estamos fora, somos outro. Talvez tenhamos nossos próprios delírios e nos percamos neles. Reconhecemos o dos outros, rechaçamos até. Vivenciamos delírios coletivos, que se tornam realidades- opressivas, massacrantes. Legitimadas, justificadas o tempo inteiro. Sabemos nos convencer que a desigualdade e a indiferença são innevitáveis. 

Fleck é o cara sensível, amoroso, cuidadoso, que desejava fazer as pessoas rirem e levar alegria e felicidade para todos. Quase nunca obtinha êxito. As pessoas não riam para ele, não riam com ele; as pessoas riam dele. Ele era motivo de deboche, desprezo. Um palhaço sem graça. Um comediante de piadas ruins. Motivo de zombaria e escárnio, entre os colegas, nas ruas, depois em rede nacional. Isso não é um delírio no qual ele sai. Essa é a realidade que ele vivencia todos os dias. É a vida que não desgruda do ser. É a amargura que não sai da pele. É a dor que vai obnubilando os passos até virar vazio. Se fazer absurdo, se transformar em nada. E é nesse vazio, no qual o delírio que é parte dele, age dentro dele, atua nele, ele se identifica com a própria máscara. A persona assume a identidade. Porém antes de chegar a mascara, preciso passar pela invisibilidade.

INTERSUBJETIVO



Se a dor fosse só de Arthur, se essa miséria de vida, fosse só dele, o filme não causaria polêmica, nem criaria alarde. Fleck nasceu, como disse sua mãe, para levar felicidade e alegria para o mundo. A vida dele gravita em torno dessa fantasia, na qual ele faz de tudo para ser realidade. Ele é o cara bom. Tão bom que chega a ser bobo. Tão bobo que é visto como ingênuo. Desculpem, ele não é psicopata. Ele tem uma inadequação completa para vivenciar nossa realidade. Ele não tem punhos, nem dentes, não morde, não unha, não grita de raiva, não fala palavrão. Ele apanha e volta a levantar. Ele é trapaceado e volta a sonhar. Ele é ignorado e continua acreditando. Ele é brasileiro. Ele é o cidadão comum. O padeiro, o professor, a dona que vende bala no sinal com o filho no colo. E nós não ligamos para nenhuma dessas dores, dessas vidas, porque temos as nossas, mas principalmente, porque elas não nos incomodam.

O que perturba em Coringa é que um dia esse cara mata. Não o vizinho de rua. Não o outro preto que estava de bobeira na quebrada e esqueceu da guerra das ruas. Não a mulher que o ex marido sentiu ciúme. Perturba porque ele mata três ricos. Ricos? Mata três caras bem empregados e isso acende uma questão e se virar moda? E se as pessoas perceberem que a desigualdade não pode ser justificada com o descaramento que utilizamos? E se eles quiserem o que é nosso? Pensam alguns. 
Olhando as discussões acerca do filme, a questão não é mesmo sobre a dignidade humana, ou o valor à vida. A questão é que homens brancos, heteros, ricos não podem ser mortos como pretos, pobres, trans, no metro do mundo, por um PALHAÇO. Por que como destaca, maravilhosamente o diretor Todd Philipps:

O que me intriga é sobre essa masculinidade tóxica branca. Quando você diz ‘oh, acabei de ver John Wick 3’, ele é um homem branco que mata 300 pessoas e todo mundo ri, torce e vibra. Por que esse filme é pautado em parâmetros diferentes? Honestamente não faz sentido para mim".

Não deveria fazer sentido para ninguém, mas definitivamente, algumas vidas valem menos, muito menos do que outras. E essa discussão na sociedade americana e em todas as outras não poderia deixar de ser feita. Por que o assédio de três homens no metro a uma mulher não causa indignação? Por que a agressão de três homens a uma outra no mesmo metro não perturba o sono de ninguém? Por que a violência dos talks shows que tripudiam de outros é aceitável? Saindo da ficção, saindo?

POSSO CONTAR UMA PIADA? 

Essa frase virou um bordão, que como o filme seria cômico se não fosse trágico. Ou é trágico, porque é cômico. O ponto é que nessas piadas há o surgimento do Coringa. O Coringa nasce, cresce, ganha corpo, alma nas entranhas de Fleck. Coringa é o resultado de relações subjetivas e intersubjetivas. Não nasceu pronto, não está acabado. Mas, foi o que melhor deu um sentido para Arthur. E, comicamente, o sentido é que não tem sentido. O diretor nos traz para dentro do absurdo quando imaginávamos sair.

