Fantástico! Genial! Capitaneada por Lúcio de
Castro, historiador e jornalista, hoje comentarista da ESPN Brasil é uma série
de fôlego, em 4 episódios que relata de maneira formidável essa relação sempre
intuída, mas até então pouco registrada e documentada entre as repressões
latinas e o futebol.
O primeiro programa fala da ditadura na
Argentina, o segundo da ditadura no Chile, a terceira do Uruguai e a quarta,
mas não última, do Brasil. Não última, porque o ponto alto dos programas é a
demonstração factual que existiu um plano Condor. E este plano condor foi
capitaneado pelo futebol. O futebol foi a mola mestra para que os regimes
autoritários dessem mostras de sua força, de seus mandos e desmandos.
É uma série genial, porque apresenta fatos,
documentos onde até então a maioria de nós só levantara suspeição. Assim,
entrando na política, visitando o cenário social e o imaginário da
época, os episódios mostram como o futebol serviu de amalgama para consolidar um estado de exceção. Mas, por ironia do destino, foi nos estádios, perante a
população, que os regimes de chumbo receberam suas piores derrotas. É pelo menos assim, que mostra todo o estado do Chile bradando para um jogador xara do ditador, em dia infeliz:
“Fora Pinochet”. É da mesma monta que a torcida uruguaia diante do seu hino
cantava mais alto e resolutos: “tremei tiranos” e ainda de maneira mais
explicita: “vai acabar, vai acabar, a ditadura militar.”
Gritos emitidos entre um gol e outro, entre
uma bola na trave, um belo drible e outro. A tentativa vergonhosa de abafar,
esconder as mazelas do terror não deram de todo certo. O povo estava atento.
Mas, mesmo com toda atenção do povo demorou décadas para certificarmos que o
MERCOSUL- o livre mercado comum das Américas começou com o translado de técnicas
e tecnologias de tortura, assim como de torturadores. Para pessoas que não
estão afeitas a esta discussão creio que ela cause a mesma sensação que a
leitura do livro BRASIL NUNCA MAIS, pela primeira vez: asco, nojo, dor.
Então, afinal, se é algo tão tenebroso, por
que devemos ver? Tento responder seguindo a linha de Galeano: para não esquecermos,
para não permitirmos o silêncio, para que a Comissão da Verdade, o STF que
condenou mensaleiros por dez anos por caixa dois, não legitime, como legitimou,
o esquecimento, a omissão de crimes contra a humanidade. Não nos importa se é
de direita ou de esquerda, se nazista ou stalinista, aquele que torturou, que
buscou mediante práticas sistemáticas e reiteradas retirar do outro a sua
condição humana, não pode receber anistia total e irrestrita. Torturadores
devem satisfação à sociedade, aos familiares, ao país. Devem responder pela
igonominia dos seus atos.
Por tudo isso, para que a gente não esqueça,
mas também não busque o revanchismo é que Memórias de Chumbo: futebol nos
tempos do condor é uma obra de arte. É um documentário audacioso, que coloca
dedos na ferida, não omite nomes, relembra heróis, cita covardes que abusaram
do poder, da farda, do mando. Vale a pena ver. Ver para saber, saber para
contar, contar para que não se deixe esquecer, não se deixe esvaziar e se
silenciar. Contar para se fazer memória coletiva. “Apesar de você, amanhã a de
ser outro dia.”