ROTULOS
Minha
visada espiritual é artística. Gosto da forma como os artistas compreendem,
organizam, percebem a realidade. Nessa perspectiva me afinizo muito com a
percepção que eles têm da vida.
Em
nossas oficinas a loucura, as dores da alma, as aflições da existência são
temas comuns e recorrentes. Ficamos estudando sobre as intercessões entre
loucura-arte-mediunidade tentando clarear para nós mesmos essas lacunas, esses
espaços ora monstruosos, ora repletos de beleza. Não obstante, lançamos um
olhar muito agudo e compassivo para os lados ainda mais destoante dessas
intercessões que são as psicopatias e as lideranças carismáticas de caráter
perverso e suicida.
Como
podem depreender brevemente do exposto acima este é um campo de estudo de
várias áreas, vários segmentos, sempre aberto para quem deseja falar desse
universo a partir de si mesmo. Essa é uma das condições: que cada um fale da
sua vivência para poder compartilhar das vivências dos outros. Isso abre o
espaço para a tolerância, o respeito, a compaixão. Isso retira os seres da
condição de analisados e analisandos. Todos passam a ser estudiosos, aplicados
e interessados em saber um pouco mais sobre si mesmo.
Conto
isso, porque anônimos ou não, famosos ou não, cada qual traz sua narrativa de
dor, sua experiência e sua vivência. E eu perguntei a alguns deles em algo
similar a uma mesa redonda:
você
teria sido você sendo classificado de bipolar, ou autista, ou esquizo? Mais ainda:
teria desenvolvido sua obra tomando antipisicótico?
"Van
falou que os rótulos sempre existiram, o pernicioso é que agora eles são
clínicos e colocados como verdades absolutas. É assustador verificar o
desconhecimento dos rotuladores da plasticidade neural, das mudanças sinápticas
que o cérebro é capaz de fazer, das próprias mudanças que os seres realizam ao
longo da sua trajetória de vida. Assim, embora sempre tenham existido rótulos é
criminoso o peso clinico, médico, psicológico nas costas e nas mentes de
crianças tão tenras, adolescentes em formação. Por outro lado, quanto ao uso
dos antipsicóticos, teria impedido, com quase 90% de chance deu ter cortado
minhas orelhas. Teria também ‘impedido’ deu sentir o mundo na intensidade que
ele me incidia. Teria minimizado minhas dores, mas foram as minhas dores que me
fizeram ser quem eu sou. Não posso ser sem mim. Cortar as orelhas foi um ato de
desespero, de dor lancinante, uma tentativa de amputar meu ser; mas mesmo
dilacerando, cortando todo meu corpo, eu não deixo de ser aquele que sou. Ser o
que sou, expressar o que sou, somente a arte me serviu de remédio, de alivio,
de consolo. Pintar, não para ser o mais vendido, mas para encontrar uma paz, um
equilíbrio, um eu que podia sair de mim sem que necessitasse deu me cortar para
vê-lo e sabê-lo. Isso, os antipsicóticos cortam, mutilam, apaziguam, mas o eu
adormecido, enfurecido encontra-se dopado e uma hora estaremos frente a frente
com ele. Acho que o antipsicóticos seria minha ruína".
Outro
que se propôs a responder a essa questão foi um dramaturgo francês.
"Os
rótulos não importam, somos mais fortes do que isso. Moldamo-nos a partir e
para, além disso. Aos antipsicóticos somos impotentes. Não se tem força contra
um controle que domina o próprio corpo, que destroem caminhos de conexão entre
a alma e o corpo. Os antipsicóticos são a destruição. Ninguém resistiria a
eles, ninguém seria com eles. Na minha loucura fiz meu teatro. Minhas vozes
fizeram personagens, minhas alucinações fizeram montagens e figurinos. Essa
irascibilidade incontida, desenfreada é que nos faz artistas. Foi quem me fez
ser quem sou. Precisa-se de espaço para o eu e não de confinamento. A própria
idéia de eu é uma temeridade quando se fala de mente, de psique. Deixo isso
para o filósofo, porque toda essa discussão me cansa, me causa fastio. Necessitamos
de liberdade, de espaços, de criações. Necessitamos de aberturas para as manifestações
do ser nos seus aspectos de criatividade e originalidade. Precisamos de poesia
e metáforas. Necessitamos do teatro".
Vou
caminhar para o arremate. Os rótulos prendem, segregam e é difícil romper com
eles, ir além deles. Quando o rotulo vem acompanhado de pílulas mágicas, as
prisões e correntes ficam mais grossas, espessas, rudes. Estamos aprisionando
com rótulos e fórmulas miraculosas mentes que possuem outra configuração.
O
que os fármacos desejam é que o corpo não sofra, não doa, não morra. Eles
querem o melhor para o corpo e o corpo para eles é uma máquina. Agora
estenderam essa mesma lógica para a mente. Na concepção deles a mente é um
programa de computador, um software. Uma extensão da máquina que somos. E como
a dor, a morte são tidas como avarias desprezíveis, busca-se de todos os modos
e de todos os jeitos minimizar as dores do corpo. No entanto, A dor no corpo é reflexo
de dores nos campos mentais, emocionais que os fármacos podem cortar, isto é, ‘analgenizar’.
Mas a fonte e origem da dor permanecem e precisam ser tratado. Uma das formas
utilizada para minimizar esse sofrimento se dá pela arte e na arte.