O Coringa anterior do Ledger encontra sentido no caos, na anarquia, na loucura completa e total. Ele é apaixonante. Mas, esse Coringa não é revolucionário, não odeia ricos, não sabe o que está acontecendo. É só mais um mascarado na multidão. E é aqui que adentro a Trasnspessoalidade. 






Coringa é uma carta na manga. Um palhaço. Um bobo. Um arquétipo. Coringa é o avesso do avesso do avesso. É então a realidade negada, é o desejo não manifesto. Coringa é o reprimido, o censurado. Nessa combinação, ele se faz clareza e transparência da nossa insanidade. Ele nos devolve a nossa realidade. O autor nos fez isso, quando ele nos mostra que Arthur Fleck delira, ele ao mesmo tempo, nos esbofeteia com a insanidade do nosso cotidiano. E, claro, pode-se ver nesse movimento uma apologia à violência, ou uma banalização do sofrimento mental com a psicopatia. Não me pareceu isso, nem um pouco. O movimento da câmera retira o cimento que impede algumas pessoas de verem o absurdo da nossa escolha de vida.  O filme transpassa do subjetivo de alguém que é portador de sofrimento mental, para uma sociedade que é insana, com muita delicadeza. Uma delicadeza tão grande que nos perdemos. E a loucura começa, justamente, quando as pessoas atacam o filme, o diretor para protegerem a realidade.

Plinio Marcos teve sua peça Navalha na Carne censurada na década de 1970. Nélson Rodrigues faz uma crônica contando de uma mulher que adentra a redação desesperada pedindo ajuda. O marido dela, taxista tinha sido preso arbitrariamente, acusado arbitrariamente e na cela fora possuído por outros homens. Ela estava desesperada, porque o seu marido dias depois foi libertado, mas continuava preso. Nélson então termina nos mostrando como que censuramos a arte enquanto ignoramos, banalizamos a realidade. 



Há insanidade maior? Há prova de loucura melhor? Condenar a arte por ela espelhar uma visão de mundo? Arthur Fleck é bom. É um cara legal. Digo mais, ele é sensível as dores do mundo. Ele deseja fazer as pessoas rirem. Rirem com ele, rir das piadas dele, mas a gente só ri dele. Debocha, humilha, espanca. Se ele estivesse medicado ele teria dado tiros? Claro que não. Mas, a insanidade maior dessa sociedade, a nossa, é que só vemos as pessoas quando elas vão para o campo da raiva. 

Quem nunca pediu por favor, pelo amor de Deus, pela Ave Maria, ajoelhado no milho e não foi ouvido, pelo contrário, foi ignorado, desprezada.  Quantos pais tiveram que voltar a um estabelecimento para o filho ser atendido? Quantas vezes as pessoas não tem que se passar por filho de idosos para eles serem respeitados? Quantas vezes na sua vida, no seu dia-a-dia você só foi ouvido depois de um grito, um tapa na mesa, um palavrão? Aí as pessoas se voltam para atender os pedidos como se estivessem diante de uma majestade? Isso não é insano? Não é doentio? 

O que mais desespera no filme é ele ter encontrado essa solução no disparo da arma. Ali, naquele homicídio triplo, ele matou 4 pessoas e talvez a mais bela de todos; ele mesmo. O assassinato dos moços, num ato de medo, defesa, crueldade, prazer, ele vai se aproximando do Coringa. O Coringa encontra uma forma de se aproximar dele. É uma pena, porque ali perdemos um ser bonito. E quantos perdemos por dia? Por ano? Quantos nós deixamos cair nesse universo turbulento devido a nossa indiferença? Há milhares de médicos em depressão, centenas de padres e pastores cometendo suicídio, milhares de professores com pânico, dezenas de policiais com tendências suicidas. No outro lado da ponta: milhares de pacientes com doenças psicossomáticas, centenas de fiéis em desespero, milhares de alunos com problemas psíquicos. Todo mundo tomando remédio, uns para acordarem, outros para dormirem, outros para relaxar, outros para tensionar. E, todos como Arthur acreditando que o problema é ele, que é uma questão individual, que se ele se esforçar, melhorar, tudo vai se resolver. Ninguém percebe que o sistema enlouquece, entristece, emburrece, instabiliza. O sistema precisa da indiferença. E a opressão maior é transferir todo esse peso para as costas do individuo, sem nunca questionar, o sistema. Sem nunca se perguntar: E, se....?  

