Sísifo enganou a morte
por duas vezes, foi um mortal capaz de desafiar as leis naturais, pelo menos
até certo ponto. Não obstante, foi castigado pelos deuses a empurrar uma pedra
morro acima, que por efeitos das leis da Física, da lei natural, rolaria sobre
ele, praticamente, o esmagando. A tentativa de Sísifo em quebrar as leis
naturais o colocou numa posição de sacrifício eterno. O seu fazer se tornou
rotineiro e a sua astucia, sua inteligência, sua criatividade ia sendo diluída
diuturnamente.
O mito adentra nosso
imaginário, visita nossos ânimos, alimenta as nossas reflexões. E nessa quinta-feira
de Corpos Christi fiquei observando duas pessoas que desenvolviam suas
atividades de maneira concentrada, atenta, inspirada, motivada. E realizavam um
trabalho que em poucas horas seria pisoteado, que a maioria não daria valor,
que ninguém saberia que foi ela que ajudou a realizar. Era um fazer anônimo,
sem reconhecimento. E elas estavam lá, desde as seis, sete da manhã e com
folego para desenharem e ‘colorirem’ mais uns dois quilômetros de avenida.
Essas ações me intrigam,
afinal o que eles ganham em troca? Não faziam por dinheiro, não faziam por
status, não faziam por reconhecimento? O que eles queriam e o que eles ganham
com isso? Entenda que a ação deles é justamente o contrário da nossa. Para a
grande maioria o trabalho é tripalliun um instrumento de açoite, que nos aflige
dia após dia. Nosso trabalho é a própria representação do mito de Sísifo e
diante dele temos que nos perguntar: há saída? Pode-se ser feliz e pleno
realizando uma atividade profissional?
A maioria das pessoas
escolhem uma profissão que as oprime com o peso da rotina. O tripalliun as
açoita dia e noite, anos a fio, até a sonhada aposentadoria. Trabalha-se
esperando o fim. Inicia-se o dia de trabalho na expectativa que ele termine o
mais rápido possível. De modo que o trabalho é torturante sejam pelas condições
impostas, seja pelas condições que nos impomos, mas quero falar dessa outra
dimensão do trabalho que é labor, que é louvor, que é celebração, que é
aproximação da divindade. Talvez esteja falando de utopia, talvez esteja sendo
ingênuo, mas monges sejam eles budistas, hinduístas, cristãos, assim como
artistas e alguns jogadores profissionais tem mostrado que há um estado de
graça em algumas atividades. Mais, precisamente, não na atividade em si, mas na
forma com que a realizam. Uma forma na qual o importante não é o eu e sim o não eu. Não um não eu, enquanto renúncia de si mesmo, mas um não eu, enquanto abertura de expressão para a divindade.
Nessa mesma linha, sempre achei estranho
saber que monges budistas faziam mandalas que seriam espargidas pelo vento. Era
um trabalho tão meticuloso, tão lindo, que não entendia para que tanto esforço
em vão e ali nas ruas de BH eu via a mesma relação. E, no caso budista, as mandalas são realizadas com o intuito de se desenvolver o desapego. Elas são feitas com todo carinho, com todo cuidado, com toda atenção na expectativa de o vento as leve.
Na quinta-feira do dia
6/6/2015 fui correr no Parque Municipal e vi uma moça linda e solitária
desenhando no chão. Me deu vontade de perguntar: você está utilizando pemba
para fazer os desenhos do santíssimo? Não perguntei, apenas a observei no seu
trabalho silencioso e profundo. Em torno de uma hora
depois, saindo do parque lá estavam várias pessoas sentadas, utilizando de serragem
para colorir os desenhos da moça. Tinha um rapaz cuja energia dele me chamou
atenção: pernas cruzadas, olhar atento e fixo, exalando uma amorosidade que o
tomava, mas não o envaidecia. O que ele fazia era belo, mas ele sabia que
aquela beleza passava por ele. Fiquei olhando para ele com vontade de
perguntar: não sabe que daqui a poucas horas centenas de pessoas vão pisar no
seu trabalho? Não sabe que daqui a instantes ninguém vai saber quem é você? Eu
que escrevo sobre você não sei quem é você? Por que acordas às 4 horas da manhã
de um feriado para uma ação assim?
Também não perguntei, mas
a energia do moço, das outras pessoas que tomavam a Avenida Afonso Pena me
contavam que ele fazia aquilo para a divindade. Sim, aquele era um trabalho de
devoção à divindade. Ele não estava ali por ele, fazendo para ele. Ele não
tinha nada a ganhar, porque não havia e não há preço que pague o que ele estava
dando e recebendo naquele momento e na vida dele. Ele estava conectado a sua
divindade de adoração e fazia aquilo por acreditar que ela ficaria feliz e a
felicidade da divindade era a felicidade dele. Adorar a divindade que ele
cultua era a forma de ele sentir-se pleno, integrado, harmônico, um ser humano
melhor. E a beleza que a gente via era expressão desse amor.
Um amor que não é
autoral, não tem que ser. Ele não fazia aquilo para o padre, ou para a esposa,
ou para os filhos, nem mesmo para ele; ele fazia para a divindade, no caso
Jesus. Isso não tem preço, não tem negociação. O valor dessa ação não cabe em
nenhuma quantificação. Isso que realizou está além do mercado e das teorias de
exploração. Não temos, pelo menos não conheço um conceito no qual a reificação
pode ser entendida ao avesso do que ele é, ou seja, uma integração na qual o
seu fazer encontra-se refletido no objeto que foi produzido- LABOR. É o mais
perto que podemos chegar.
Sacro-oficio é o outro
conceito que podemos tentar nos aproximar, isto é, tornar sagrado o seu fazer. É
como se diante da amargura de Sísifo encontrássemos uma forma de significar o
nosso fazer. E esse significado pode ser dado de diversas maneiras: 1- pelo
salário recebido; 2- pelo prazer e reconhecimento conquistado; 3- e é o que
estamos tratando o de entregar o seu fazer a uma divindade. Tornando o seu
realizar uma adoração à divindade.
Nessa perspectiva, aquela
energia era voltada toda a ela, para ela. Não era uma renuncia ao eu, ao ego,
mas era uma entrega a divindade. Aquelas pessoas não estavam centradas no que
aconteceria, que em pouco tempo o vento, as pessoas pisariam na realização
delas, o centro da energia delas estava no ato de que elas se deram à
divindade.
Eu não achei outro nome
senão estado de graça. É um estado de beatitude, de plenitude. Não se tem nada
para receber, não há valor que possa pagar. É um ato que não tem preço.
Incomensurável. É basicamente o que Bhaktivedanta Swami Prabhupada ensina no
movimento Hare Krishna, isto é, oferecer, ofertar o seu fazer a divindade.
É lindo!!! É belo!!!
Fossemos capazes de trazer essa presença e essa energia as nossas atividades,
ao nosso trabalho, a nossa rotina, re-significariamos Sísifo, seríamos capazes
de vencer as leis naturais no que elas nos apresentam de repetição e mesmice,
tripalliun e açoite.