Vou
pensar o autoconhecimento ocidental como um caminho que se faz pela
racionalização do caminho e do autoconhecimento oriental aquele que se faz
percorrendo o caminho. O primeiro tem na busca pela linguagem seu forte. O
segundo no silêncio a sua maior característica. O primeiro se faz ocidental,
porque ele traz uma crença tácita de que o universo simbólico, as experiências
subjetivas podem ser compartilhadas e expressas pela linguagem. O segundo trás
uma crença tácita de que o universo subjetivo e as experiências simbólicas
podem ser apenas experenciadas, quase nunca compartilhadas pelo dizer, pelo
falar. A primeira corrente tem muitos laços com o que denominaremos ciência e
ouso dizer que o fazer científico é uma forma de autoconhecimento. A segunda
corrente denominarei de mística. Não tratarei das distinções entre cientistas e
místicos, mas o ponto principal é que o alcance dos cientistas, no que tange a
publicidade das idéias é maior, infinitamente maior do que a dos místicos.
Poderíamos dizer que os cientistas seriam exotéricos e os místicos esotéricos,
isto é, estes arrolam um saber mais interno, para um público mais restrito e
aqueles (cientistas) um saber mais publicizável para um público mais geral.
Ambos necessitam de um ritual de iniciação.
Para
ilustrar os primeiros vamos pensar na psicanálise, mais precisamente nos
analisados. Para ilustrar os segundos vamos pensar nos místicos, em especial a
tradição zen budista. Comecei a me debruçar sobre essa questão, porque alguns
amigos da mística (assim como eu) recusam a terapia alegando que já se conhecem
o suficiente. Em contrapartida, comecei a conhecer ‘partilhantes’ que gostavam
de afirmar que fazem psicanálise há décadas e que se conhecem mais do que
ninguém. Mas se conhecem mesmo? É possível se conhecer? O que é
autoconhecimento, afinal?
Acerca disso, meu
sonho é a criação da fotografia da alma. Sim, lá onde eu passeio tem uma câmera
fotográfica que tira foto da alma. Não estou falando de foto Kirlian. Estou
falando mesmo de uma máquina que fotografa a alma da mesma maneira que a gente
fotografa o corpo físico. E aí a gente compara a alma com o espírito. Isso é
sem dúvida um padrão mais objetivo de autoconhecimento. Igual avaliação física:
75 Kg, 1,90 de altura, você emagreceu demais, o que houve? O mesmo se dá com a avaliação
psíquica. Seu orgulho aumentou. Sua vaidade diminui. Tudo analisado num único
clic.
Enquanto
essa máquina não é fabricada a gente continua com as oficinas de arte. Os
trabalhos livres são sempre expressões do ser, do nosso fazer. Nesse fazer
mostramos não quem somos, mas como estamos. A consistência de esse estar acaba
por nos revelar imagens de quem somos.
Ao
que tudo indica o ser mesmo não pode ser dito, sob pena de ele deixar de ser. O
processo maravilhoso de autoconhecimento da psicanálise é o de aprender a se
dizer, é o de conseguir transformar em linguagem aquilo que se fazia irracional
e incompreensível. Quando eles chegam até mim percebo que os analisados
conseguem racionalizar demandas internas de alta complexidade, mas isso ainda
tem pouco a ver com autoconhecimento. Especialmente naqueles que fazem uso
dessa racionalização psíquica, interna, como um mecanismo de autodefesa. Um
escudo protetor que impede qualquer interação mais estreita com o mundo
externo. É uma couraça que a todo instante que o outro aponta algo, ela diz:
“isso eu já sei. Nada disso me é novo.” Muitas vezes não é mesmo, mas é
diferente da abertura interna que tem aquele que se busca e se delicia com esse
encontro, mediante uma risada.
Talvez
o ponto que eu queira chegar é esse. No processo psicanalítico busca-se encontrar
um eu que se solidifique, que se consolide, que se estruture, com o qual se
identifique. Esse eu não está aberto e nem possui abertura. Esse eu para ser,
continuar sendo, precisa se manter, permanecer igual. Essa identidade é
conhecida como autoconhecimento. De modo que quando a pessoa se diz conhecedora
de si mesma, saltam-nos os olhos tudo aquilo que ela desconhece de si mesma e
aparta das suas condições de possibilidade. Salta aos olhos tudo o que ela não
tem ciência de ser. Mas, como essa parte é um conteúdo não analisável ela
ignora todo esse potencial efervescente.
O
autoconhecimento acaba se tornando uma expectativa de se encontrar aquilo que se
deixou onde você mesmo escondeu. Não sei se isso é autoconhecimento. Parece
mais uma travessura de quem esqueceu que brincava. Alguém que na hora do pique
- esconde bateu a cabeça. Quando recordou o sentido estava com amnésia e passou
a fixar e posicionar tudo a partir daí. Os colegas continuam brincando,
colocando e retirando as coisas do lugar, mas ela sempre passa arrumando,
querendo dar um ponto fixo e eterno para as coisas. A isso ela chama de
autoconhecimento. E nesse processo de autoconhecimento, quando me chamam pelo
apelido, eu revido. Quando eu recebo, eu faço compras. Quando um homem que eu
não conheço me olha, eu respondo aquilo. Toda essa padronização sem monta e sem
graça, robotizada, deu-se o nome de autoconhecimento. Mas, será mesmo?
Como
se reage diante do inusitado? O que se faz perante o absurdo? Nessas horas a
gente vê que essa mascara primeira, bem fixada da personalidade, com a qual
identificamos e levamos os outros a acreditar se tratar de nós mesmos cai por
terra. E é quando ela está no chão que estamos começando a falar primeiramente
de identidade.
Por
sua vez, na corrente mística, o autoconhecimento é um não identificar-se. A
busca é justamente para que esse eu não se solidifique, não se cristalize, não
se enraíze. A busca se faz no mergulho para o mistério e não para a revelação.
Sim, deseja-se antes de tudo a des-coberta e não a identificação.
Os
mestres Zen apostavam na espontaneidade. Os Koans não são respostas prontas e
menos ainda pensadas, elaboradas, são respostas espontâneas, imediatas, que só
podem ser dadas por quem já esteve no processo do auto-engano. Isto é, no
processo de acreditar que o autoconhecimento é ter um padrão confiável de
conduta igual manual de carro. O que todo mestre ‘sabe’ é que a pergunta do discípulo
é fruto de um século de racionalização, de muita articulação lingüística. O
mestre quando dá a resposta está desconstruindo milhares de anos de
autoconhecimento, de sedimentação.
Já
o diálogo entre dois mestres é completamente diferente e pena que estes
diálogos não passaram para a história. Mesmo porque a forma que os mestres mais
apreciam de conversa é o silencio. O silêncio é a casa onde eles se encontram.
É lá que eles compartilham dos mesmos sons, das mesmas músicas, da mesma
ternura. E há vozes do silêncio, pensamentos do silêncio de tamanha paz e
compaixão que quando em diálogo com o mundo só nos possibilita um koan ou um
Hai Kai.
Quer
me parecer então que a simples busca pelo autoconhecimento, ou melhor, a
declaração de que se conhece como ninguém é um ignorar-se. Quanto mais uma
pessoa se conhece mediante a demarcação de lugares fixos, mais distante ela
esta da espontaneidade do ser de mil faces e milhares de sorrisos.