Quando ele se identifica com a máscara, ele deixa de ser ele e passa a ser o CORINGA.


E o Coringa é psicopata? É louco? Odeia os ricos? O Coringa é uma persona, uma mascara, ele é mais do que o palhaço. Ele é o receptáculo de forças que ele não controla, não conhece, não se importa e vai se manifestar nele, por ele. Poderia ter sido outro. Poderia ter sido ‘qualquer um’. O Joker é a somatória desses elementos. Ele é o cara que rompeu com as regras, na verdade, o rompimento se dá dentro para fora. O psiquismo dele é rasgado, fissurado e de dentro dessa fenda sai a mascara que melhor retrata a leitura que ele tem da sociedade. E aqui falo, brevemente de representação, atuação e sigo, finalmente para astrologia. 


 Um personagem não é o ator. O ator dá vida, pele, consistência a essa persona/mascara. Por vezes, essa mascara ganha vida própria. Coringa tem vida própria. Jack Nicholson não cansa de avisar, falar. Essa persona por vezes não desgruda mais do ator, tira o eu dele, o rouba. Milhares de pessoas estão perdidas numa persona. Fleck parece nunca ter tido uma. Olhando para ele dá impressão de que ele estava no mundo de peito aberto, nu, escancarado. Quando, ele encontrou uma persona, essa o tomou por inteiro. 


TRANSPESSOALIDADE: o fim.


Para quem não sabe, essa imagem acima é do Arcano, o Louco no Tarot. O mundialmente conhecido nas ruas como 22. No tarot mesmo, essa carta não é numerada, porque ela não é serial. Ela é o inicio e o fim. O meio também como cantaria Raul, um 22. Uso o arcano, por razões óbvias. O arcano flerta com a personagem. 

Eu escrevi tudo isso, porque enquanto via o filme, as pessoas com as máscaras de Palhaço, eu ia recordando do filme V de Vingança, da máscara que viralizou. Ia vendo os conflitos no filme e elas eram sobrepostas na minha mente com as convulsões sociais no Chile, no Equador, em Hong Kong. E então pensava na astrologia, no tarot, respectivamente, em Urano e o Louco. Ficava pensando, como que os artistas conseguem captar, capturar esse imaginário? Como que eles acessam isso?
O filme é lançado já causando polêmica. E para mim é impossível não falar do filme sem trazer para as demandas sócio-econômicas que temos vivenciado com a politica neoliberal. Como desassociar? Como não relacionar agora sim, ficção e realidade? Sim, por mais que defendam a lógica neoliberal, ela é insana. Não há loucura maior do que acreditar na Bolsa de Valores, em lucros e divivendos e pautar medidas reais baseando-se nisso. Isso é insano. Mas, legitimamos. Cortamos gastos, reduzimos custos, privatizamos para que alguns ganhem. Essa lógica da exploração é desumana. 



Nesse âmbito desse flerte entre  o filme e acontecimentos sociais, ele passa a ser ainda mais emblemático, letal. E se....?

A astrologia fala de planetas transpessoais, também conhecidos como geracionais. Geracionais porque são planetas cuja orbita é tão demorada que acaba influenciando gerações inteiras, estamos falando de Urano, Netuno e Plutão. Transpessoais porque eles estão além do eu. Não é mais seu, pessoal. Eles transpassam essa dimensão. Passam por nos, mas atravessam. O que eles expressam nos mobiliza, nos conduz, mas não deveria nos prender, apreender. Tentaremos deixar isso mais claro. De modo que o simbolismo desses planetas se conecta ao que estava acontecendo no mundo à época do seu descobrimento.

 
A descoberta de Urano em 1781 está relacionada à Revolução Francesa em 1789 e podemos estender para a Independência Americana, a Conjuração Mineira, a revolução Haitiana. Todas elas têm como centralidade uma luta pelos fins dos privilégios de um determinado grupo. Em verdade, os ideais de liberdade, igualdade, fraternidade acaba por caracterizar esse planeta e a conexão dele com a Terra. De modo que quando falamos de Urano estamos falando num primeiro momento desses acontecimentos coletivos de transformação. Estamos falando de eletricidade, de racionalidade numa oitava acima da que funcionamos, normalmente. É uma inteligência coletiva, mas impregnada pela individualidade. Por tudo isso, o signo que é regido por Urano é aquário. Um signo de elemento ar, com grande capacidade de captar ideias à frente do seu tempo, por vezes do seu espaço. Aquário e Urano no mapa representam, respectivamente, lugares nos quais somos mais iconoclastas, mais propensos a desviar do padrão. Isso se dá ao mesmo tempo em que Urano no mapa representa essa tendência, propensão coletiva que temos de fugir às regras, de criar, inspirar, se deixar inspirar por novos movimentos. Quando pensamos na famigerada era de aquário estamos falando da inspiração desses novos valores de igualdade, de liberdade, de fraternidade.

Pois bem, os signos de elemento ar (gêmeos, libra, aquário) nos apresentam duais, como se não tivessem peso, fossem leves e de fato tendem a ser até que essas ideias quererem se fazer matéria, realidade. Gêmeos caminha pela indecisão, pela dualidade. Libra pelo esforço de pesar e encontrar a medida correta. Aquário coloca 'fim' à contenda ao encontrar a melhor maneira do indivíduo se posicionar coletivamente. É uma operação matemática tensa, confusa, árdua cujos movimentos são, inevitavelmente, transformadores, revolucionários, inquietantes. Aquário pensa em conjunto e age coletivamente. É aqui que vamos vendo a força eletromagnética de Urano na construção de campos, invisíveis, por vezes não mensuráveis, que de repente irrompem em revolução. Na França dizem que foi por brioches. No Brasil de 2013 por 0,20 centavos. No Chile pelo aumento das passagens do metrô. No Equador, na Bolívia, em Hong Kong, simplesmente irrompe um estopim e por vezes inflama.

O mundo está vivendo esse transito de Urano em Touro, promovendo fissuras em nossas estruturas de posse, de controle, de bens, de riqueza, de segurança. Tanto numa perspectiva econômica, quanto numa perspectiva psquica. Essa duplicidade do dentro-fora, interno-externo, subjetivo-objetivo é onde o filme passeia com maestria e é também onde os movimentos sociais, coletivos, vem fazendo suas reivindicações. 




Por um lado, jovens, estudantes, (urano) questionando com valentia, uma lógica distributiva (Chile, Equador) que eles não veem sentido. Uns com muito, outros com pouco (racionalidade coletiva). A operação não fecha. Por outro lado há toda uma lógica e racionalidade de segurança, de bem estar, apoiado em posses e valores de mercado mais tradicionais (touro). Aqui há uma associação com o tradicional, os adultos/velhos e seus ideias e cosmovisão que contrasta com a deles. Visualizado em Hong Kong nos quais a questão da extradição, segurança foi o estopim. 


O filme consegue dialogar com esse momento, trazendo um ícone que simboliza demais o que é esse momento Urano em touro. Ele é Coringa. E aqui podemos pensar o Joker como carta mesmo no baralho, dependendo do contexto, ele muda as feições, porém traz a marca transformadora, inquietante, desafiadora. 



Artur Fleck é o porta-voz do Coringa. O cara invisível, sem voz, que se encontra numa máscara. Mas, se o Coringa se utiliza de Fleck para se expressar e vice-versa; o palhaço é a máscara de milhares de Flecks. E nessa máscara, voltando as convulsões pelo mundo, ela é coletiva. Não se aponta uma liderança. A revolta não para, ou cessa capturando, prendendo, matando, degolando um ou muitos deles. O movimento é coletivo, aparentemente guiado por algo que paira no ar. Em 2013 nunca vimos tanta gente. Era fruto de uma insatisfação, qual? Todas. Qual rosto, qual liderança? Parece não ter. É anônimo. 



O filme Coringa é o ícone de um sentimento inominável, indefinido, amorfo, sem cara, até que ele dispara tiros no metro matando três cidadãos de bem. Ali a ideia começa a ganhar forma, na verdade, ganha um rosto, mais precisamente: uma mascara. Talvez na primeira onda de protesto contra a exibição do filme, ele ganha o mundo. 



Seria importante falarmos de Netuno e Plutão, mas ficara para uma próxima vez. O filme é netuniano, no sentido estético do termo. Na forma com que atravessa telas, sonhos, desejos e transpassa imaginários, os aglutinando em torno de várias miragens, ou seriam delírios? Ou seria mesmo, realidade? A ficção e a realidade se confundem numa interdisciplinaridade ébria. Mas, isso fica para outra vez. Coringa é a mascara do que colocamos nele, como todo bom filme. O Coringa mesmo, talvez seja um delírio no qual ainda não saímos. 










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